quarta-feira, 16 de novembro de 2022

O livro que me dispenso de ler por não comportar conhecimento novo

 

A 15 de novembro, na Fundação Calouste Gulbenkian, foi apresentado pelo Dr. Marques Mendes, com pompa e circunstância, o livro O Governador, da autoria do jornalista Luís Rosa, que não passa de extensa entrevista do ex-governador do Banco de Portugal (BdP), supostamente para dar conhecimento fundamentado do seu desempenho de 10 anos (dois mandatos de cinco anos).

Como era de esperar, a apresentação do volume, então ainda fora das livrarias, deveria ter sido, a meu ver, processada de modo a proporcionar ao potencial leitor informação que despertasse a curiosidade pela futura leitura, e não a escalpelização quase exaustiva de alegados factos. Assim, perdi o interesse pela aquisição e leitura dessa obra-prima em que o Dr. Carlos Costa faz o seu ajuste de contas com quem o terá incomodado na sua gestão de segredos e de verdades.  

É óbvio que também não me satisfaria uma apresentação do tipo da que utilizou o apresentador de um filme, que se limitou a dizer aos espectadores: “O filme que vai ser exibido consta de duas partes: a primeira e a segunda.” Evidentemente, a plateia respondeu gargalhando.  

Na banca, as reações foram plurais: do “não li” ao “não pretendo ler”, passando por “o que queremos é saber para onde ir”.

O CEO do BPI, banco referido na obra devido à antiga acionista Isabel dos Santos, diz que não o leu nem lerá, pois, acima de tudo, está a preocupação “em resolver problemas”. Aliás, “já houve comissões de inquérito, já houve pessoas que não tomaram Memofante”.

José João Guilherme, administrador da Caixa Geral de Depósitos (CGD) refere-se ao livro como “a espuma dos dias” e, pretendendo olhar para o presente, diz que “a banca nunca esteve tão capitalizada”, não adiantando nada “a conversa sobre quem disse o quê”.

O CEO do Santander em Portugal disse que não vai ler O Governador, por não ver nele qualquer interesse ou utilidade, pois cada uma conta a história à sua maneira.

O presidente do Millennium admite ler “a parte que ao BCP diz respeito”, mas recusa comentar a polémica dos últimos dias, acentuando: “A questão não é se há pressões, é se somos independentes para resistir às pressões.” Gosto, em especial, desta postura.

E Mark Bourke, do Novobanco, vincou: “O que queremos é saber para onde ir, não é recuperar o passado.” E eu pergunto quem esqueceu a falta de memória de Carlos Costa em sede de CPI?

António Costa, do jornal digital Eco, entende que o livro, não sendo uma biografia, “é mais um livro de memórias, umas mais antigas, mas sobretudo outras, recentes, de uma década à frente do Banco de Portugal e do país, marcada por acontecimentos extraordinários. Lembra a crise internacional do subprime, a falência do país, em 2011, a falência do BES, em 2014, a geringonça no Governo, a falência do Banif, no final de 2015, a venda do Novobanco, em 2017, e a tentativa de destituição do governador, entre 2019 e 2020, até à sua saída.

Assinala o colunista que muita gente está nervosa, temendo integrar as memórias de Carlos Costa. A pré-publicação de um capítulo em que o ex-governador revela as alegadas pressões que sofreu do primeiro-ministro para não ‘tocar’ em Isabel dos Santos levou o chefe do Governo a anunciar que vai processar o ex-governador e o atual governador pediu “respeito pelas instituições”. E Francisco Assis, socialista crítico de Costa e presidente do Conselho Económico e Social (CES), cancelou a sua presença na apresentação do livro, alegando razões de consciência e de decoro.

O colunista pensa que o ex-governador está a ajustar contas com o passado, deixando em letra de imprensa a sua verdade sobre os dez anos em que foi, supostamente, pressionado por um governo e por um primeiro-ministro que não lhe deram descanso, postura a que tem direito. Quem leu o livro percebe que foi preparado com tempo, pois há muitos pormenores, que não eram conhecidos, sobre os bastidores, de processos difíceis e complexos como a entrada da Troika em Portugal, a falência do BES e a relação com Ricardo Salgado, as tensões com António Costa e os confrontos com Mário Centeno. Julga que também que “o país precisa de transparência”, que só é garantida com a participação de quem esteve no processo de decisão dos momentos políticos e económicos mais críticos da última década, embora à visão de Carlos Costa possam opor-se outras ‘verdades’, de modo que os portugueses possam avaliar e fazer os seus juízos.

Por exemplo, Carlos Costa acusa o chefe do Governo de pressão para manter Isabel dos Santos no Banco BIC. Mas António Lobo Xavier revelou, no programa O Princípio da Incerteza, da CNN Portugal, que o primeiro-ministro até promoveu um decreto que facilitou a entrada do CaixaBank no BPI, pela desblindagem dos estatutos dos bancos, contra os interesses da filha do ex-presidente angolano, e repudiou as acusações de Carlos Costa. E o Presidente da República veio a terreiro defender a intervenção de António Costa e a explicar os motivos por que promulgou um decreto que o seu antecessor não quis promulgar. Era preciso desbloquear o impasse na gestão bancária. E, a meu ver, se o sistema não vê solução a nível interno, o poder político deve intervir.

Porém, o colunista do Eco argumenta que, se o primeiro-ministro fez um decreto à medida dos espanhóis, também se envolveu a abrir a porta do Banco Comercial Português (BCP) à investidora angolana, uma espécie de compensação de negócio.

É verdade que a revelação de Carlos Costa questiona a relação do Governo com o poder angolano à luz de nova informação. No entanto, não podemos olvidar que Portugal estava num momento de tensão nas relações com Angola por causa do caso do ex-vice-presidente com a Justiça, não devendo uma questão bancária atirar mais achas para a fogueira. 

António Costa, do Eco, admite que o ex-governador cometeu erros, mas assegura não ter sido ele quem mandou o grupo GES/BES para a falência e, por arrasto, a PT, como não foi ele o responsável pela falência do país em 2011, nem a levar o Banif à resolução. Ora, tudo isto é discutível. O Banco Espírito Santo (BES) chegou aonde chegou por maldade ou por incúria dos gestores e por inércia do regulador/supervisor. Quanto à dita falência do país em 2011, falta muito por esclarecer, nomeadamente sobre a falta de pressão do BdP sobre os decisores políticos.

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Luís Marques Mendes – ex-presidente do Partido Social Democrata (PSD), comentador televisivo e conselheiro de Estado – comentou o livro, estranha e significativamente prefaciado por Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu (BCE), que revela “os bastidores da intervenção da troika e da queda do BES e do Banif” e as guerras do ex-governador do BdP com Sócrates, Salgado, Centeno, António Costa e Francisco Louçã (por interar uma comissão nas Finanças).

Também é de notar que a plateia era constituída por entidades e por pessoas gradas, na sua esmagadora maioria, ligadas umbilicalmente ao PSD e ao seu parceiro de governação de 2011 a 2015, bem como pelos ex-Presidentes da República. Apenas dois socialistas ali se encontravam. 

E o orador defendeu que o Ministério Público (MP) deveria abrir um processo de investigação criminal à forma como foi vendido o Banif e pediu explicações públicas ao primeiro-ministro sobre o caso Isabel dos Santos. Todavia, observou que a revelação mais grave do livro se prende com a resolução do Banif no final de 2015, “um caso típico de abuso de poder e favorecimento de uma sociedade”, tendo o MP instaurado inquéritos e constituído arguidos por muito menos.

Disse Marques Mendes que, enquanto “havia em curso um processo de venda do Banif” de forma pública, o Governo informava Bruxelas “de forma confidencial, por carta, de que o banco estava em processo de resolução”. E questionou se as “duas estratégias opostas, uma pública e outra privada” resultaram de mera coincidência ou se foram objeto de premeditação. Mais afirmou que “havia entidades e pessoas em Bruxelas, em articulação com o Ministério das Finanças, a afirmar abertamente quem devia ser o comprador do Banif, sem concurso”, o que, em seu juízo, configura “favorecimento” ou “negligência”.

Ora, a meu ver, tudo deveria ter sido investigado pelo MP a seu tempo: falência de 2011, resolução do BES, resolução do Banif e venda do Novobanco, o que não sucedeu. Agora, é tarde. 

A isto Carlos César – presidente do Partido Socialista (PS), conselheiro de Estado e ex-presidente do Governo Regional dos Açores – opõe que Portugal assumira o compromisso de descontinuar a atividade do Banif no continente até maio de 2015, permitindo a União Europeia (UE) que se mantivesse em atividade nas regiões autónomas e nas comunidades portuguesas no exterior. Tal compromisso não foi honrado pelo Governo de Passos Coelho e pelo governador Carlos Costa. E os lesados do Banif – nos Açores, na Madeira e na diáspora – sabem quanto isso lhes custou.

Sobre o caso que já mereceu o anúncio do primeiro-ministro de que irá processar Carlos Costa, o ex-presidente do PSD defendeu que “falta a explicação política” do chefe do Governo, pois uma eventual intromissão do poder político numa questão desta natureza “é tão grave e tão ilegítima quanto a intrusão do poder político numa investigação judicial”. De modo algum, digo eu.

Já o presidente do PS considera que o ex-governador foi “desrespeitoso” e passou a ideia de que “há despeito a mais e sentido de Estado a menos” por ter saído do cargo “sem grandes elogios”.

Em relação à controvérsia sobre a presença, em 2016, de Isabel dos Santos, no capital do BPI e do BIC, Carlos César entende que se compreende o cuidado que devia ser usado, face à definição de prioridades, para evitar precipitações. Ora, a sugestão de tais cuidados da parte do primeiro-ministro, se ocorreu, não é considerada intromissão ou pressão ilegítima, mas, quando muito, a comunicação da perspetiva do Governo nos assuntos em causa. Além disso, a independência de instituições como o BdP não é salvaguardada e muito menos consolidada com a exclusão do diálogo e da interlocução com outros órgãos e instâncias, designadamente o Governo.

Carlos César frisa que, ao invés do que alguns insinuam, não há, nem houve qualquer cumplicidade ou sequer permissividade do primeiro-ministro ou do PS face à então acionista do BIC.

O presidente do PS diz que pressões políticas então faladas e bem-sucedidas, foram as que levaram Carlos Costa a impedir a nomeação de Mário Centeno para diretor do Gabinete de Estudos do BdP. E reage à exigência de processo de investigação criminal à venda do Banif. “Em Portugal, como em qualquer outro país com um ordenamento semelhante de separação de poderes, qualquer das partes envolvidas agora neste litígio podiam e, sobretudo, deviam trocar informações e opiniões, especialmente com a reserva adequada.” Aliás, à separação de poderes alia-se a interdependência.

***

Perdi o interesse pelo livro, porque, mais do que uma narrativa sólida, parece revelar a atitude de vindicta contra um passado mal resolvido e um espaço artificioso de oposição a atual maioria parlamentar absoluta. Fica bem a par de Quintas-feiras e Outros Dias (2017), de Cavaco Silva.

E pergunto por que motivo se denunciam casos só após se deixarem os respetivos cargos. 

2022.11.16 – Louro de Carvalho

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