segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Abuso sexual de menores: reflexão oportuna, ainda que imperfeita

 

O jornal digital Observador publicou, a 22 de outubro, um texto do Padre Gonçalo Portocarrero de Almada sob o título “Pedofilia na Igreja: discriminação e hipocrisia”, cujo teor subscrevo iuxta modum, desde logo, porque nem todo o abuso sexual de menores é pedofilia. Por isso, ao abordar a matéria, prefiro a designação de “abuso sexual de crianças e de adolescentes”, adotada na diversa documentação atinente ao fenómeno.

É verdade que o quadro eclesial, neste âmbito, é doloroso e os factos se multiplicam de forma nada tolerável. Por outro lado, é premente continuarem os cristãos, enquanto lamentam estes casos, a confessar a fé, devido à prontidão de testemunho a que são instados pelo passo neotestamentário: “estai sempre prontos a dar razão da vossa esperança” (1Pe 3,15). De facto, nada é suficiente para abalar a fé consolidada e nada os demove de acalentar a esperança, apesar de não estarem dispensados da nossa solidariedade no arrependimento e no pedido de perdão de quem pecou. Isto não deixa de obrigar aquele/a que prevaricou a reparar o mal feito, compensando a(s) vítima (s) pelos meios disponíveis.

O Padre Portocarrero de Almada sugere que, se “queremos acabar, de vez, com a pedofilia em Portugal”, se publiquem “os nomes e profissões dos 6.421 condenados, no nosso país, por abuso de menores, para que – finalmente! – se saiba quem é quem e se ponha um ponto final a este clima de generalizada suspeição, nomeadamente em relação à Igreja católica e aos seus ministros”.

E diz que a revelação não seria injusta, “porque se trata de um crime público e essa divulgação é exigida pelo bem comum, como medida preventiva”. Além disso, sustenta que “os condenados por este crime horroroso não têm direito a preservar um bom nome ou [fama], que não têm”.

Não contesto a razoabilidade da sua argumentação, mas entendo que, em matéria de melindre como esta, a publicitação dos nomes pode ser contraproducente, pelo ambiente de temor que gera e porque nem sempre a condenação é justa e proporcional. Por outro lado, não alinho tout court com a ideia da irrecuperabilidade dos abusadores, nem na sociedade civil, nem na instituição eclesial, apesar de reconhecer que a Igreja deve pôr mão de ferro nos abusadores com a aplicação das penas canónicas. Porém, a levarmos às últimas consequências a ideia da irrecuperabilidade, teríamos de excluir do catálogo dos canonizados e do dos beatos tantas figuras históricas (o abuso sexual de menores, conquanto seja crime hediondo, não o é mais do que outros bem graves).    

Defende, com razão, o sacerdote em referência que, “se, até à data, ninguém impediu a divulgação dos nomes de padres que nem sequer foram julgados, nem condenados, com mais razão se pode revelar a identidade de criminosos já condenados”. Na verdade, a acontecer, a proscrição e a divulgação de nomes só deveria ser feita para pessoas julgadas e condenadas, não para simples indiciados ou mesmo acusados. Neste sentido, em vez de instigar a comunicação social a “não encobrir a identidade dos pedófilos condenados”, sob pena de cumplicidade, eu preferia censurá-la por divulgar os nomes de clérigos ainda simplesmente suspeitos, porque presumivelmente inocentes, sendo-o até sentença condenatória transitada em julgado. É certo que estes crimes cometidos por clérigos têm o peso de gravidade acrescida por se tratar de pessoas em cuja formação integral se investiu de forma mais ambiciosa e por liderarem espaços e instituições a quem os pais e a sociedade em geral confiam as crianças e os adolescentes. Todavia, nem podem ser julgados na praça pública, nem a justiça pode deixar de ser ministrada com equidade, rigor e proporcionalidade.   

Menciona Portocarrero de Almada uma entrevista ao Papa Francisco sob o título “Eu vos peço em nome de Deus”, no La Razón, de 18 outubro, pelo jornalista argentino Hernán Reyes Alcaide, em que o Pontifice frisa que “a Igreja não se pode desculpar pelo facto dos abusos de menores estarem “muito presentes em todas as culturas e sociedades”, pois “milhares de vidas” foram destruídas, pelos que as deviam ter protegido e cuidado. E confessa, a este propósito, que “tudo o que se fizer, para reparar esse dano, será sempre insuficiente”. Por outro lado, aponta, como o seu primeiro ‘mandamento’ para a Igreja extirpar todos os abusos, porque expressam “uma verdadeira cultura de morte”. E vinca o facto de “um só e único caso” já ser em si “uma realidade monstruosa”, “um crime atroz”, “uma ferida feita a Deus”.

No colóquio com os jornalistas durante o voo de regresso da visita apostólica ao Bahrein, a 6 de novembro, Francisco assegurou que a Igreja está a “trabalhar da melhor maneira possível” para combater os abusos sexuais e lamenta que alguns ainda não vejam isso. Sublinhou que, “para um padre, o abuso é como ir contra a sua natureza sacerdotal e contra a sua natureza social”.

Quanto ao combate ao flagelo, o Papa disse que é um processo que se está a realizar com coragem, mas nem todos têm tal coragem. E a Igreja, em vez da tentação de transigir, tem a vontade de esclarecer tudo, visto que se deve envergonhar das coisas ruins, mas agradecer pelas coisas boas que faz. Mais revelou que mandou repetir os julgamentos de dois casos que não tinham sido bem julgados pela autoridade eclesial, já que tudo tem de ficar sempre bem resolvido.   

Quer o Padre Portocarrero que “a Igreja assuma toda a sua culpa, que não é pouca, sem subterfúgios nem desculpas de mau pagador”, mas adverte que os católicos não devem ter, “em relação a esta matéria, uma atitude ingénua ou acrítica, uma vez que “os filhos das trevas são mais astutos do que os filhos da luz” (Lc 16,8). Assim, “os cristãos devem reconhecer as suas culpas”, mas também exigir que os outros culpados assumam “as suas responsabilidades”.

D. José Ornelas Carvalho, presidente da Conferência Episcopal (CEP), que foi o superior geral do seu instituto religioso, apontou falsas denúncias por pessoas que tinham sido pagas para tal (Sol, 15-10-2022). O Cardeal Pell, condenado, em primeira e segunda instâncias, cumpriu um ano de prisão efetiva e, só depois, veio a ser provada, pelo Supremo Tribunal da Austrália, a sua inocência. A falsa vítima fora subornada para incriminar o número três da hierarquia da Santa Sé.

Para que todos os factos fossem apurados e se evitar que algum criminoso ficasse impune, ou que algum inocente fosse injustamente condenado, a CEP criou a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica portuguesa (CIEAMI), que encaminha para o Ministério Público (MP) todas as suspeitas de abusos de menores.

Nas instituições da Igreja, mas não nas do Estado e nalgumas privadas, está em vigor a tolerância zero. E Portocarrero alude ao caso de professor despedido de uma escola pública, por ter abusado de menores, sem denúncia às autoridades, por conivência da escola e da autarquia. Depois, reincidiu no crime num colégio católico, que desconhecia os seus antecedentes e o admitiu. Foi, de imediato, expulso e denunciado às autoridades e, agora, cumpre pena de prisão efetiva.

O Papa não escamoteia a responsabilidade da Igreja nestes casos, mas também disse que cerca de 50% dos casos de abusos ocorrem nas famílias, em clubes, em escolas ou no âmbito das relações de vizinhança, sendo que 3 % dos casos ocorrem no seio da Igreja. Que é feito dos outros 27%?

A Presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens afirmou que a maioria dos abusos sexuais, em crianças, ocorre dentro de casa e o agressor é alguém da família (DN/Lusa, 18-11-21). O problema não é de número absoluto ou percentual, mas desprezar 97% dos abusos de menores não revela interesse no bem das crianças.

O Presidente da República foi infeliz ao não considerar “particularmente elevado” o total de 424 denúncias recebidas e validadas pela CIEAMI. E esta não foi feliz na fuga de informação, porque deve investigar o que tem de investigar e, depois, apresentar à CEP o relatório final, sem dar palpites avulsos, que só perturbam a opinião pública. O Chefe de Estado não tem que se referir a resultados de uma comissão independente.

Depois, em resposta enviada à Lusa, o Ministério da Justiça referiu que consta do registo de identificação criminal de condenados por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menores, criado em março de 2015, um total de 6.421 agressores. Este número não pode ser comparado com as 424 denúncias à CIEAMI, porque estes ainda são de suspeitas, enquanto os 6.421 já foram condenados por decisão judicial transitada em julgado. Além disso, 424 queixas talvez correspondam a menos agressores, pois várias denúncias podem ser do mesmo abusador, tal como 6.421 criminosos podem significar maior número de delitos, porque estes delinquentes podem ser reincidentes, que não necessariamente irrecuperáveis. E, ainda, a cifra divulgada pelo Ministério da Justiça diz respeito aos últimos pouco mais de sete anos, ao passo que a CIEAMI está a investigar todos os casos de que há conhecimento desde há 70 anos.

Segundo o coordenador da CIEAMI, o “número dos abusadores será na ordem das centenas” e há “17 casos de padres em funções em várias dioceses do país enviados para o ministério público”, havendo que lhes juntar 30, que estão em estudo. Mesmo que todos os casos sejam validados, em aproximadamente 3.800 sacerdotes portugueses, haverá uma percentagem de 1,2% de padres abismadores, ou seja, 0,7% do total de abusadores de menores. Lamentável, apesar disso.

Enfim, não se pode confundir a crítica pertinente e justa à Igreja católica com alguma intenção desviante ou odiosa de a expor ou aduzir casos de validade duvidosa, o que só desvirtua o verdadeiro debate. Com efeito, só uma política da verdade e de total transparência, bem como uma atitude social de rigor pode pôr termo ao drama dos abusos de menores. Os obcecados só com os abusos na Igreja e os que negam a evidência deste crime hediondo nas estruturas eclesiais, têm um traço comum: o desprezo pelas vítimas. ´

Por fim, três apontamentos: a condenação do crime não pode automaticamente incluir a dos bispos por encobrimento, pois a obrigação moral que têm de denúncia não pode beliscar o sigilo sacramental nem o do foro interno extrassacramental; e, embora uma CIEAMI (nacional) faça trabalho sério e com resultados, as comissões diocesanas, regra geral, não tem essa possibilidade, quer por excessiva proximidade, quer por falta de recursos humanos devidamente preparados; e aos acusados tem de se lhes dar sempre conhecimentos de quem são as suas vítimas.

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Enfim, se vi a análise de Portocarrero como imperfeita, a minha não o é menos. É a vida!

2022.11.07 – Louro de Carvalho

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