segunda-feira, 14 de novembro de 2022

O suposto erro de Durão Barroso e de Vítor Constâncio na troika

 

No dia 10 de novembro, o primeiro-ministro admitiu processar Carlos Costa, ex-governador do Banco de Portugal (BdP) por afirmações ofensivas da sua honra, o que tem motivado reações partidárias que pretendem o escrutínio do caso, com a audição dos dois contendores.

O jornal Observador pré-publicou um excerto do livro O Governador, de Luís Rosa, que revisita os momentos mais marcantes do mandato de 10 anos do ex-governador do BdP. São revelados “factos até agora desconhecidos sobre a intervenção da troika, o caso Banco Espírito Santo e a resolução do Banif, entre outros temas”, bem como detalhes sobre as tensões “com José Sócrates, António Costa e Mário Centeno e as guerras com Ricardo Salgado e a família Espírito Santo”.

E Carlos Costa diz que que foi pressionado por António Costa para não retirar Isabel dos Santos do Banco BIC. O episódio remonta a abril de 2016, quando o governador do BdP informou a empresária, a maior acionista do BIC, e Fernando Teles, sócio da filha mais velha de José Eduardo dos Santos, ex-presidente de Angola, que tinham de se afastar do Conselho de Administração do Banco, no qual tinham uma participação de 20%, de forma a afastar o banco dos problemas que se passavam com o BIC Angola, sobretudo possíveis danos reputacionais, o que a empresária rejeitou, aduzindo ausência de legislação na lei portuguesa que a impedisse de ser administradora do BIC. Carlos Costa recorreu ao primeiro-ministro, que terá ficado ao lado dela.

Dois dias antes destes acontecimentos, fora anunciado ao mercado pelo La Caixa um acordo de venda da participação de 18,6% que a angolana detinha no BPI, o qual vendia a sua posição de 51,6% do Banco Fomento Angola a Isabel dos Santos, cumprindo a imposição do Banco Central Europeu (BCE), de exigir a redução da exposição da instituição a Angola. Tal acordo só foi possível pela legislação que acabava com a blindagem dos estatutos (iniciativa de António Costa).

No dia em que o excerto do livro foi divulgado, à entrada para a reunião da Comissão Política do Partido Socialista (PS), António Costa disse: “A única coisa que eu posso dizer é que, como é sabido, através do Observador, foram proferidas pelo doutor Carlos Costa declarações que são ofensivas da minha honra, do meu bom nome e da minha consideração.” E acrescentou que, tendo contactado Carlos Costa, este “não se retratou nem pediu desculpas”.

Porém, este caso o que tem de comum com o que está subjacente ao enunciado em epígrafe é o problema que também implica a banca, ou seja, as implicações da não aprovação parlamentar de um Programa de Estabilidade e Crescimento, em 2011, denominado PEC IV, matéria desenvolvida no livro, cuja apresentação foi agendada para o dia 15 de novembro.

Portugal assinou dois memorandos de entendimento (para um programa de ajustamento económico e financeiro) a 17 de maio de 2011, a fim de aceder a um resgate financeiro da troika de 78 mil milhões de euros. Passaram mais de 11 anos, mas o livro O Governador tem novos dados sobre os bastidores das negociações que levaram Portugal àquele dia. E um deles é o suposto erro de avaliação da Comissão Europeia e do BCE, bem como dos dois portugueses com posições de relevo nas duas instituições – erro que, no dizer o antigo governador do BdP, podia ter custado caro, dado que podia ter esgotar o tempo disponível para acionar um pedido de resgate.

Carlos Costa revela que o BdP foi posto de lado pelas instituições europeias que integravam a troika – a posição do Fundo Monetário Internacional (FMI) e de Dominique Strauss-Khan, seu diretor-geral, era outra – até ao pedido de resgate. E o antigo governador explica isso, dizendo que, na fase antecedente ao início das negociações formais do programa de assistência financeira, o BdP foi, em grande medida ignorado pelas instituições europeias. Tanto a Comissão Europeia, como o BCE não consultaram o BdP com a frequência e a intensidade espectáveis, embora o BCE tivesse consultado o governador sobre a carta que o presidente Jean-Claude Trichet endereçou ao primeiro-ministro José Sócrates, tal como aos primeiros-ministros de Itália e de Espanha.

As razões da subalternização do BdP, segundo Carlos Costa, serão o facto de o vice-presidente do BCE ser Vítor Constâncio, um português com acesso direto ao primeiro-ministro e que se perfilara como um mentor da política económica portuguesa, o que expunha Teixeira dos Santos, ministro das Finanças, e o governador do BdP ao risco de subalternização.

José Sócrates, em 2010 e 2011, reclamava ter o apoio das instituições europeias, e Carlos Costa admite que tal fosse verdadeiro, citando um telefonema de Jean-Claude Trichet, presidente do BCE, depois da rejeição do PEC IV e do Conselho Europeu em que Sócrates comunicava não assegurar a sua aprovação. No final do telefonema, Carlos Costa ficou persuadido de que Trichet tinha apostado tudo na aprovação do PEC IV e de que o primeiro-ministro tinha junto dele grande credibilidade. E admite como plausível que a aposta de Trichet refletisse o natural resultado de pedido de conselhos a Vítor Constâncio, na qualidade de vice-presidente do BCE.

Porém, considera que houve um erro de diagnóstico por parte do BCE e por parte da Comissão Europeia, um erro que nos podia ter custado caro, visto que podia ter esgotado o tempo disponível para acionar um pedido de resgate. E, dadas as vicissitudes políticas de então, não é de afastar que o triângulo Durão Barroso, Vítor Constâncio e José Sócrates tenha admitido a possibilidade de evitar o resgate ou de ter um programa diferente dos anteriores, não envolvendo o FMI.

Com este erro de avaliação, o pedido de resgate, que deveria ter sido feito no final de 2010 ou no início de 2011, foi efetivado no início de abril, um risco enorme para Portugal, segundo Carlos Costa, porque qualquer problema associado às negociações do plano de resgate poderia pôr em risco o reembolso de dívida e atirar a República para o incumprimento de pagamentos.

Dominique Strauss-Khan (DSK), na avaliação de Carlos Costa, foi elemento crucial na gestão da crise financeira, em particular na União Europeia (UE), influenciando, de forma determinante, o pensamento dos ministros das Finanças do Eurogrupo. E tinha ascendente em Angela Merkel, no Governo de França e na Comissão Europeia. E a sua autoridade no FMI era tal que lhe permitia aprovar acordos de assistência com os países ainda antes de os levar ao ‘board’ do Fundo.

A capacidade de DSK de diagnóstico e de resposta aos problemas, de negociação e de validação dos detalhes do programa de ajustamento foi a vantagem de que beneficiou a negociação do programa de assistência em Portugal. Quando Strauss-Khan saiu, a 18 de maio de 2011, já estava fechado tudo de substancial. Se as negociações não estivessem substancialmente fechadas, Carlos Costa, não sabe como nem quando se teriam fechado, dada a situação de menor definição que se instalou nas instâncias de direção do FMI. Isto é, se não estivessem fechadas, haveria o risco de não se conseguir cumprir o calendário de reembolso da dívida vincenda.

O FMI ocupou sempre o “lugar do condutor” no processo negocial com o Portugal e foi pela definição do envelope financeiro de assistência do Fundo – 26 mil milhões de euros – que o país acabou por ter um programa de 78 mil milhões de euros, quando se falava em 90 a 95 mil milhões de euros. Foi o FMI quem se apresentou mais equipado para fazer o diagnóstico e para elaborar o programa de assistência económica e financeira. Tinha a experiência que faltava às instituições europeiasDo lado europeu, o diálogo para a estabilização do sistema bancário foi conduzido pelo BCE, através de John Fell, ora diretor-geral adjunto para a Política Macroprudencial e Estabilidade Financeira, que teve o papel de porta-voz europeu na troika. De facto, como a Comissão Europeia esteve calada ou pouco interventiva neste ponto, o diálogo inicial foi travado com os representantes do FMI e com John Fell, do BCE.

O FMI comunicou que disponibilizava 26 mil milhões, o que, pela aplicação do princípio de paridade entre as três instituições, implicava que o programa não poderia contar com mais de 78 mil milhões de euros. Este teto tinha várias consequências, uma das quais estava relacionada com a ajuda à banca. O montante previsto para a capitalização dos bancos nacionais não resultou de cálculo prévio das suas necessidades de capital adicional. Segundo Carlos Costa, a opção por um modelo à irlandesa ou à espanhola, requereria um montante superior e disponibilizado à cabeça, montante que não seria possível encaixar dentro do envelope financeiro disponibilizado. E Carlos Costa acrescenta que, se esse modelo fosse seguido, o Estado tornar-se-ia o principal acionista dos bancos: era a reversão das privatizações, com impacto na dívida pública.

Carlos Costa suspeita que JohnFell terá defendido a adoção do modelo irlandês e o envolvimento do fundo norte-americano Blackrock. Mas o antigo governador do BdP considerou inaceitável a proposta de adoção do modelo irlandês, por não ser conciliável com o montante disponível para o programa de estabilização do sistema bancário, o que torna legítimo o seu questionamento sobre “se não haveria então investidores internacionais à espreita da aquisição, com elevado desconto, de instituições bancárias portuguesas”.

O Programa de Ajustamento foi regido por dois documentos principais: o Memorando de Políticas Económicas e Financeiras (MEFP), que constitui a base dos acordos com o FMI, e o Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política Económica (MoU), que é o documento oficial da Comissão Europeia e do BCE. Os dois documentos abordam os mesmos temas e espelham as mesmas decisões, mas o último apresenta maior grau de detalhe em relação à execução das medidas e aos prazos previstos. São os dois documentos que consagram o acordo entre a troika e o Governo minoritário do PS, secundado pelos partidos que lhe sucederam na governação: Partido Social Democrata (PSD) e Partido do Centro Democrático Social (CDS).

Pedro Silva Pereira e Eduardo Catroga trocaram cartas, quatro anos depois, acusando-se de serem os responsáveis pela vinda da troika e pela negociação do resgate. Silva Pereira alega que o resgate só ocorreu por o PSD ter chumbado o PEC IV em abril de 2011, inviabilizando o programa negociado com a Comissão Europeia e com Angela Merkel. E diz que o PSD foi parte importante das negociações, invocando entrevistas de Eduardo Catroga (do PSD) a chamar a si os louros da negociação. Porém, Não há dúvida de que o processo foi conduzido pelo governo Sócrates, com pouca influência do PSD. As entrevistas de Catroga a reclamar louros, eram pura propaganda, como o foi a declaração de Sócrates de que o memorando tinha evitado o pior.

Outra questão é saber se o PEC IV conseguiria evitar o resgate. Certamente que não. Portugal estava sob fogo dos investidores a meio de 2010, antes do primeiro resgate grego. Isso aconteceu por contágio deste e porque aumentáramos muito a dívida pública, sem se conseguirem ritmos de crescimento que permitissem antever a capacidade de a pagar. Desde aí até março de 2011, os juros da dívida em mercado secundário dispararam, levando as emissões de dívida do Estado a serem feitas a montantes muito elevados. E o Estado teve de voltar ao mercado de dívida com somas muito avultadas, suplantando o orçamentado. E sem financiamento, o Estado estrangularia. 

Obsessão pelo resgate ou obstinação na recusa. Quem tinha razão? Ia o país morrendo da cura!

2022.11.14 – Louro de Carvalho

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