quinta-feira, 18 de novembro de 2021

TC e Entidade das Contas e Financiamentos Políticos em belo imbróglio

 

Manuel Catarino denuncia, na edição deste dia 18 de novembro do “Tal & Qual”, sob a epígrafe “Baralha e torna a dar”, a dança de cadeiras entre Figueiredo Dias, até há pouco presidente da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP), que foi eleito pela Assembleia da República (AR) para juiz do Tribunal Constitucional (TC), e Fátima Mata-Mouros, até há pouco juíza do mesmo TC, e que foi nomeada presidente da ECFP, de que já tomou posse.

A predita dança das cadeiras não se limitou aos titulares. Com efeito, Mata-mouros levou consigo para vogal da ECFP a sua assessora no TC Lígia Ferro da Costa; e Figueiredo Dias levou consigo para assessora no TC a sua vogal na ECFP Mariana Simões Paixão.

Nisto João Paulo Batalha, da Associação Transparência e Integridade (associação cívica de utilidade pública, independente e sem fins lucrativos, representante portuguesa da Transparency International, rede global anticorrupção presente em mais de 100 países), vê a prova de que o TC, em vez de um contrapeso ético na vida política, “revela os piores vícios do poder político.    

O TC é o tribunal ao qual incumbe especificamente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional, cabendo-lhe apreciar a inconstitucionalidade e a ilegalidade, nos termos dos artigos 277.º/283.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), da lei orgânica do TC (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe deu a Lei Orgânica n.º 4/2019, de 13 de setembro) e a lei da organização do sistema judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto) (artigos 221.º e 223.º, da CRP; 6.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro; e 30.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto).

Com sede em Lisboa, o TC exerce a sua jurisdição no âmbito de toda a ordem jurídica portuguesa, sendo que as suas decisões são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as dos restantes tribunais e de quaisquer outras autoridades (artigos 1.º, 2.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro).

Composto por treze juízes (dez designados pela AR e três cooptados por estes), a sua competência, organização e funcionamento resultam do estipulado na Constituição e na Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (cf art.º 30.º/2, Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto).

A web página do TC refere que o TC “é um verdadeiro tribunal, tal como os demais tribunais previstos na Constituição”. Porém, por se tratar dum órgão constitucional a se, é mais que um tribunal; depois, “é um tribunal que apresenta importantes especificidades quanto à sua composição, competência e funcionamento”.

Como órgão constitucional a se, “tem uma posição e uma intervenção específicas no sistema constitucional do poder político”: declaração de inconstitucionalidade de normas jurídicas, nomeadamente, das legislativas, o que implica a sua cessação de vigência; competências quanto ao Presidente da República (PR), quanto aos referendos nacionais e locais, quanto aos partidos políticos, quanto aos titulares de cargos políticos e quanto às eleições.

Como tribunal, compartilha as caraterísticas próprias de todos os tribunais: é órgão de soberania (art.º 202.º da Constituição); é independente e autónomo, não está dependente nem funciona junto de qualquer órgão; os seus juízes são independentes e inamovíveis; as suas decisões impõem-se a qualquer outra autoridade. Mas, diferentemente dos demais, tem composição e competência definidas diretamente na CRP; os seus juízes são maioritariamente eleitos pela AR; dispõe de autonomia administrativa e financeira e de orçamento próprio, inscrito separadamente entre os “encargos gerais do Estado”; e define as questões de limitação da sua competência.

Na ordenação constitucional dos tribunais, o TC surge referido em primeiro lugar, logo no Título V (Tribunais) da Parte III da Lei Fundamental, precedendo as demais categorias de tribunais. Com efeito, dispõe o art.º 209.º da CRP, sob a epígrafe “Categorias de tribunais”:

1. Além do Tribunal Constitucional, existem as seguintes categorias de tribunais: a) O Supremo Tribunal de Justiça e os tribunais judiciais de primeira e segunda instância; b) O Supremo Tribunal Administrativo e os demais tribunais administrativos e fiscais; c) O Tribunal de Contas.

2. Podem existir tribunais marítimos e tribunais arbitrais e julgados de paz.”.

E no art.º 210.º, n.º 1, quando se afirma que o Supremo Tribunal de Justiça é o órgão superior da hierarquia dos tribunais judiciais, bem como no art.º 212.º, n.º 1, se afirma igualmente que o Supremo Tribunal Administrativo é o órgão superior da hierarquia dos tribunais administrativos e fiscais, logo se acrescenta, em ambos os casos, que tal sucede “sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional”.

Contudo, a CRP confere uma posição autónoma ao TC, a seguir, no Título VI (Tribunal Constitucional), onde ele aparece destacado, merecendo tratamento constitucional próprio, como um outro “poder do Estado”, ao mesmo nível do PR, da AR ou do Governo, enquanto os restantes tribunais são tratados em conjunto, no Título V.

Justamente por se tratar de um órgão de garantia da própria ordem jurídico-constitucional, a Lei Fundamental preocupou-se igualmente em definir desde logo as principais competências do TC (artigos 221.º e 223.º), bem como a sua composição e organização (artigos 222.º e 224.º), o que não se verifica, pelo menos em igual medida, em relação a qualquer outra categoria de tribunais.

Por seu turno, a ECFP “é um órgão independente que funciona junto do Tribunal Constitucional e tem como atribuição a apreciação e fiscalização das contas dos partidos políticos e das campanhas eleitorais para Presidente da República, para a Assembleia da República, para o Parlamento Europeu, para as Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas e para as autarquias locais(vd art.º 2.º Lei Orgânica n.º 2/2005, de 10 de janeiro, na redação que lhe deu a Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro).

Nos termos do art.º 6.º da referida Lei Orgânica, os membros são eleitos no Plenário do TC por iniciativa do seu presidente, devendo recolher o voto de pelo menos 8 membros do TC.

***

Ora, se ao PR compete cumprir e fazer cumprir Constituição (vd CRP, art.º 127.º/3), cabe ao TC a missão de guardião da constitucionalidade e da legalidade, sendo a instância operacional do cumprimento da Constituição e das leis. E, embora não haja nada de ilegal do ponto de vista formal, um código ético que subjaz às leis, embora nem sempre esteja explícito nelas, deveria ter obstado à predita dança de cadeiras, que funcionou na maior discrição e sem algazarra como se o TC fosse uma agência de emprego em circuitos fechado.

Do lado da ECFP, um órgão vital para a fiscalização dos dinheiros dos partidos e organizações similares, dependente do TC, era de esperar maior rigor ético e maior transparência e integridade. Terá sido a coabitação das duas entidades na mesma casa que gerou o conúbio denunciado pelo “Tal & Qual”?

Ora, se tantas vezes apontamos o dedo aos 230 deputados da AR por se emaranharem, não raro, em atitudes pouco éticas e até de legalidade duvidosa, com maioria de razão o devemos fazer aos inquilinos do Palácio Ratton. Com efeito, enquanto os deputados são muitos e alguns de formação académica e experiência sofríveis, os juízes do TC são apenas 13 pessoas; têm uma sólida formação académica no âmbito do Direito (professores de Direito, magistrados ou apenas juristas); dispõem de larga experiência política, académica e/ou profissional; e têm competências cimeiras no quadro da fiscalização da justiça constitucional e legal, sem se perderem nos casos e casinhos, como pode ocorrer nos outros tribunais. Por isso, se é de tolerar (?!) que os nossos representantes na AR reflitam os vícios e virtudes do povo que os elegeu, mas que os pode mandar embora ao fim de 4 anos ou até antes, àqueles cidadãos que têm a honra e o ónus de fiscalizar o produto do trabalho dos deputados e do Governo, não é de tolerar determinado tipo de arbitrariedades nos juízes do TC. Não os escolhemos diretamente, não os podemos destituir; apenas confiamos na sua competência e probidade, com base na confiança que temos no sistema que supostamente escolhe para magistrados deste alto coturno pessoas academicamente bem formadas e revestidas de experiência e bom senso.   

De resto, que importa a limitação de mandatos ou a figura do mandato único, se os titulares dos cargos públicos podem migrar de cargo para cargo sem concurso, sem escrutínio, sem veredicto popular? Ora, se devemos confiar nas instituições, mormente nas atinentes à justiça, também elas se devem apresentar credíveis e merecedoras da confiança dos cidadãos, não devendo estar a aplicar o rigor aos outros e elas ficarem com esqueletos escondidos no armário. E, no vertente caso, trata-se de eminente justiça, a constitucional.  

2021.11.18 – Louro de Carvalho

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