Manuel Catarino
denuncia, na edição deste dia 18 de novembro do “Tal & Qual”, sob a epígrafe “Baralha e torna a dar”, a dança de cadeiras entre Figueiredo Dias,
até há pouco presidente da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP), que foi eleito pela Assembleia da República (AR) para juiz do Tribunal Constitucional (TC), e Fátima Mata-Mouros, até há pouco juíza do mesmo
TC, e que foi nomeada presidente da ECFP, de que já tomou posse.
A predita dança
das cadeiras não se limitou aos titulares. Com efeito, Mata-mouros levou
consigo para vogal da ECFP a sua assessora no TC Lígia Ferro da Costa; e
Figueiredo Dias levou consigo para assessora no TC a sua vogal na ECFP Mariana
Simões Paixão.
Nisto João
Paulo Batalha, da Associação Transparência e Integridade (associação
cívica de utilidade pública, independente e sem fins lucrativos,
representante portuguesa da Transparency International, rede global
anticorrupção presente em mais de 100 países), vê a prova de que o TC, em vez de
um contrapeso ético na vida política, “revela os piores vícios do poder
político.
O TC é o
tribunal ao qual incumbe especificamente administrar a justiça em matérias de
natureza jurídico-constitucional, cabendo-lhe apreciar a inconstitucionalidade
e a ilegalidade, nos termos dos artigos 277.º/283.º da Constituição da
República Portuguesa (CRP), da lei orgânica do TC (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe deu a Lei Orgânica n.º 4/2019, de
13 de setembro) e
a lei da organização do sistema judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto) (artigos 221.º e
223.º, da CRP; 6.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro; e 30.º da Lei n.º
62/2013, de 26 de agosto).
Com sede em
Lisboa, o TC exerce a sua jurisdição no âmbito de toda a ordem jurídica
portuguesa, sendo que as suas decisões são obrigatórias para todas as entidades
públicas e privadas e prevalecem sobre as dos restantes tribunais e de
quaisquer outras autoridades (artigos 1.º, 2.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro).
Composto por
treze juízes (dez designados
pela AR e três cooptados por estes), a sua competência, organização e funcionamento resultam do
estipulado na Constituição e na Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (cf art.º 30.º/2, Lei n.º 62/2013, de
26 de agosto).
A web página
do TC refere que o TC “é um verdadeiro tribunal, tal como os demais tribunais
previstos na Constituição”. Porém, por se tratar dum órgão constitucional a se, é mais que um tribunal; depois, “é
um tribunal que apresenta importantes especificidades quanto à sua composição,
competência e funcionamento”.
Como órgão
constitucional a se, “tem uma
posição e uma intervenção específicas no sistema constitucional do poder
político”: declaração de inconstitucionalidade de normas jurídicas,
nomeadamente, das legislativas, o que implica a sua cessação de vigência;
competências quanto ao Presidente da República (PR), quanto aos referendos nacionais e locais, quanto aos partidos políticos,
quanto aos titulares de cargos políticos e quanto às eleições.
Como
tribunal, compartilha as caraterísticas próprias de todos os tribunais: é órgão
de soberania (art.º 202.º
da Constituição); é
independente e autónomo, não está dependente nem funciona junto de qualquer
órgão; os seus juízes são independentes e inamovíveis; as suas decisões
impõem-se a qualquer outra autoridade. Mas, diferentemente dos demais, tem composição
e competência definidas diretamente na CRP; os seus juízes são maioritariamente
eleitos pela AR; dispõe de autonomia administrativa e financeira e de orçamento
próprio, inscrito separadamente entre os “encargos gerais do Estado”; e define
as questões de limitação da sua competência.
Na ordenação
constitucional dos tribunais, o TC surge referido em primeiro lugar, logo no
Título V (Tribunais) da Parte III da Lei Fundamental, precedendo as demais
categorias de tribunais. Com efeito, dispõe o art.º 209.º da CRP, sob a
epígrafe “Categorias de tribunais”:
“1.
Além do Tribunal Constitucional, existem as seguintes categorias de tribunais: a)
O Supremo Tribunal de Justiça e os tribunais judiciais de primeira e segunda
instância; b) O Supremo Tribunal Administrativo e os demais tribunais
administrativos e fiscais; c) O Tribunal de Contas.
“2.
Podem existir tribunais marítimos e tribunais arbitrais e julgados de paz.”.
E no art.º
210.º, n.º 1, quando se afirma que o Supremo Tribunal de Justiça é o órgão
superior da hierarquia dos tribunais judiciais, bem como no art.º 212.º, n.º 1,
se afirma igualmente que o Supremo Tribunal Administrativo é o órgão superior
da hierarquia dos tribunais administrativos e fiscais, logo se acrescenta, em
ambos os casos, que tal sucede “sem prejuízo da competência própria do Tribunal
Constitucional”.
Contudo, a
CRP confere uma posição autónoma ao TC, a seguir, no Título VI (Tribunal Constitucional), onde ele aparece destacado,
merecendo tratamento constitucional próprio, como um outro “poder do Estado”,
ao mesmo nível do PR, da AR ou do Governo, enquanto os restantes tribunais são
tratados em conjunto, no Título V.
Justamente
por se tratar de um órgão de garantia da própria ordem jurídico-constitucional,
a Lei Fundamental preocupou-se igualmente em definir desde logo as principais
competências do TC (artigos
221.º e 223.º), bem como
a sua composição e organização (artigos 222.º e 224.º), o que não se verifica, pelo menos em igual medida, em relação a
qualquer outra categoria de tribunais.
Por
seu turno, a ECFP “é um órgão independente que
funciona junto do Tribunal Constitucional e tem como atribuição a apreciação e
fiscalização das contas dos partidos políticos e das campanhas eleitorais para
Presidente da República, para a Assembleia da República, para o Parlamento
Europeu, para as Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas e para as
autarquias locais” (vd
art.º 2.º Lei Orgânica n.º 2/2005, de 10 de janeiro, na redação que lhe deu a
Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro).
Nos termos do art.º 6.º da referida Lei Orgânica, os membros
são eleitos no Plenário do TC por iniciativa do seu presidente, devendo
recolher o voto de pelo menos 8 membros do TC.
***
Ora, se ao PR compete cumprir e fazer cumprir Constituição (vd CRP, art.º 127.º/3), cabe ao TC a missão de guardião da constitucionalidade e da
legalidade, sendo a instância operacional do cumprimento da Constituição e das
leis. E, embora não haja nada de ilegal do ponto de vista formal, um código
ético que subjaz às leis, embora nem sempre esteja explícito nelas, deveria ter
obstado à predita dança de cadeiras, que funcionou na maior discrição e sem
algazarra como se o TC fosse uma agência de emprego em circuitos fechado.
Do lado da ECFP, um órgão vital para a fiscalização dos dinheiros
dos partidos e organizações similares, dependente do TC, era de esperar maior
rigor ético e maior transparência e integridade. Terá sido a coabitação das
duas entidades na mesma casa que gerou o conúbio denunciado pelo “Tal & Qual”?
Ora, se tantas vezes apontamos o dedo aos 230 deputados da AR
por se emaranharem, não raro, em atitudes pouco éticas e até de legalidade
duvidosa, com maioria de razão o devemos fazer aos inquilinos do Palácio Ratton.
Com efeito, enquanto os deputados são muitos e alguns de formação académica e
experiência sofríveis, os juízes do TC são apenas 13 pessoas; têm uma sólida formação
académica no âmbito do Direito (professores de Direito,
magistrados ou apenas juristas); dispõem de larga experiência política, académica e/ou profissional;
e têm competências cimeiras no quadro da fiscalização da justiça constitucional
e legal, sem se perderem nos casos e casinhos, como pode ocorrer nos outros tribunais.
Por isso, se é de tolerar (?!) que os nossos
representantes na AR reflitam os vícios e virtudes do povo que os elegeu, mas
que os pode mandar embora ao fim de 4 anos ou até antes, àqueles cidadãos que
têm a honra e o ónus de fiscalizar o produto do trabalho dos deputados e do
Governo, não é de tolerar determinado tipo de arbitrariedades nos juízes do TC.
Não os escolhemos diretamente, não os podemos destituir; apenas confiamos na
sua competência e probidade, com base na confiança que temos no sistema que supostamente
escolhe para magistrados deste alto coturno pessoas academicamente bem formadas
e revestidas de experiência e bom senso.
De resto, que importa a limitação de mandatos ou a figura do
mandato único, se os titulares dos cargos públicos podem migrar de cargo para
cargo sem concurso, sem escrutínio, sem veredicto popular? Ora, se devemos
confiar nas instituições, mormente nas atinentes à justiça, também elas se
devem apresentar credíveis e merecedoras da confiança dos cidadãos, não devendo
estar a aplicar o rigor aos outros e elas ficarem com esqueletos escondidos no armário.
E, no vertente caso, trata-se de eminente justiça, a constitucional.
2021.11.18 – Louro de Carvalho
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