segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Da debilidade do sistema financeiro ou dos interesses do centrão

Depois da nacionalização e venda do BPN, da chegada ao fim do BPP e da resolução do BES por motivo de exposição ao GES e não venda do Novo Banco, veio agora como envenenada prenda de Natal a morte do BANIF. Para trás ficou a recapitalização do BCP, que se sucedeu a casos de desmando (Quem não se lembra da era de Berardo e outros?), do BPI e da CGD. E, depois da injeção de 1100 milhões de euros no BANIF em princípios de 2013, que não comportou uma simples recapitalização, mas a participação do Estado em 60,5% do capital da instituição, o cidadão comum não esperava tal sorte. Mais uma pedrada no sistema financeiro de Portugal!
Mas o sistema financeiro não é estruturado por lei, de modo a garantir a formação, a captação e a segurança das poupanças, bem como a aplicação dos meios financeiros necessários ao desenvolvimento económico e social (CRP, art.º 101.º)? E a economia é simples penúria.
Com a crise financeira mundial, a Europa acocorou-se e, sobretudo, os países sulistas, no pressuposto de que estavam a viver acima das possibilidades, tiveram que pagar a insuficiência financeira dos senhores da Europa. E, para que os contribuintes de cada um dos países com sistema financeiro a rebentar – não de dinheiro, mas de ar – inventou-se o mito da dívida soberana. Assim, o Estado responde pela sua dívida, pela das empresas e sobretudo pela banca.
Os bancos portugueses até 2010 afoitaram os sucessivos governos de Portugal aos projetos de obras públicas de interesse nacional e europeu – TGV, novo aeroporto internacional de Lisboa, submarinos e autoestradas – ora denominados empreendimentos faraónicos. A partir, de 2011, a banca chegou-se atrás e, em certa medida, forçou a intervenção da troika: FMI, Eurogrupo e Comissão Europeia. Misturando dívida pública com dívida privada (sobretudo da banca), o país foi sujeito a um programa de ajustamento financeiro, com um adiantamento financeiro de 78 mil milhões de euros, que implicava reformas estruturais, cortes na despesa pública, no consumo e na propriedade e intervenção do Estado – em três anos. E foi tido como bom programa!
Praticamente deixou de fazer sentido falar de dívida pública. Já nem sei se faz sentido distinguirmos dívida externa de dívida interna. Perante o colapso do sistema financeiro, o Estado, aliás o contribuinte, paga e pronto!
Grécia, Irlanda e Portugal passaram pelo programa de resgate – que na Grécia triplicou, sem luz definitiva no fim do túnel. Espanha foi sujeita a um programa de ajustamento do lado da banca (e consequentemente do sistema financeiro), com um apoio troikano contabilizado em 100 mil milhões de euros. De Itália e França diz-se que houve procedimento parecido, mas que não deu nas vistas. Irlanda teve saída limpa com sistema financeiro mais robusto.
Portugal, alegadamente à semelhança da Irlanda, logrou uma saída limpa – que agora se sabe ser apenas pseudopoliticamente limpa. A troika, embora sempre a fazer advertências, cooperou ativamente no embuste. Foi-se embora em maio de 2014, mas em julho do mesmo ano eclodiu o conflito do BES com resolução em 3 de agosto; e, um ano e quadrimestre depois, vem o caso BANIF. Quer dizer, o PAF (programa de ajustamento financeiro) deixou o sistema financeiro com as mesmas debilidades que as de antes.  
E a troika disponibilizou para a banca portuguesa uma fatia de 12 mil milhões de euros, de que foi utilizada cerca de metade na capitalização da CGD, do BPI e do BCP, bem como na injeção de mais de mil milhões no BANIF. Pensava-se que os bancos tinham recuperado a sua adultez e se tornaram capazes de corresponder ao objetivo constitucional, mas estávamos enganados.
O BES não se candidatou à recapitalização pela via da troika. A sua autossuficiência serviu para disfarçar a sua exposição ao esburacado GES e o adiamento da solução do caso, imputado à desatenção do BdP, disfarçou politicamente a situação para propiciar a saída limpa do regime do PAF. A comissão Parlamentar de Inquérito pôs a nu os erros e crimes de gestão e latrocínio e as contradições e faltas de memória dos intervenientes. E emergiu, cresceu e teve voz o grupo dos lesados, sem solução plausível, a não ser com a sugestão de peditório subscrito pelo então generoso Primeiro-Ministro. Os bancos (incluindo o banco público) constituíram o fundo de resolução com contribuição imediata e com empréstimo do Estado. O banco bom, “Novo Banco”, tinha e terá de ser vendido; e o banco mau, o dos ativos tóxicos terá solução no desaparecimento. Vendeu-se a ideia de que os contribuintes não seriam prejudicados, quando o dinheiro da troika há de ser pago por nós, o dinheiro do banco público nosso era e o dos outros bancos era lucro de que não há impostos para o Estado. E se Sérgio Monteiro vender o Novo Banco por preço muito aquém do valor do banco?
E o BANIF? Que se passou? Que tipo de solução se encontrou? Porquê agora?
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Dizem alguns que os problemas da banca portuguesa custaram ou vão custar cerca de 40 mil milhões de euros.
O caso das insuficiências do BANIF começou a ser badalado em finais de 2012, tendo sido introduzida a grande injeção de capital em janeiro de 2013. Passados uns meses da resolução do BES, a Comissão Europeia, melhor a sua Direção-Geral da concorrência (DGC) avisou o XIX Governo, que deixou seguir o enterro, até que a mesma DGC determinou um prazo para a resolução fixado para 31 de março do ano corrente. Mas as eleições não podiam ser toldadas por novo caso bancário. Agora, veio o ultimatum: ou o caso se resolvia até 20 de dezembro ou o inverno bancário congelaria em definitivo toda a atividade financeira do BANIF.
O Governador do Banco de Portugal (BdP) referiu que a resolução do BANIF é semelhante à do BES. Mas não o é de todo, pois: não se criou um novo banco (banco bom), vendeu-se uma parte por 150 milhões de euros; restou efetivamente um banco mau, designado por veículo de determinados ativos não especificados e encarregado do desenvolvimento do programa de reestruturação em curso no BANIF; o fundo de resolução apenas se encarregou de 20% dos custos, ficando o Estado (contribuintes) com as responsabilidades remanescentes – as mais volumosas – e emprestando ao fundo 489 milhões de euros; e o Governo não se escondeu por trás das responsabilidades do BdP, assumindo, ao invés, as responsabilidades na condução do processo e prometendo minimizar os custos para os contribuintes, que poderão atingir os 3 mil milhões de euros.
Por outro lado, a resolução do BANIF implicou a elaboração de um orçamento retificativo para a inscrição de um encargo de 2255 milhões de euros.
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Quem beneficiou desta aniquilação do BANIF em finais de 2015? Porque não podia passar a resolução para o ano de 2016? Beneficiaram os detentores de dívida sénior e os detentores de depósitos superiores a 100.000€, cuja situação e expectativas ficaram salvaguardadas. A partir de um de janeiro próximo futuro, as normas regulatórias de resolução sofrerão alterações e os que agora beneficiaram da resolução seriam chamados a cooperar à força. Nesse novo quadro, o Estado está impedido de pôr dinheiro no banco, antes de sacrificar depósitos superiores a 100.000€ e dívida sénior.
Mas, não tenhamos dúvidas, também beneficiou o bloco central de interesses: o Chairman era um ex-governante do PS; e um dos administradores executivos veio do BdP, o órgão de supervisão e regulação bancária. Tanto assim é que o orçamento retificativo foi votado no Parlamento pelos deputados do PS (o partido de que emergiu o XXI Governo, que detém a responsabilidade da condução positiva do processo) e pelos deputados do PSD da Madeira. O PSD, no dizer de Pedro Marques Lopes, no recente programa Eixo do Mal, na SIC Notícias, “esteve no limite da decência”, tendo optado pela abstenção para viabilizar o orçamento retificativo; e o CDS portou-se mal, demarcando-se do PSD a propósito da pior matéria, já que PSD e CDS são os responsáveis políticos pela “limpeza” da saída troikana – embuste em que a Comissão Europeia cooperou a meias para não prejudicar os resultados eleitorais dos dois filiados no PPE.
Quanto aos partidos à esquerda do PS e ao PAN – tendo a certeza de que o orçamento retificativo iria passar – votaram contra em nome dos seus princípios que emolduram o controlo público da banca, nomeadamente da banca intervencionada e a fim de levarem o ex-Primeiro-Ministro a fazer o mea culpa da responsabilidade política pelo adiamento da solução do BANIF. Por outro lado, os ditos partidos de esquerda preferiam, aliás como o PS, que a parte resolúvel do BANIF fosse absorvida pela CGD enquanto banco público. Porém, o PS apercebeu-se de que isto não era possível face às regras europeias, porque a CGD já tivera ajuda estatal. 
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Porque são os contribuintes chamados a salvar os bancos? Se o principal negócio dos bancos é emprestar dinheiro, transformando depósitos bancários (passivos líquidos) em empréstimos (ativos ilíquidos), é certo que a sua utilidade – canalizar poupanças para créditos a pessoas, famílias e empresas – comporta riscos e constitui a sua principal fragilidade, sobretudo quando a confiança se dilui ou desfaz. E, se os depositantes, enquanto fornecedores de dinheiro entram em pânico, não há banco que resista. Por isso, os contribuintes são chamados para garantir a confiança de que o resto do sistema bancário precisa para continuar a operar no mercado financeiro. Um banco em dificuldades, com a desconfiança gerada, só piorará. E quanto mais tempo se protelar a solução, pior sucederá.
Assim, torna-se necessário que Passos e Maria Luís Albuquerque se mantenham disponíveis para explicações políticas e não se encostem à Comissão Parlamentar de Inquérito. E, de uma vez por todas, o regulador terá de deixar de se escudar na lei ou na consciência e responder profissionalmente pela supervisão e regulação, sem preocupações pelos ciclos eleitorais.
No caso do BANIF, além da desvalorização das ações para níveis inéditos e dos rumores continuados, notícia da TVI durante horas em rodapé acabou por intensificar a desconfiança e os levantamentos ultrapassaram as expectativas. Essa irresponsável notícia não podia causar mais danos: a corrida ao BANIF foi intempestiva, com prejuízos de centenas de milhões de euros. E o caso tem de ser investigado, tal como o da gestão. Oxalá que a origem da fuga de informação não tenha estado no banco comprador, o principal detentor do capital daquela estação televisiva e a entidade que mais se “entesou” com o Estado no caso dos contratos swap.
Por seu turno, Lobo Xavier, no programa Quadratura do Círculo, do dia 24 na SIC Notícias, não se coibiu, falando do BANIF, de apontar a gestão danosa e criminosa que passou pelo sistema financeiro apelidando de bandidos e corruptos alguns administradores – embora não tenha metido tudo no mesmo saco.
Não basta uma Comissão Parlamentar de Inquérito ou uma investigação da ERC. É necessário que a Justiça funcione com celeridade e eficácia.
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Afinal, é o sistema financeiro que está depauperado ou é o país governado pelo bloco central de interesses – incluindo os mecanismos de regulação e supervisão – que está a saque, sujeito à ambição dos corruptos, dos gestores de negócios dos outros. Será que é necessário imolar sacrificialmente nas aras do deus-dinheiro tantas vítimas humanas?
Don Lucchesi, em O Padrinho III, declara que “as finanças são uma arma; política é saber quando puxar o gatilho”. Porém, a arte política em Portugal consiste em dar ao gatilho com a mão escondida por entre os arbustos do sistema financeiro envoltos nas sombras da inevitabilidade e gritando a tranquilidade de consciência ou a falta de memória.

2015.12.27 – Louro de Carvalho

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