terça-feira, 8 de dezembro de 2015

A primazia da graça

Em tempo em que estudava as cartas de Paulo, anotei junto de um dos professores o quase silêncio do apóstolo missionário em relação à mãe de Jesus, uma vez que a única referência – e bem pouco explícita – se encontra no segmento da Carta aos Gálatas que refere:
Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob o domínio da Lei, para resgatar os que se encontravam sob o domínio da Lei, a fim de recebermos a adoção de filhos” (Gl 4,4-5).

O aludido professor respondeu-me que este pouco aparente significa o máximo e o melhor que se podia dizer da mãe do Messias: o Filho de Deus é enviado pelo Pai através do nascimento de mulher para, libertando-nos das teias da Lei, nos tornar filhos de Deus.
Pensando bem isto é o máximo e o melhor, pois configura a maior expressão da graça, enquanto favor de Deus à humanidade e comunhão de Deus com ela e a atraí-la para a entrada na sua intimidade. E, se houver alguém que fique plenamente repleto desta graça, granjeará o máximo de felicidade e experienciará a melhor alegria em Deus: Laetemur.
***
E quem é a mulher de que nasceu o Filho de Deus?
O padre Rômulo Cândido de Souza, em seu livro Palavra, Parábola (Aparecida-SP1990), apresenta ao Dr. Samuel, um rabino entendido nas línguas antigas, em cujo contexto foram surgindo os livros bíblicos, a questão do possível exagero dos cristãos em relação ao modo como falam da mãe de Jesus.
O rabino, assegurando que um poema, sobretudo se fala da mãe nunca é um exagero, esclareceu que os poetas (e os poetas são construtores do belo firmado no verdadeiro que os fenómenos contêm, digo eu) do mundo antigo e moderno sempre falaram da mãe (e da mulher em geral) com elevação e carinho. Superabundam as hipérboles sobre a mãe e a mulher nas lendas, mitos, poemas, canções, telas e esculturas em todos os tempos – o que não tem incomodado ninguém.
Ora, os egípcios legaram à posteridade a imagem hieroglífica da mãe a amamentar o filho e os cuneiformes cedem à mulher o mesmo símbolo que utilizam para representar, em geral, as divindades, a estrela; na Capela Sistina, Eva é figurada como envolvida por anjos e abraçada a Deus; o livro do Apocalipse descreve como um grande sinal do céu “a mulher vestida de sol, com a lua debaixo dos pés e uma coroa de doze estelas na cabeça” (Ap 12,1); e as imagens que mais e melhor concitam a piedade popular são as que figuram a Virgem com o Menino.
Ela não é a lua nem qualquer estrela, nem a lua é a deusa do mal, como pensavam muitos dos antigos. Mas esta mulher está envolvida pelo sol enquanto símbolo de Deus e coroada de doze estrelas (a plenitude da glória ou graça de Deus). Assim, vestida de sol e coroada de estrelas – ou seja envolvida pela força da graça de Deus – ela é capaz de ter a lua (o mal) sob os seus pés e vencer “o dragão de fogo com sete cabeças e dez chifres” (Ap 12,3).
O anjo Gabriel saudou a donzela de Nazaré como a “cheia de graça” (κεχαριτωμένη), depois de lhe dirigir o grito messiânico “Alegra-te” (χαϊρε), garantindo-lhe que o Senhor está com ela (‘Ο Κύριος μετά σοϋ) e que ela achou graça (χάρις) diante de Deus. Por isso, tem razão o Papa Francisco quando hoje, dia 8, na homilia da celebração eucarística da Solenidade da Imaculada Conceição de Maria, disse que iria ter “a alegria de abrir a Porta Santa da Misericórdia” sob o signo da “Palavra de Deus escutada”, a qual “põe em evidência a primazia da graça”. Sublinha o Santo Padre que o tema mais vezes aflorado nas leituras da liturgia desta Solenidade (Gn 3,9-15; Ef 1,36-11-12; Lc 1,26-38) remete para a saudação de Gabriel a uma jovem mulher, surpreendida e perturbada, indicando o mistério que a iria envolver: “Ave, ó cheia de graça” (Lc 1,28).
Antes de mais, diz o Papa, “a Virgem Maria é convidada a alegrar-Se com aquilo que o Senhor realizou n’Ela”, envolvendo-a na sua graça e tornando-a digna de ser a mãe do Messias. É o poder da plenitude da graça”, que é capaz de transformar o coração, permitindo-lhe realizar um ato tão grande que muda a história da humanidade”.
Por seu turno, a Virgem de Nazaré, reconhecendo que o Senhor nela operou grandes maravilhas a ponto de ser proclamada bem-aventurada por todas as gerações (O próprio nome Maria designa muitas mulheres e entra na composição do de homens), entoou o cântico da misericórdia divina, síntese das promessas feitas ao povo de Deus e que agora têm pleno cumprimento e cuja manifestação se estende de geração em geração (cf Lc 1,46-55). Mas não se fica por esta atitude cantante; adere ao projeto divino numa total disponibilidade e, intitulando-se “serva do Senhor”, porfia por que se faça em si tudo quanto o mensageiro de Deus lhe diz (cf Lc 1,38). É a correspondência à graça divina e o compromisso com o projeto de misericórdia de Deus: exaltação dos humildes e cumulação de bens em favor dos famintos. É neste contexto de disponibilidade e compromisso que se entende a visita de Maria a Isabel que estava a braços com uma gravidez em idade provecta.
***
A mãe de Jesus tem o nome de Maria, em grego, Μαριάμ e no hebraico Miriam. Diz Rômulo de Souza, acima referido, que os exegetas e linguistas, baseados na língua hebraica, encontram umas sessenta interpretações para este nome. Registam-se, para já dois autores:
Ana Belo, em Mil e tal nomes próprios (Arteplural, edições: 1997), coloca duas hipóteses para a sua etimologia a partir do hebraico: derivaria de Miriam, nome formado por mar (mestre) e ram (poderoso); ou da mesma palavra Miriam a significar “vidente”.
Por seu turno, Orlando Neves, no seu Dicionário de nomes próprios (Editorial Notícias: 2002), assentando na índole controversa da sua origem, defende a derivação deste nome do hebraico Miriam, embora admita a sua origem egípcia a partir de mry, com o significado de “amar”. Entretanto, também afirma que, segundo as raízes semíticas, poderia significar “a rebelde”, “a forte”, “a que se eleva”, “a vidente”, “a profetiza”, “a senhora”. Por outro lado, põe a hipótese de provir de mar yam, a significar “gota do mar”, o que explicaria as equivalentes expressões latinas stilla maris ou stella maris (estrela do mar).
Porém, o susodito autor brasileiro atesta que o nome de Maria, no hebraico Miriam, tem origem egípcia e é bastante comum nos monumentos antigos, significando “Queridinha do Papai”. Porém, salienta que, apesar de ser muito comum no antigo Egito, só ocorre uma vez no Antigo Testamento e é para designar a irmã de Moisés, filha de ’AM.RÂM. E ensina que MIR, em egípcio significava “querido”, “muito amado”, “preferido”, “predileto”. Assim, os homens piedosos, nomeadamente reis e príncipes, colocavam no seu nome o testemunho da sua piedade em jeito de oração ao deus a quem privilegiavam na sua oração: MIRI.AMON, querido do deus Amon; MIRI.RÁ, querido do deus Sol; MIRI.USIRE, querido do deus Osíris; MIRI.ESE, querido da deusa Ísis; MIRI.TUT, querido do deus Thot; MIRI.HOR, querido do deus Hórus; MIRI.HATOR, querido do deus Hator; MIRI.MAUT, querido da deusa Mut.
É claro que o pai desta criança Miriam se chama ’AM.RÂM. A menina é, pois, a querida de AM (abreviação de ’AM.RÂM), a querida do Papai. E não haverá ninguém que chame ingénuo ou excessivo a pai que chame assim uma filha sua.
Avançando um pouco mais e considerando tanto o dinamismo do empréstimo linguístico como o da evolução semântica, deve referir-se que Miriam é um composto de egípcio e hebraico: Miri, em egípcio, quer dizer “querida”, “amiga”; e ’AM.RÂM, em hebraico, significava “povo ilustre”, “nobre nação”. Então Miriam tem esta profusão de variantes de sentido: querida de AM; querida de ’AM.RÂM; querida de Papai (AM); querida do Povo (AM); querida dum Povo Ilustre (’AM.RÂM).
E, tendo em conta que os verbos egípcios, na sua forma genérica, tanto podem ser ativos como passivos, Miriam, em sentido ativo pode ser: aquela que ama o Papai (AM); aquela que ama o Povo (AM); aquela que ama um Povo Ilustre (’AM.RÂM); e, num sentido de maior proximidade, amiga do povo ou a honra do nosso povo, como Judite (cf Jdt 15,9).
O nome de Miriam, nos textos neotestamentários, aplica-se à mãe de Jesus e conservou-se no círculo familiar dela. São João menciona Maria de Kléopas (Jo 19,25), a irmã da mãe de Jesus. Ora, Kléopas e Kleópatra traduzem para grego o hebraico ’AM.RÂM (“povo ilustre”, “nobre nação”). Assim, os cristãos podem chamar à mãe de Jesus, de entre os nomes acima referidos, os que forem da sua maior preferência: querida de Deus Pai, amiga de Deus Pai, querida do Povo e amiga do Povo.
***
Tanto a etimologia de “Maria” como o contexto da mãe de Jesus decorrem dentro do círculo íntimo de família. Da relação Pai-filha, vigente no Egito e em Nazaré, passa a caraterizar relação mãe-filho, como demonstram as expressões utilizadas: sua mãe ou mãe de Jesus (Mt 2,11.13.14.20.21; Lc 2,34.48.51; Jo 19,25).
Quando Rômulo de Souza comparou o pouco que Lucas escreveu sobre Maria, cabendo numa página, com os mais de cinco mil versos de José de Anchieta, o Dr. Samuel assegurou que Anchieta não disse mais nem melhor que Lucas e afirmou que aquilo que Lucas disse da mãe de Jesus, cabendo numa página, se sintetiza em três palavras: ARCA DA ALIANÇA (como se diz na ladainha lauretana).
O texto mariano (nunca exclusivamente mariano) de Lucas tem paralelo com o 1.º Livro da Crónicas (1Cr 13ss) e com o cap. final do Livro do Êxodo (sobretudo Ex 40,1.17-21), uma vez que Lucas, no seu profundo conhecimento do ser e missão de Maria no cumprimento das profecias veterotestamentárias em Cristo, resolveu comparar a mãe de Jesus com a Arca da Aliança.
Assim, a leitura das perícopas referentes ao Anúncio do Nascimento de Jesus (Lc 1,26-38), Visita de Maria a Isabel (Lc 1,39-45) e Cântico de Maria (Lc 1,46-56) permite o levantamento de alguns dos tópicos mais significativos: o diálogo Gabriel-Maria; a pertença de Maria à Casa de David; a designação de Cheia de Graça e a presença do Senhor em Maria; o nome do seu filho Jesus a significar “a Salvação de Deus”; os atributos de Jesus – o “Santo”, o “Filho do Altíssimo”; a declaração de que o “Espírito Santo” e o “Poder do Altíssimo” cobrirão Maria com a sua “Sombra”; a asserção de que “a Deus nada é impossível”; a disponibilidade da “Serva do Senhor” para o cumprimento da “Palavra que lhe vem de Deus”; a “Visita de Maria a Isabel” a quem esta reconhece como a “Mãe do Senhor, exaltando-lhe a “fé em tudo o que lhe foi dito da parte do Senhor”; o facto de “o menino ter saltado de alegria” no seio de Isabel com a aproximação de Maria; a permanência de Maria em casa de Isabel durante “três meses”; e o “cântico do Magnificat”, a recordar as promessas de Deus a Abraão, semelhante ao cântico de Ana, mãe de Samuel (1Sm 2,1-10), ao de David, quando a Arca da Aliança estava em Jerusalém (2Sm 7,17-29), e ao de Zacarias, pai de João Batista, aquando do nascimento de João (Lc 1,68-79).
Pode, pois, estabelecer-se o paralelo entre as alusões de Lucas com as do 1.º Livro das Crónicas:
- A Arca da Aliança ficou três meses na casa de Obede.Dom; Maria ficou três meses na casa de Isabel e Zacarias;
- Obede.Dom significa ‘Servo de Edom’; Maria declarou-se ante o anjo ‘Serva do Senhor’ ou ‘Serva de Adom’ – uma espécie de trocadilho hebraico entre ‘servo de Edom’ e ‘serva de Adom’;
- David exclamou, “Como en­trará a Arca do Senhor em minha casa?” (2Sm 6,9); Isabel exclama, “Donde me é dado que venha ter comigo a Mãe do meu Senhor?”;
- Todo o povo fez festa com aclamações músicas e danças, a ponto de o próprio David dançar e saltar diante da Arca da Aliança, dizendo que não se envergonha de dançar diante do Senhor (2Sm 6,21); João Batista, no ventre materno, salta ante a presença de Maria, a nova e viva Arca da Aliança, que transporta em si o Salvador;
- O profeta Natã revelou a David o destino da Casa de David (Teu trono será eterno, pois o teu sucessor me edificará uma casa); o anjo visita uma virgem da Casa de David e diz-lhe que seu filho receberá o trono de David e o seu reinado será eterno;
- David entoa um cântico de louvor e júbilo perante a promessa divina; Maria e Zacarias entoam o mesmo tipo de hino ante o cumprimento das promessas da parte de Deus.

Maria, enquanto Arca da Aliança, é a realização da presença de Deus no seio do seu Povo. Esta realidade é significada por várias expressões como: habitação de Deus (Shekináh); glória de Deus (Kabôd Iahvéh); rosto de Deus (Fanuel); companhia de Deus (Emmanuel); e omnipotência de Deus (Gabriel).
A Arca da Aliança era a única habitação que Deus tinha para acompanhar os homens, a partir de tendas, até que Salomão empreendeu a construção do Templo. A Arca da Aliança era a garantia ambulante das bênçãos divinas. Colocada no tabernáculo (a tenda central), fazia desse lugar o “Santo dos Santos”, o lugar onde Deus mora. É este agora o papel de Maria – ser o Novo Templo de Deus, o lugar onde Deus mora, que ela conduz para todo o lado (o surto de aparições o atesta). Esta presença de Deus, a partir de agora, acontece através de pessoas e não só de coisas.
***
Assim, compreender-se-á melhor a razão de ser da Imaculada – sem qualquer mancha de pecado desde o início de sua vida. Como afirmou o Papa, “a festa da Imaculada Conceição exprime a grandeza do amor divino”. E Francisco explica:
“Deus não é apenas Aquele que perdoa o pecado, mas, em Maria, chega até a evitar a culpa original, que todo o homem traz consigo ao entrar neste mundo. É o amor de Deus que evita, antecipa e salva. O início da história do pecado no Jardim do Éden encontra solução no projeto de um amor que salva. As palavras do Génesis levam-nos à experiência diária que descobrimos na nossa existência pessoal.”

E mais adiante, escorando-se no protoevangelho, “Ele te esmagará a cabeça” (Gn 3, 15):
“A promessa da vitória do amor de Cristo encerra tudo na misericórdia do Pai. Sobre isto, não deixa qualquer dúvida a palavra de Deus que ouvimos. Diante de nós, temos a Virgem Imaculada como testemunha privilegiada desta promessa e do seu cumprimento.”.
***
É tudo efetivamente resultado da Graça divina, ou seja, do amor misericordioso de Deus, que nos apela ao reconhecimento da misericórdia divina e ao seu exercício junto dos irmãos.
Cabe à Igreja, por desígnio do Salvador e à semelhança da Mãe de Jesus, tornada Mãe da Igreja, progredir no esforço do estado ideal de imaculada e levar Cristo-Palavra e Cristo-Homem-Deus a todos os que dele precisam e provocar este encontro do Cristo Salvador com o Cristo que palpita sofre na pessoa de cada um dos redimidos. O Papa assim disse a este respeito hoje:
Em qualquer lugar onde houver uma pessoa, a Igreja é chamada a ir lá ter com ela, para lhe levar a alegria do Evangelho e levar a Misericórdia e o perdão de Deus”.

2015.12.08 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário