Em tempo em que
estudava as cartas de Paulo, anotei junto de um dos professores o quase
silêncio do apóstolo missionário em relação à mãe de Jesus, uma vez que a única
referência – e bem pouco explícita – se encontra no segmento da Carta aos
Gálatas que refere:
“Quando chegou a
plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob o domínio da Lei, para resgatar
os que se encontravam sob o domínio da Lei, a fim de recebermos a adoção de
filhos” (Gl 4,4-5).
O
aludido professor respondeu-me que este pouco aparente significa o máximo e o
melhor que se podia dizer da mãe do Messias: o Filho de Deus é enviado pelo Pai
através do nascimento de mulher para, libertando-nos das teias da Lei, nos
tornar filhos de Deus.
Pensando
bem isto é o máximo e o melhor, pois configura a maior expressão da graça,
enquanto favor de Deus à humanidade e comunhão de Deus com ela e a atraí-la
para a entrada na sua intimidade. E, se houver alguém que fique plenamente
repleto desta graça, granjeará o máximo de felicidade e experienciará a melhor
alegria em Deus: Laetemur.
***
E
quem é a mulher de que nasceu o Filho de Deus?
O
padre Rômulo Cândido de Souza, em seu livro Palavra,
Parábola (Aparecida-SP1990), apresenta ao Dr.
Samuel, um rabino entendido nas línguas antigas, em cujo contexto foram
surgindo os livros bíblicos, a questão do possível exagero dos cristãos em
relação ao modo como falam da mãe de Jesus.
O
rabino, assegurando que um poema, sobretudo se fala da mãe nunca é um exagero,
esclareceu que os poetas (e os poetas são construtores do belo firmado no verdadeiro
que os fenómenos contêm, digo eu) do mundo antigo e moderno sempre falaram da mãe
(e da mulher
em geral)
com elevação e carinho. Superabundam as hipérboles sobre a mãe e a mulher nas
lendas, mitos, poemas, canções, telas e esculturas em todos os tempos – o que
não tem incomodado ninguém.
Ora,
os egípcios legaram à posteridade a imagem hieroglífica da mãe a amamentar o
filho e os cuneiformes cedem à mulher o mesmo símbolo que utilizam para
representar, em geral, as divindades, a estrela; na Capela Sistina, Eva é
figurada como envolvida por anjos e abraçada a Deus; o livro do Apocalipse
descreve como um grande sinal do céu “a mulher vestida de sol, com a lua
debaixo dos pés e uma coroa de doze estelas na cabeça” (Ap 12,1); e as imagens que mais
e melhor concitam a piedade popular são as que figuram a Virgem com o Menino.
Ela
não é a lua nem qualquer estrela, nem a lua é a deusa do mal, como pensavam
muitos dos antigos. Mas esta mulher está envolvida pelo sol enquanto símbolo de
Deus e coroada de doze estrelas (a plenitude da glória ou graça de Deus). Assim, vestida de sol
e coroada de estrelas – ou seja envolvida pela força da graça de Deus – ela é
capaz de ter a lua (o mal) sob os seus pés e vencer “o dragão de fogo com sete cabeças e
dez chifres” (Ap
12,3).
O
anjo Gabriel saudou a donzela de Nazaré como a “cheia de graça” (κεχαριτωμένη), depois de lhe dirigir
o grito messiânico “Alegra-te” (χαϊρε), garantindo-lhe que o
Senhor está com ela (‘Ο Κύριος μετά σοϋ) e que ela achou graça (χάρις) diante de Deus. Por isso, tem razão o Papa Francisco quando
hoje, dia 8, na homilia da celebração eucarística da Solenidade da Imaculada
Conceição de Maria, disse que iria ter “a alegria de abrir a Porta Santa da
Misericórdia” sob o signo da “Palavra de Deus escutada”, a qual “põe em
evidência a primazia da graça”. Sublinha o Santo Padre que o tema
mais vezes aflorado nas leituras da liturgia desta Solenidade (Gn 3,9-15; Ef 1,36-11-12;
Lc 1,26-38)
remete para a saudação de Gabriel a uma jovem mulher, surpreendida e perturbada,
indicando o mistério que a iria envolver: “Ave,
ó cheia de graça” (Lc 1,28).
Antes
de mais, diz o Papa, “a Virgem Maria é convidada a alegrar-Se com aquilo que o
Senhor realizou n’Ela”, envolvendo-a na sua graça e tornando-a digna de ser a
mãe do Messias. É o poder da “plenitude
da graça”, que “é capaz de transformar o coração,
permitindo-lhe realizar um ato tão grande que muda a história da humanidade”.
Por
seu turno, a Virgem de Nazaré, reconhecendo que o Senhor nela operou grandes
maravilhas a ponto de ser proclamada bem-aventurada por todas as gerações (O próprio nome Maria designa muitas mulheres e entra na
composição do de homens), entoou o cântico da misericórdia divina, síntese das promessas
feitas ao povo de Deus e que agora têm pleno cumprimento e cuja manifestação se
estende de geração em geração (cf Lc 1,46-55). Mas não se fica por esta atitude cantante; adere ao
projeto divino numa total disponibilidade e, intitulando-se “serva do Senhor”,
porfia por que se faça em si tudo quanto o mensageiro de Deus lhe diz (cf Lc 1,38). É a correspondência à
graça divina e o compromisso com o projeto de misericórdia de Deus: exaltação
dos humildes e cumulação de bens em favor dos famintos. É neste contexto de
disponibilidade e compromisso que se entende a visita de Maria a Isabel que
estava a braços com uma gravidez em idade provecta.
***
A
mãe de Jesus tem o nome de Maria, em grego, Μαριάμ e no hebraico Miriam. Diz Rômulo de Souza, acima
referido, que os exegetas e linguistas, baseados na língua hebraica, encontram
umas sessenta interpretações para este nome. Registam-se, para já dois autores:
Ana
Belo, em Mil e tal nomes próprios (Arteplural, edições: 1997), coloca duas hipóteses
para a sua etimologia a partir do hebraico: derivaria de Miriam, nome formado por mar
(mestre) e ram (poderoso); ou da mesma palavra Miriam
a significar “vidente”.
Por
seu turno, Orlando Neves, no seu Dicionário
de nomes próprios (Editorial Notícias: 2002), assentando na índole controversa da sua
origem, defende a derivação deste nome do hebraico Miriam, embora admita a sua origem egípcia a partir de mry, com o significado de “amar”.
Entretanto, também afirma que, segundo as raízes semíticas, poderia significar
“a rebelde”, “a forte”, “a que se eleva”, “a vidente”, “a profetiza”, “a senhora”.
Por outro lado, põe a hipótese de provir de mar
yam, a significar “gota do mar”, o que explicaria as equivalentes
expressões latinas stilla maris ou stella maris (estrela do mar).
Porém,
o susodito autor brasileiro atesta que o nome de Maria, no hebraico Miriam,
tem origem egípcia e é bastante comum nos monumentos antigos, significando
“Queridinha do Papai”. Porém, salienta que, apesar de ser muito comum no antigo
Egito, só ocorre uma vez no Antigo Testamento e é para designar a irmã de
Moisés, filha de ’AM.RÂM. E ensina
que MIR, em egípcio significava
“querido”, “muito amado”, “preferido”, “predileto”. Assim, os homens piedosos,
nomeadamente reis e príncipes, colocavam no seu nome o testemunho da sua
piedade em jeito de oração ao deus a quem privilegiavam na sua oração: MIRI.AMON,
querido do deus Amon; MIRI.RÁ,
querido do deus Sol; MIRI.USIRE, querido do deus Osíris; MIRI.ESE, querido da
deusa Ísis; MIRI.TUT, querido do deus Thot; MIRI.HOR, querido do deus Hórus; MIRI.HATOR,
querido do deus Hator; MIRI.MAUT, querido da deusa Mut.
É
claro que o pai desta criança Miriam
se chama ’AM.RÂM. A menina é, pois, a
querida de AM (abreviação de ’AM.RÂM), a querida do Papai. E
não haverá ninguém que chame ingénuo ou excessivo a pai que chame assim uma
filha sua.
Avançando
um pouco mais e considerando tanto o dinamismo do empréstimo linguístico como o
da evolução semântica, deve referir-se que
Miriam é um composto de egípcio e hebraico: Miri, em egípcio, quer dizer “querida”, “amiga”; e ’AM.RÂM, em hebraico, significava “povo
ilustre”, “nobre nação”. Então Miriam tem
esta profusão de variantes de sentido: querida de AM; querida de ’AM.RÂM; querida
de Papai (AM); querida do Povo (AM); querida dum Povo Ilustre (’AM.RÂM).
E,
tendo em conta que os verbos egípcios, na sua forma genérica, tanto podem ser
ativos como passivos, Miriam, em
sentido ativo pode ser: aquela que ama o Papai (AM); aquela que ama o Povo (AM); aquela que ama um Povo
Ilustre (’AM.RÂM); e, num sentido de maior proximidade,
amiga do povo ou a honra do nosso povo, como Judite (cf Jdt 15,9).
O
nome de Miriam, nos textos
neotestamentários, aplica-se à mãe de Jesus e conservou-se no círculo familiar
dela. São João menciona Maria de Kléopas (Jo 19,25), a irmã da mãe de Jesus. Ora, Kléopas e
Kleópatra traduzem para grego o hebraico ’AM.RÂM
(“povo
ilustre”, “nobre nação”). Assim, os cristãos podem chamar à mãe de Jesus, de entre os
nomes acima referidos, os que forem da sua maior preferência: querida de Deus Pai, amiga de Deus Pai, querida do Povo e amiga do
Povo.
***
Tanto
a etimologia de “Maria” como o contexto da mãe de Jesus decorrem dentro do
círculo íntimo de família. Da relação Pai-filha, vigente no Egito e em Nazaré,
passa a caraterizar relação mãe-filho, como demonstram as expressões
utilizadas: sua mãe ou mãe de Jesus (Mt 2,11.13.14.20.21; Lc
2,34.48.51; Jo 19,25).
Quando
Rômulo de Souza comparou o pouco que Lucas escreveu sobre Maria, cabendo numa
página, com os mais de cinco mil versos de José de Anchieta, o Dr. Samuel
assegurou que Anchieta não disse mais nem melhor que Lucas e afirmou que aquilo
que Lucas disse da mãe de Jesus, cabendo numa página, se sintetiza em três
palavras: ARCA DA ALIANÇA (como se diz na ladainha lauretana).
O
texto mariano (nunca exclusivamente mariano) de Lucas tem paralelo com o 1.º Livro da
Crónicas (1Cr 13ss) e com o cap. final do Livro do Êxodo (sobretudo Ex 40,1.17-21), uma vez que Lucas, no
seu profundo conhecimento do ser e missão de Maria no cumprimento das profecias
veterotestamentárias em Cristo, resolveu comparar a mãe de Jesus com a Arca da
Aliança.
Assim,
a leitura das perícopas referentes ao Anúncio do Nascimento de Jesus (Lc 1,26-38), Visita de Maria a
Isabel (Lc 1,39-45) e Cântico de Maria (Lc 1,46-56) permite o levantamento
de alguns dos tópicos mais significativos: o diálogo Gabriel-Maria; a pertença de Maria à Casa de David; a designação de Cheia
de Graça e a presença do Senhor em
Maria; o nome do seu filho Jesus
a significar “a Salvação de Deus”; os
atributos de Jesus – o “Santo”, o “Filho do Altíssimo”; a declaração de que
o “Espírito Santo” e o “Poder do Altíssimo” cobrirão Maria com a
sua “Sombra”; a asserção de que “a Deus nada é impossível”; a
disponibilidade da “Serva do Senhor”
para o cumprimento da “Palavra que lhe
vem de Deus”; a “Visita de Maria a
Isabel” a quem esta reconhece como a “Mãe
do Senhor, exaltando-lhe a “fé em
tudo o que lhe foi dito da parte do Senhor”; o facto de “o menino ter saltado de alegria” no seio
de Isabel com a aproximação de Maria; a permanência de Maria em casa de Isabel
durante “três meses”; e o “cântico do Magnificat”, a recordar as
promessas de Deus a Abraão, semelhante ao cântico de Ana, mãe de Samuel (1Sm 2,1-10), ao de David, quando a
Arca da Aliança estava em Jerusalém (2Sm 7,17-29), e ao de Zacarias, pai de João Batista, aquando
do nascimento de João (Lc 1,68-79).
Pode,
pois, estabelecer-se o paralelo entre as alusões de Lucas com as do 1.º Livro
das Crónicas:
- A Arca da
Aliança ficou três meses na casa de Obede.Dom; Maria ficou três meses na casa de Isabel e Zacarias;
- Obede.Dom significa ‘Servo de Edom’;
Maria declarou-se ante o anjo ‘Serva do Senhor’ ou ‘Serva de Adom’ – uma
espécie de trocadilho hebraico entre ‘servo de Edom’ e ‘serva de Adom’;
- David
exclamou, “Como
entrará a Arca do Senhor em minha
casa?” (2Sm 6,9); Isabel exclama, “Donde me é dado que venha ter comigo a Mãe do meu Senhor?”;
- Todo o povo fez festa com aclamações músicas e danças, a ponto de o
próprio David dançar e saltar diante da Arca da Aliança, dizendo que não se
envergonha de dançar diante do Senhor (2Sm 6,21); João Batista, no ventre
materno, salta ante a presença de Maria, a nova e viva Arca da Aliança, que
transporta em si o Salvador;
- O profeta Natã revelou a David o destino da Casa de David (Teu trono
será eterno, pois o teu sucessor me edificará uma casa); o anjo visita uma
virgem da Casa de David e diz-lhe que seu filho receberá o trono de David e o
seu reinado será eterno;
- David entoa um cântico de louvor e júbilo perante a promessa divina;
Maria e Zacarias entoam o mesmo tipo de hino ante o cumprimento das promessas
da parte de Deus.
Maria,
enquanto Arca da Aliança, é a realização da presença de Deus no seio do seu
Povo. Esta realidade é significada por várias expressões como: habitação de Deus (Shekináh); glória de Deus (Kabôd Iahvéh); rosto de Deus (Fanuel); companhia de Deus (Emmanuel); e omnipotência de
Deus (Gabriel).
A
Arca da Aliança era a única habitação que Deus tinha para acompanhar os homens,
a partir de tendas, até que Salomão empreendeu a construção do Templo. A Arca da
Aliança era a garantia ambulante das bênçãos divinas. Colocada no tabernáculo (a tenda central), fazia desse lugar o
“Santo dos Santos”, o lugar onde Deus mora. É este agora o papel de Maria – ser
o Novo Templo de Deus, o lugar onde Deus mora, que ela conduz para todo o lado
(o surto de aparições
o atesta).
Esta presença de Deus, a partir de agora, acontece através de pessoas e não só
de coisas.
***
Assim,
compreender-se-á melhor a razão de ser da Imaculada – sem qualquer mancha de
pecado desde o início de sua vida. Como afirmou o Papa, “a festa da Imaculada
Conceição exprime a grandeza do amor divino”. E Francisco explica:
“Deus não é apenas Aquele que perdoa o
pecado, mas, em Maria, chega até a evitar a culpa original, que todo o homem
traz consigo ao entrar neste mundo. É
o amor de Deus que evita, antecipa e salva. O início da história do pecado
no Jardim do Éden encontra solução no projeto de um amor que salva. As palavras
do Génesis levam-nos à experiência diária que descobrimos na nossa existência
pessoal.”
E
mais adiante, escorando-se no protoevangelho, “Ele te esmagará a cabeça” (Gn 3, 15):
“A promessa da vitória do amor de Cristo
encerra tudo na misericórdia do Pai. Sobre isto, não deixa qualquer dúvida a
palavra de Deus que ouvimos. Diante de nós, temos a Virgem Imaculada como
testemunha privilegiada desta promessa e do seu cumprimento.”.
***
É
tudo efetivamente resultado da Graça divina, ou seja, do amor misericordioso de
Deus, que nos apela ao reconhecimento da misericórdia divina e ao seu exercício
junto dos irmãos.
Cabe
à Igreja, por desígnio do Salvador e à semelhança da Mãe de Jesus, tornada Mãe
da Igreja, progredir no esforço do estado ideal de imaculada e levar
Cristo-Palavra e Cristo-Homem-Deus a todos os que dele precisam e provocar este
encontro do Cristo Salvador com o Cristo que palpita sofre na pessoa de cada
um dos redimidos. O Papa assim disse a este respeito hoje:
“Em
qualquer lugar onde houver uma pessoa, a Igreja é chamada a ir lá ter com ela,
para lhe levar a alegria do Evangelho e levar a Misericórdia e o perdão de Deus”.
2015.12.08 – Louro
de Carvalho
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