quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

“Justos e tenazes”

O n.º 1290 da revista Visão, de 23 de novembro, publicou um trabalho de J. Plácido Júnior sobre a PJM (Polícia Judiciária Militar), uma entidade de que se fala muito pouco, mas cuja ação acaba por ser relevante nalguns casos. Gloso-o um pouco em razão da importância da PJM nos últimos tempos.
Tem a PJM competências de investigação dos “crimes estritamente militares” e dos ilícitos cometidos no interior de instalações das Forças Armadas e da Guarda Nacional Republicana. Se os processos chegarem a tribunal para serem julgados segundo o CJM (Código de Justiça Militar), o coletivo de juízes tem de integrar, por lei, um oficial especializado das Forças Armadas, que completa o terno de magistrados.
É lema dos investigadores da PJM o enunciado em epígrafe “Justos e tenazes”. A este corpo de investigadores concorrem voluntários (oficiais, que têm de ser, pelo menos, licenciados, e sargentos) dos três ramos das Forças Armadas (Exército, Armada e Força Aérea) e da GNR. Após a sujeição a testes psicotécnicos e à passagem por uma entrevista de seleção, vem o veredicto de aprovação ou de exclusão. Os escolhidos passam, depois, por um longo curso na PJM, que inclui um módulo de formação na PJ (Polícia Judiciária civil) e outro no SIS (Serviço de Informações de Segurança). E trabalham em regime de comissão de serviço de três anos prorrogáveis, sendo valorizada a experiência e a rede de contactos.
O major Vasco Brazão, atual porta-voz da PJM, é um bom exemplo disto. Trata-se de um Oficial de Cavalaria licenciado em Ciências Militares pela Academia Militar, que esteve cerca de 11 anos na Polícia do Exército, antes de ser abordado para ingressar na PJM. Como recompensa, para lá do vencimento, elege-se a consciência do dever cumprido ao serviço duma missão especial, uma espécie de dever cívico nas estruturas militares e a partir delas. São 35 militares (13 oficiais e 22 sargentos) os investigadores que atualmente constituem as Unidades de Investigação Criminal da PJM, em Lisboa e no Porto, assessorados por vários peritos.
São rijos, fortes e mal pagos – lamentam-se. E quem dirá o contrário hoje na sua profissão?
Os telefones dos investigadores e peritos de piquete tocam muitas vezes. “A PJM é a polícia que em Portugal averigua a maior tipologia de crimes”, sublinha o major Vasco Brazão. Está inscrito na lei orgânica da Judiciária Militar um “subsídio de serviço permanente”, mas aguarda-se há cinco anos que uma portaria o regulamente e concretize o respetivo pagamento. E os militares não podem fazer greve… Mesmo assim, há avanços. Os DIAP de Lisboa e Porto têm assessores jurídicos militares que ajudam os procuradores nos inquéritos averiguados pela PJM.
Os elementos da PJM têm a consciência clara de que interferem com lealdades corporativas arreigadas nas diversas unidades militares, o que lhes pode prejudicar a progressão na carreira, se voltarem às fileiras. Isto, porque, desde 1993, a PJM possui, por lei, uma única dependência hierárquica: o Ministro da Defesa Nacional. Os seus elementos não têm justificações a dar às chefias militares. Por isso, proliferam os anticorpos castrenses. E o diretor da PJM, o coronel Luís Vieira, sentiu-os recentemente na pele. Este Oficial Comando não recebeu o habitual convite para participar no “Dia dos Comandos”, comemorado a 29 de junho pp. E, este seria o único dia do ano em que envergaria o uniforme militar com o garbo que lhe é peculiar como aos demais comandos. Nos outros dias tem de andar à civil tal como os operacionais que lidera. Suspeita-se que a razão de ser desta discriminação se prende com o desempenho da PJM a propósito do curso n.º 127 de Comandos.
Apesar de tudo, são exímios no trabalho. O mencionado colunista de Visão diz: “esfalfam-se a trabalhar”. Além das diligências e do expediente diários, têm de fazer piquetes à chamada de 24 horas durante uma semana, em equipas de dois elementos, tanto em Lisboa como no Porto. E, na mesma semana, são sempre os mesmos durante 168 horas seguidas. Têm o mesmo tipo de escala os peritos do Laboratório de Polícia Técnico-Científica.
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Foi esta força de investigação e peritagem que investigou em tempo recorde o caso das mortes nos Comandos, o assalto aos paióis de Tancos e a rede de corrupção nas messes da Força Aérea.
Os investigadores PJM estão disponíveis para “operações-relâmpago”.
No caso do predito Curso de Comandos, de que resultaram as mortes, em setembro de 2016, de dois recrutas, em razão dos badalados “golpes de calor” e desidratação extrema, na “Prova Zero” do curso n.º 127, os restantes 65 instruendos foram ouvidos de imediato na sede da PJM, no Restelo, em Lisboa, numa longa sessão em que o tempo não era problema. Em salas autónomas, eram inquiridas seis pessoas de cada vez, em audições em que um depoente chegava a demorar meia dúzia de horas. Além disso, foram ouvidas mais de cem testemunhas, algumas mais de uma vez, segundo o que referiu o major Vasco Brazão, porta-voz da PJM. Um mês após as mortes dos referidos recrutas, procuradora Cândida Vilar, do DIAP (Departamento de Investigação e Ação Penal) de Lisboa, recebia da PJM um relatório intercalar com propostas de constituição de arguidos. A magistrada acolheu tais propostas e, com o desenrolar das averiguações, exarou, em junho de 2017, um despacho de acusação em que atribui a 19 arguidos, oficiais e sargentos, o crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física (em graus diferentes), para o qual o CJM prevê uma moldura penal de 8 a 16 anos (art.º 93.º/3 b). O processo seguiu para instrução sob a direção de um juiz de instrução criminal.
É certo que se levantou a dúvida se o caso deve ser julgado pelo CJM, que prevê a predita moldura penal (tese perfilhada pela PJM), se pelo Código Penal, que prevê para os crimes em causa penas de prisão bem mais suaves, com máximos de dois e três anos (tese perfilhada pelo DIAP). A dissipação de tal dúvida cabe, em 1.ª instância, ao juiz de instrução criminal.
Porém, independentemente do sucesso ou do insucesso da tese da PJM, a procuradora Cândida Vilar disse à Visão que gostou do trabalho daquela entidade, pois, segundo a magistrada:
Respeitam a autonomia da condução do inquérito pelo Ministério Público e são coesos entre eles. E dentro dos meios militares, muito fechados, têm informações que mais ninguém terá.”.
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Sobre os crimes relacionados com material de guerra, salienta-se que, no total dos 310 processos concluídos, em 2016, pela PJM, 39 têm a ver com “comércio ilícito de material de guerra”. Porém, o major porta-voz da PJM desvaloriza o caso:
O elevado número desses inquéritos acontece devido ao recorrente aparecimento de munições, muitas vezes ainda provenientes do Ultramar, e a sua posse, seja por militar ou civil, enquadra-se no referido crime, de acordo com o Código de Justiça Militar”.
Contudo, o registo de processos do ano de 2016 também averba 9 inquéritos por “extravio de material de guerra”, 8 por “furto/roubo de material de guerra”, e 2 por “detenção ou tráfico de armas proibidas”. Isto seria relevante se não tivesse ocorrido, em junho último, o roubo de armamento nos paióis militares de Tancos, entre os dias 25 e 28. Nesse lapso de tempo, os patrulhamentos habituais não foram feitos segundo as regras que estavam a ser seguidas ou não se efetuaram de todo.
A PJM, com a tomada de conhecimento do caso, avançou logo para uma “operação-relâmpago”. Em poucos dias ouviu largas dezenas de pessoas, maioritariamente militares, mas também civis que, antes do assalto, trabalhavam em reparações dos paióis de Tancos e das cercas de vedação – cortada para concretizar o roubo do arsenal. Há quem defenda ter sido esta batelada de inquirições que “apertou” assaltantes e mandantes, levando-os a devolver o armamento roubado.
Não se sabe se assim foi. Porém, é certo que, às três horas da madrugada de 18 de outubro, um oficial da PJM, de piquete nessa semana, recebeu uma rápida chamada anónima, feita a partir de uma cabina telefónica pública, que descreveu o suficiente para localizar, na Chamusca, material de guerra abandonado. Era noite de tempestade, com chuva intensa e trovoada. À luz de lanternas, os investigadores descortinaram um amontoado de caixotes no sítio indicado pela voz anónima, uma valeta marginada de canavial. E perceberam a existência ali de caixas de granadas. Era necessária uma morosa operação de segurança, certificadora de que as caixas e os caixotes não estavam armadilhados, de modo a ser possível o transporte para o campo militar de Santa Margarida. Aí, após a abertura das embalagens, os números de série do armamento permitiram a obtenção da certeza de que se tratava do arsenal roubado de Tancos cerca de 4 meses antes. Todavia, no conjunto devolvido, faltavam as 1 500 munições de 9 mm, que continuam desaparecidas e que especialistas em segurança creem ter sido o objetivo do roubo. O restante material levado pelos assaltantes (264 unidades de explosivo plástico e mais de 200 granadas, algumas das quais antitanque) terá resultado do aproveitamento da oportunidade, mas, às tantas, terá começado “a queimar-lhes as mãos”. Por outro lado, crê-se haver ligação entre as munições de 9 mm roubadas em Tancos e o desaparecimento, detetado no início de 2017, de 57 pistolas Glock, que se encontravam num armazém da Direção Nacional da PSP, em Lisboa. A investigação daquele caso ficou entregue à PSP, que sobre nada disse.
Em relação ao processo de Tancos e apesar dos reiterados avisos do Presidente da República de que pretende a conclusão o mais rápida possível do inquérito, são crescentes os desentendimentos e incidentes entre a UNCT (Unidade Nacional Contra Terrorismo), da PJ, que a Procuradora-Geral da República colocou a liderar no terreno as investigações, e a PJM, à qual Joana Marques Vidal atribuiu o papel de “coadjuvante”. O porta-voz da PJM não se pronuncia sobre qualquer aspeto do processo. Apenas informa que o relatório do Laboratório de Polícia Técnico-Científica da PJM de “exame ao local do crime”, na Chamusca, foi enviado DCIAP (Departamento Central de Investigação e Ação Penal).
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Mas a PJM não vive só de “operações-relâmpago”. Também mostra resultados em investigações sistemáticas e de rotina. Foi o caso duma rede de corrupção e sobrefaturação que se estendia por 12 messes da Força Aérea (FAP), de Norte a Sul do País.
Em abril de 2014, uma denúncia anónima levou a PJM a arrancar com a averiguação. A carta, segundo o major Vasco Brazão, mencionava nomes de vários militares ligados às messes e empresas que há muito tempo forneciam bens alimentares à FAP. Por isso, diz a propósito aquele oficial superior: 
Fizemos uma recolha exaustiva, mas com cautela extrema, para não levantar suspeitas, de todos os militares e civis que trabalhavam nessas messes, bem como dos diferentes fornecedores”.
A certa altura, o Ministério Público (MP) questionou se valeria a pena continuar a investigar o caso, cujos crimes podiam estar já prescritos – um oficial, importante na rede, havia passado à reserva em 2007. Mas a PJM defendeu que “a probabilidade de a atividade criminosa em causa manter-se em curso era muito alta”. O MP aceitou que as diligências prosseguissem. E a PJM, em novembro de 2015, deparou-se com uma ocorrência que deu enorme impulso à investigação. Um oficial da FAP cuja função interessava à rede, recém-chegado a uma base, foi “convidado” a entrar no esquema. E denunciou o que se passava à sua hierarquia e, com luz verde ao mais alto nível da FAP, tornou-se num agente encoberto da PJM dentro da rede.
Confrontada com um processo de grandes dimensões, a PJM pediu a colaboração da Unidade Nacional de Combate à Corrupção, da PJ, com mais investigadores e meios. Ao contrário do caso de Tancos, aqui a colaboração entre as duas polícias foi impecável. Em novembro de 2016, a “Operação Zeus” desmantelou a rede. E, recentemente, o MP acusou 86 arguidos (40 militares e 46 empresários, empresas e trabalhadores) de associação criminosa, corrupção ativa e passiva agravadas, falsidade informática e falsificação de documentos. Segundo o despacho de acusação, a “conduta indiciada representou uma sobrefaturação em montante não apurado, mas significativamente superior a 2,5 milhões de euros”. E, de acordo com o MP, era um major-general quem encabeçava a rede, recebendo luvas mensais dos seus subordinados.
A imaginação policial e a cooperação ou a força do Zeus grego desfizeram um esquema que parecia perfeito.
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E é assim. Polícias que deviam cooperar desentendem-se às vezes; outras vezes, deixam desaparecer armas e munições. Militares que deviam preparar a defesa das populações e do território, não guardam depósitos de material bélico, entram em jogadas com empresários e homens do negócio ilícito e não querem ser policiados, investigados e eventualmente acusados pelos seus pares.
Enfim, quem guarda os guardas?

2018.01.03 – Louro de Carvalho

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