quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

O incontroverso (!) veto político à lei do financiamento dos partidos políticos


O veto político do Presidente da República ao Decreto da Assembleia da República n.º 177/XIII não é controverso unicamente porque é uma das prerrogativas presidenciais ao abrigo do n.º 1 do art.º 136.º da CRP.
A mesma disposição constitucional determina que, no caso de veto de decreto parlamentar, deve o Presidente solicitar nova apreciação do diploma “em mensagem fundamentada”.
E é no teor da fundamentação presidencial que pretendo pôr o acento. É curto evocar na página web da presidência, a 2 de janeiro pp, o diploma como “respeitante ao financiamento partidário”, quando, na referência, a 27 de dezembro pp, à sua receção no Palácio de Belém, se dizia do Decreto da Assembleia da República n.º 177/2017 que alterava a Lei da organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional, a Lei dos Partidos Políticos, a Lei de financiamento dos Partidos Políticos e das campanhas eleitorais e a Lei da organização e funcionamento da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos.
A página web da presidência é de acesso público e pode pensar-se que aquilo que está em jogo é apenas a gula partidária, quando se sabe que também o Tribunal Constitucional (TC) sairia beneficiado, dado que, se a lei fosse promulgada, referendada e publicada, ficaria isento do pagamento das publicações que fosse obrigado a promover (ou o quisesse fazer) na Série II do Diário da República.
Por outro lado, é pobre a fundamentação presidencial “com base na ausência de fundamentação publicamente escrutinável quanto à mudança introduzida no modo de financiamento dos partidos políticos”.
Tanto quanto se sabe, o alegado secretismo, a predita falta de debate acessível ao público, o aduzido desconhecimento da autoria das propostas ou as discretas discussões à porta fechada no grupo de trabalho atingem todas as matérias constantes do predito decreto parlamentar. E, se hoje são conhecidas autorias “indiscutíveis”, como as atribuídas ao Presidente do TC, elas surgiram depois que se levantou a poeira em torno do decreto aprovado em 21 de dezembro. Aliás, agora já toda a gente sabe quem foram os autores nominais de todas as propostas discutíveis e indiscutíveis.
Por mim, mantenho o que já referi outrora sobre o processo. Estranho, de facto, que um Parlamento tão aberto, tão habituado a tudo documentar, tenha enveredado por este caminho de discrição. Porém, não valorizo o episódio como improcessual, a ponto de acusar os partidos de falta de democraticidade, publicidade e transparência. Tanto assim é que hoje, dia 4, Pedro Carlos Bacelar Vasconcelos, deputado, constitucionalista e Presidente da 1.ª Comissão (Comissão dos Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias) escreveu no JN:
A lei foi aprovada pela Assembleia da República a 21 de dezembro, mas, dois meses antes, tinha sido distribuída a todos os deputados que integram a Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e logo foi inscrita no ponto 2 da ordem de trabalhos da reunião de 18 de outubro. O projeto elaborado pelo grupo de trabalho constituído para esse efeito foi apresentado pelo respetivo coordenador e não foi objeto de qualquer pedido de esclarecimento, algum reparo ou uma única sugestão, tal como consta da ata da reunião que, aliás, foi aberta ao público e gravada pelos serviços competentes da AR. Dessa reunião apenas estiveram ausentes o deputado do PAN – que não integra esta Comissão Parlamentar – e o representante do PEV. Em consequência, o texto final do grupo de trabalho – confortado pelo consenso geral que mereceu dos seus autores e do plenário da Comissão que se dispensou de o debater – foi enviado às direções de todos o grupos parlamentares – nesse mesmo dia! – e foi, por fim, debatido no plenário da Assembleia da República, dois meses mais tarde.”.
Afinal, até houve, pelo menos uma ata. E o segredo foi inexistente.
Mantenho que o dito grupo de trabalho foi constituído no âmbito da autonomia daquela Comissão, apresentou-lhe o projeto de lei e assumiu como em coletivo as propostas de melhoria ou de simples acrescento.
Ora, embora não discordando da conveniência de publicidade e transparência no processo legislativo, pergunto-me: Se os debates fossem abertos ao público, se houvesse atas de tudo, se soubéssemos, previamente ao debate, dos autores das propostas de alteração, a lei já era boa e aceitável. Marcelo já não a vetaria? E todos sabemos que a ilimitação do IVA interessa ao PS, a ilimitação nas angariações de fundos ao PCP (Festa do Avante) e ao PSD (Pontal, Chão da Lagoa). E estas ilimitações interessam a todos, no fim de contas!
Todavia, não se pode dizer que Marcelo tenha atirado para o Primeiro-Ministro ou para os deputados o ónus do pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade da lei ou que o repto que lhes lançou (embora não tivesse de o fazer), dado tratar-se de uma lei orgânica, significasse ameaça de veto, como alguns entenderam. Apenas, porque ele não vislumbrou qualquer norma ferida de inconstitucionalidade, esperou que outrem, com poder para tal, pudesse agir.
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Na mensagem enviada à Assembleia da República com a devolução do diploma para reapreciação, o Presidente aduz que na exposição de motivos do diploma não vislumbrou uma justificação suficiente para a abolição de limites ao montante das atividades partidárias de angariação de fundos ou para a recuperação do IVA – o que implica o aumento de receitas e de despesas.
Eu gostaria que o Chefe de Estado procedesse a uma fundamentação epistémica e não apenas baseada no que não existe. Na verdade, um projeto de lei (iniciativa dos deputados) não carece de exposição de motivos, o que é obrigatório numa proposta de lei (iniciativa do Governo para apreciação parlamentar). No entanto, este projeto de lei tinha uma frágil exposição de motivos baseada numa pretensa irregularidade detetada pelo TC quanto à fiscalização das contas e na introdução de alterações pontuais. Era melhor não ter nada. Nem se vislumbraria o protagonismo do TC (seu presidente e seu vice-presidente) nesta iniciativa legislativa, de todo inusitada e a quebrar a separação de poderes, nem Marcelo atiraria com esta no seu fundamento de veto.
Todos sabemos que Marcelo é pessoal e politicamente contra a falta de limites para as receitas e despesa partidárias. Ele o deu a entender na mensagem, quando não interessa o entendimento pessoal que tenha sobre a matéria, sendo relevante a posição a que é chamado a ter como Presidente da República. Escusava de o ter explicitado assim. Neste momento ninguém quer saber da sua posição segundo a qual foi no seu tempo de Presidente partidário que os partidos tiveram maior penúria de meios. Mas nem todos têm um alastro de simpatia conquistada que lhes permita fazer uma campanha eleitoral quase de graça como aconteceu com a campanha presidencial de Marcelo.
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Tem razão Bacelar Vasconcelos quando diz:
Apesar da veemente indignação que suscitou – por vezes apócrifa e até hipócrita! – continuo a não perscrutar no corpo da lei qualquer vício grave que pudesse fundamentar uma declaração jurisdicional de invalidade. E penso o mesmo quanto ao procedimento seguido, sem prejuízo da pertinência de prestar um esclarecimento institucional – porque tenho o encargo de presidir à Comissão Parlamentar competente – e de retirar uma lição positiva deste processo que foi, no mínimo, ‘esquisito’...”.
Deixemo-nos de cantigas. Marcelo vetou a lei porque repugna à sua posição pessoal e encontrou lastro motivacional na onda de indignação que as alegadas condições de debate suscitaram.
O CDS votou contra e não se vergou. Viu no Presidente um aliado e suplicou o veto alegando escândalo, injúria e imoralidade. Isto não é democrático! O PS entrou em contradições por causa da norma transitória pelas suas implicações com a retoma do IVA, querendo distinguir os casos em que a retoma se aplica e casos em que não se aplica. O BE dispôs-se a melhorar a lei. Enfim!
Falou-se de inconstitucionalidades pela alegada violação do princípio de igualdade na questão da retoma do IVA por não se aplicar aos candidatos presidenciais e aos grupos de cidadãos independentes. Ora, os candidatos presidenciais não são associações, têm uma vigência temporária muito limitada e não têm outros encargos além da campanha. Dos grupos de cidadãos eleitores independentes digo coisa parecida, embora reconheça que estão sujeitos a um peso burocrático superior ao dos partidos para a viabilização da candidatura.
Por outro lado, penso que os deputados deviam definir em que circunstâncias as entidades privadas de utilidade pública têm direito ao reembolso do IVA. Todas as despesas e vendas? Todas as despesas? Só as despesas de investimento? Consideram-se de investimento as despesas de campanha eleitoral? As despesas políticas? Depois, decretar em conformidade com o conceito apurado!
Quanto à alegada inconstitucionalidade que o PCP alega de o Estado se meter na vida dos partidos controlando as suas contas, incluindo as de angariação de fundos, eu gostava de lhe dar razão. Porém, os partidos vivem em grande parte das subvenções públicas. Cabe ao Estado fiscalizar a aplicação dos dinheiros públicos. Ora, a fiscalização tem de ser uma atividade global e a subvenção não é consignada a esta ou àquela despesa.
Alguns queriam atribuir inconstitucionalidade ao facto de os deputados com a história do IVA estarem a tomar uma iniciativa legislativa que dava em aumento dos encargos do Estado (art.º 167.º/3). Só que a iniciativa foi num ano económico e os efeitos produzem-se no ano seguinte:
Os Deputados, os grupos parlamentares, as Assembleias Legislativas das regiões autónomas e os grupos de cidadãos eleitores não podem apresentar projetos de lei, propostas de lei ou propostas de alteração que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento”.
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Enfim, o Chefe de Estado vetou um diploma, no fundo, por motivos políticos em que se revê, mas só alegou aspetos procedimentais, incorrendo, ao contrário do que professa politicamente o Presidente da Assembleia da República, na onda populista. Ademais, sabe que o PSD espera pelas eleições partidárias para tomar uma posição (Os candidatos puseram a boca no trombone a manifestarem-se contra o decreto!). Ora o partido devia ser consequente com a votação que teve no Parlamento e não esperar pelo futuro, até porque o líder eleito só será consagrado em congresso.
E o Presidente da 1.ª Comissão conclui pro bono pacis da democracia:
A deficiente participação e o parco debate público que o diploma em causa mereceu são agora inquestionáveis. Uma constatação que naturalmente recomenda que sejam ponderados eventuais ajustamentos regimentais que melhor garantam a defesa dos valores da transparência, da publicidade e da participação democrática que devem orientar o exercício da função legislativa e que são inerentes à própria natureza da instituição parlamentar. []. Temos agora a possibilidade de esclarecer as apreensões legítimas dos cidadãos, de prosseguir o debate e de suprir as insuficiências que as atribulações recentes exibiram, a bem da democracia e da dignidade do Parlamento.”.
Isso! Aprende-se com os erros…

2017.01.04 – Louro de Carvalho

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