domingo, 14 de janeiro de 2018

Tragédia de inverno em Vila Nova da Rainha, Tondela

Um incêndio na sede da Associação Cultural, Recreativa e Humanitária de Vila Nova da Rainha, no concelho de Tondela (Viseu) originou 8 vítimas mortais e 38 feridos, neste fim de semana.
Os bombeiros receberam o alerta às 20,53 horas. José António de Jesus, Presidente da Câmara Municipal de Tondela, explicou que “uma salamandra de aquecimento terá provocado um foco de ignição na cobertura do teto falso do primeiro piso” do edifício.
Com efeito, o aparelho de aquecimento dispunha dum tubo que o ligava ao telhado, mas que passava por um teto falso, que continha placas de gesso cartonado, com material de isolamento e fibra de vidro, e que rapidamente “ganhou combustão”. Segundo Ricardo Ribeiro, Presidente da Associação Portuguesa de Técnicos de Segurança e Proteção Civil (AsproCivil), os materiais do teto falso, além de serem “inflamáveis”, podem exalar “gases tóxicos” caso se incendeiem.
Carlos Dias, comandante dos Bombeiros Voluntários de Tondela, diz que “o aumento da temperatura em contacto com aquele tipo de material fez com que os gases que se acumulam no topo da chaminé saturassem, começassem a descer”. Assim, sucedeu que “os gases solidificaram, acumularam-se ali [entre o teto falso e o telhado] e, no contacto com o material inflamável, entraram em combustão”. Isso levou a que o teto desabasse e o ar ficou saturado de partículas tóxicas.
O Presidente da autarquia referiu ainda que a abertura duma janela terá permitido “a entrada de massa de ar” e “acelerado a combustão”, criando uma densa massa de fumo e fazendo com que as pessoas ficassem desorientadas e perdessem as “fontes de referência” no momento da fuga. Na verdade, “este tipo de fogos resolve-se sem água, basta tirar o oxigénio”. Mas, “com o pânico, as pessoas abriram as janelas, o ar entrou e foi aí que houve a explosão”. E isso aconteceu por força das pessoas que estavam enclausuradas como por parte de populares que tentaram socorrer a partir do exterior.
A este respeito, Carlos Dias disse que, ao chegarem os bombeiros, não havia chamas.
Segundo informação do Presidente da Câmara, estavam entre 60 a 70 pessoas na associação recreativa no momento do incêndio, ao passo que a Proteção Civil fala em cerca de 70. No 1.º andar, decorria um torneio de sueca enquanto no rés-do-chão havia outras pessoas a jogar snooker e a ver o início do jogo entre o Benfica e entre o Sporting de Braga.
As pessoas que morreram estavam no 1.º andar e precipitaram-se pelas escadas para fugir ao fogo. Segundo o autarca, o pânico levou a que algumas pessoas caíssem entre as escadas e a porta que dava para o exterior. Com as pessoas caídas, não foi possível sair, uma vez que a porta abria para dentro. Foi preciso um jipe para arrombar a porta, que estava fechada devido ao frio.
Existia uma segunda porta no salão onde se encontrava o bar e a televisão, que transmitia o jogo de futebol e pela qual terá saído grande parte dos que se encontravam no rés-do-chão. Se as pessoas que desceram as escadas tivessem virado à esquerda, teriam um salão com outra porta para o exterior. Porém, o pânico e a densidade do fumo levaram a que as pessoas não discernissem aquela saída alternativa.
O comandante dos Bombeiros Voluntários de Tondela acrescentou:
Quando chegámos, os bombeiros encontraram uma pilha de corpos. De certeza que não conseguiram sair pela porta da esquerda porque se pisaram e amontoaram uns em cima dos outros, quando caíram das escadas.”.
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De acordo com o Presidente da Câmara, a associação recreativa existe há mais de 30 anos e o edifício, localizado no centro de Vila Nova da Rainha, apesar de já ter “alguns anos” estava “em bom estado de conservação”.
No que toca à salamandra, Ricardo Ribeiro, da AsproCivil, não duvida de que, tendo em conta o material inflamável do teto falso, a descarga deveria ser feita diretamente para a rua por uma “parede de alvenaria” ou por “uma janela” e “nunca por um teto falso.”
Também o comandante Carlos Dias considera que “não é correto” que o tubo de uma salamandra dê para o teto falso, mas considera que é prática recorrente. Provavelmente, se não houvesse aquele tipo de teto falso, ter-se-ia evitado muita coisa, “porque as pessoas foram banhadas com o produto inflamado a cair em cima delas”.
Já, para Ricardo Ribeiro, o grande problema não foi a salamandra, mas a falta de “medidas de prevenção de incêndios urbanos naquele espaço” e a “falta de medidas de segurança para receber um evento de 70 pessoas”, evento que ocorria no mesmo local há 16 anos, todos os sábados dos meses de janeiro e fevereiro, mas em que nada de similar tinha acontecido, embora outras informações rezem que o evento estava para se realizar em dezembro, mas que foi adiado para agora por causa da ainda fresca memória dos incêndios de outubro passado.
Ricardo Ribeiro sustenta que o espaço não cumpria as medidas de segurança necessárias para receber um evento com 70 pessoas. Com efeito, não tem portas com barras antipânico, isto é, portas com uma barra de metal a meio que permitam uma abertura e saída rápidas. A porta abria para dentro e, no meio do pânico, as pessoas encaminharam-se todas para ela. A primeira pessoa que chegou tentou abri-la, mas não conseguiu porque foi empurrada pelas outras. E, ainda que a porta abrisse para fora, era necessário ter a barra antipânico para que, quando o aglomerado de pessoas fizesse força para sair, ela se abrisse automaticamente.
O Regulamento Técnico de Segurança contra Incêndio em Edifícios define as caraterísticas das portas que podem ser utilizadas por mais de 50 pessoas. Uma delas é “abrir facilmente no sentido da evacuação”, o que não aconteceu neste caso.
O Presidente da Associação Portuguesa de Técnicos de Segurança e Proteção Civil destaca ainda a necessidade de haver “planos de evacuação e de emergência”. O regulamento refere também que os edifícios devem ter “no seu interior meios próprios que permitam a atuação imediata sobre focos de incêndio”, nomeadamente “extintores portáteis e móveis”, e devem ser equipados com instalações que permitam detetar o incêndio e, em caso de emergência, difundir o alarme para os ocupantes, alertar os bombeiros e acionar sistemas e equipamentos de segurança.
Os bombeiros, contudo, não souberam esclarecer se a associação tinha planos de emergência ou de evacuação, extintores ou detetores e alarmes de incêndio, visto que, segundo o comandante Carlos Dias, os licenciamentos e a fiscalização do alvará são da responsabilidade do município.
E não se descarta a possibilidade de uma tragédia destas se repetir. Esta falta de medidas de segurança é recorrente em muitas associações em todo o país, dado que se trata de associações sem fins lucrativos e com “muitas condicionantes financeiras”. Mas isto não pode justificar as oito mortes e aquelas dezenas de feridos.
A solução poderia passar por proibir este tipo de eventos com um determinado número de pessoas em locais sem condições de segurança – o que não seria a melhor e a mais plausível solução, tendo em conta o “serviço” que estas associações prestam à população. Devia o Estado desenvolver apoios que permitam a estas associações terem medidas de segurança nos eventos que promovem e obrigar a que estes se desenvolvessem com a presença e a vigilância de quem tem competência para tal: polícia e bombeiros.
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O Presidente da República, acompanhado do Ministro da Administração Interna, visitou este domingo Vila Nova da Rainha e referiu-se ao incidente como “um daqueles choques que são muito fundos nas vidas das pessoas”.
Em declarações aos jornalistas, Marcelo explicou que foi o pânico que fez com que as pessoas utilizassem a “porta que abre para dentro”, junto às escadas, para saírem. E frisou que “havia precisamente ao lado uma [outra] porta”. “A que ficava em frente às escadas era a mais utilizada e a outra normalmente estava fechada.” Mas, infelizmente, não foi essa que foi utilizada, causando a confusão. O Chefe de Estado aproveitou o ensejo para elogiar o trabalho de todos envolvidos na operação de socorro e também dos autarcas, que se dirigiram rapidamente para o local, reconhecendo e louvando “a forma abnegada e competente como várias instituições intervieram em tão curto espaço de tempo”. E afirmou:
A situação era difícil e foram todos excecionais – da Saúde à Proteção Civil, passando pelo contributo da Força Aérea pelas estruturas de socorro mais próximo ou mais distante, pelo transporte e evacuação. Tudo funcionou.”.
O Presidente não deixou de apresentar “as condolências e o testemunho da solidariedade aos familiares das vítimas mortais e também aos familiares as vítimas que estão a ser assistidas com mais ou menos gravidade em várias unidades hospitalares”. E, interpelado pelos jornalistas sobre o facto de a região ter sido afetada muito recentemente pelos incêndios, defendeu que os habitantes de Tondela, e os portugueses em geral, são “resistentes”. E acrescentou:
        “Nunca sabemos compreender porque é que de repente se acumulam tantos factos negativos, em tão pouco tempo, nos mesmos sítios. 
          Mas a verdade é que o português é resistente e estamos todos fraternalmente solidários. Estamos a acompanhar essa resistência.”.
O Presidente afirmou a intenção de visitar, a partir de hoje, os doentes hospitalizados em Coimbra e em outras localidades e mostrou-se disponível para se encontrar com os familiares das vítimas, mas admitiu que isso dependerá da sua disponibilidade. E, à tarde, em intervenção pública, junto a uma capela de Vila Nova da Rainha, onde está sediada a associação, Marcelo dirigiu-se aos presentes, lembrando que a primeira solidariedade na sequência do incêndio foi da população local, que acorreu na tentativa de socorrer quem tentava fugir das chamas. E exortou:
O primeiro sinal de solidariedade foi vosso e continua a ser vosso. Aquilo que vos peço é que não desmobilizem [desmobilizeis]. Há famílias com dor, há famílias – e ainda não passaram 24 horas – que não percebem o que aconteceu e estão sob choque, são amigos e amigas. […] E esse é o vosso grande desafio –, o desafio que têm [tendes] de vencer, como têm [tendes] estado a vencer o desafio de outubro.”.
E o Chefe de Estado, voltando a enaltecer o trabalho de “todas as instituições” que participaram nas operações de socorro às vítimas “e que fizeram mais do que era preciso fazer para que haja quem continue a lutar pela vida”, garantiu:
Uma coisa é certa, o país está aqui unido convosco. Está aqui o Governo, esteve ontem e está hoje aqui o Governo, esteve ontem e está hoje aqui a Assembleia da República e está hoje o Presidente da República. Com os vossos autarcas, mas sobretudo convosco. […] É um sinal de que estamos todos juntos. Nesta hora de dor, a vossa dor é a nossa dor”.
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O Presidente, afinal, já refez as pazes com o Governo. Tondela e o povo português merecem!

2018.01.14 – Louro de Carvalho

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