quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

“Cabras sapadoras”, uma forma de controlo do combustível florestal

O Governo quer arrancar ainda este ano com projetos-piloto de “cabras sapadoras” integradas em rebanhos dedicados à gestão de combustível florestal na rede primária, destacando o assim o reforço na prevenção de incêndios florestais.
A notícia foi avançada, há dias, pelo Secretário de Estado das Florestas, Miguel Freitas, que considera “essencial” a questão silvo-pastoral.
De acordo com o Secretário de Estado, o Governo vai intervir na rede primária através duma componente mecânica com o fogo controlado e através duma componente biológica com silvo-pastorícia. Assim, no âmbito do projeto, as organizações de produtores florestais serão “os parceiros privilegiados” para a defesa da floresta contra incêndios.
No âmbito de uma audição parlamentar na Comissão de Agricultura e Mar, requerida pelo Bloco de Esquerda, o governante responsável pelas florestas lembrou que já foram disponibilizados 17 milhões de euros para executar ações de defesa da floresta contra incêndios, destinados essencialmente à rede primária. E explicou que “temos 130 mil hectares para executar” e que “estão feitos apenas 40 mil hectares”, sendo o objetivo e havendo a expectativa de, nos próximos três anos, conseguir “executar a totalidade da rede primária da defesa da floresta contra incêndios”.
Aos aludidos 17 milhões disponíveis neste âmbito “serão somados 15 milhões para executar este ano cerca de mil quilómetros de rede primária de defesa da floresta contra incêndios e manter os 20 mil hectares da rede primária que está executada”.
De acordo com o Secretário de Estado, o país vai ter, “pela primeira”, um equilíbrio orçamental entre a prevenção e o combate aos incêndios florestais.
O governante avançou também que Portugal vai ter uma diretiva única de prevenção e combate aos fogos. Assegura:
Pela primeira vez em Portugal, vamos ter uma diretiva operacional que mostra bem aquilo que se vai fazer quer em combate quer em prevenção. Até agora, a diretiva operacional era apenas de combate.”.
Questionado pelos deputados do PSD na audição parlamentar na Comissão de Agricultura e Mar sobre como é que o Governo vai garantir que a Infraestruturas de Portugal (IEP) cumpre a lei para a limpeza das faixas de gestão de combustível florestal, Miguel Freitas salientou que a empresa pública já abriu um concurso, no valor de 18 milhões de euros, para fazer a limpeza da rede viária, considerando que “há uma grande determinação para avançar com a limpeza”.
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Quem não gostou da ideia de chamar “sapadoras” àquelas cabras foi a Associação Nacional de Bombeiros Profissionais (ANBP), que veio a terreiro a lamentar a designação “cabras sapadoras” dada ao projeto do Governo para gestão de combustível florestal, considerando abusiva a utilização do termo sapadores. No seu comunicado, pode ler-se:
A ANBP considera abusiva a utilização do termo ‘sapadoras’, uma vez que o mesmo reporta a uma classe profissional que conta com mais de 600 anos de história em Portugal e que merece o respeito de todos e sobretudo dos órgãos de soberania”.
A reação da ANBP surge após o Governo ter anunciado a medida de utilização de caprinos em rebanhos dedicados à gestão de combustível florestal na rede primária. A ANBP diz não contestar a importância do projeto, mas adianta que a designação é “infeliz e desrespeitosa para com uma classe que este ano foi tão sacrificada na defesa do seu país”. E sustenta que “nunca na história, nem no tempo em que o Rei Dom João I criou os bombeiros profissionais, nem no tempo do Salazar, os bombeiros foram alvo de um tratamento tão pouco digno”.
Mais diz a ANPP que a atribuição desta designação ao projeto “mostra uma manifesta falta de sensibilidade para com a classe profissional, que luta há anos para que todos os bombeiros profissionais do país – sapadores, municipais e profissionais das associações humanitárias – sejam designados de bombeiros sapadores”. E refere que a recetividade dos sucessivos governos para esta questão “tem sido nula, recusando-se inclusivamente a aprovar o estatuto do bombeiro profissional”.
No seu comunicado, a ANBP questiona também o que aconteceria se o Governo designasse outras forças de segurança como ‘cabras PSP’ ou ‘cabras GNR’ ou ‘cabras técnicos de proteção civil’. E considera que os bombeiros estão a ser “desconsiderados por quem, no tempo dos trágicos incêndios que assolaram o país em 2017, lhes prometeu mais dignidade e melhorias das suas condições de trabalho e carreira profissional”. E conclui que, embora não conteste a importância dos caprinos, considera que vir “comparar as funções de um animal a um ser humano é desrespeitoso por parte de um Estado de Direito”.
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Admitindo a legitimidade de os bombeiros ficarem sensíveis e melindrados com a designação, devo recordar que muito pouco me impressiona isso, tratando-se de mera questão de nomenclatura, até porque já temos alguma tradição em questões do género. Quem nunca ouviu falar, por exemplo, dos cães-polícias ou dos pombos-correios ou do bicho homem? E há o contrário: atribuir popularmente designações animais a pessoas, como Zé Cabra, Padre Boi (um antigo padre de Condeixa que teve muitos filhos de várias mulheres), Zé Macaco, Roberto Carneiro, Manuel Leão, Joaquim Lobo, Diogo Cão, Dirceu Borboleta, Jorge Coelho, José Raposo e tantos outros.
Entretanto, li um artigo de opinião de Manuel Silveira da Cunha no semanário O Diabo, edição do dia 23 intitulado “O mistério da cabra sapadora”, que acho pertinente, embora só venha ao caso a referência aos aspetos conexos com o controlo do combustível florestal.
Focando “o efeito pernicioso das cabras à solta, livres e devoradoras nos terrenos urbanos e campestres”, recorda que, em 1835, uma portaria proibia a cabra na comarca de Lisboa, sendo que qualquer destes animais que fosse encontrado à solta seria abatido de pronto, sendo cobrada ao proprietário ou ao pastor a quantia de 20 cruzados de multa. Apenas era permitido possuir uma a duas cabras, bem presas e com a exclusiva finalidade de produção de leite para o agregado familiar.
Mais refere que a cabra e a ovelha (menos esta) são as causadoras da queda do Império Árabe do Norte de África, que passou da arborização à desertificação. Não comendo o porco campestre, “o muçulmano tornou a cabra a praga devastadora que desfolhou regiões imensas do Norte de África e conduziu à decadência absoluta de uma região notavelmente próspera e amena”, diz.
Em Portugal, a explosão caprina deu-se a partir do século XVIII com vista ao consumo regular de leite, até então de uso puramente medicinal. E a rusticidade deste animal (descendente da cabra selvagem europeia”), que o leva a comer o que os outros desprezam, fizeram dele a “vaca do pobre”, que lhe dá “o leite rico e nutritivo”, com que se pode fazer um queijo excelente e o suculento cabritinho largamente consumível, apesar da míngua de mães – o que faz lembrar o provérbio “Quem cabritos vende e cabras não tem… dalgum lado lhe vem”.
Foi nesta sabedoria que Miguel Freitas fez ressurgir o tema da cabra devastadora e a nomeou “sapadora”, para desmoitar e decapar o território e – quem sabe – obviar à míngua do apetitoso cabritinho cujo preço bem poderia ser menor.
A cabra, deixada em liberdade, limparia os terrenos florestais, que deixariam de arder, mas também os agrícolas, que garantem a produção de cereais, legumes e leguminosas, hortaliças e pastagens.
Também é verdade que muitos dos cantoneiros da antiga JAE e guardas florestais possuíam rebanhos de pequenos ruminantes, que, devidamente controlados, ajudavam nas operações de limpeza de bermas de estrada e matas.
Diz o referido articulista que havia no país, no início da década de 70, mais de 10 milhões de ovinos e caprinos; em fins do século XX, perto de 4 milhões; e, hoje, menos de 2 milhões deste grupo de animais, sendo que o número de cabras não atinge as 400 mil neste cômputo.
Para poder usar as cabras como sapadoras, é necessário recuperar e manter em regime de continuidade, pelo menos 4 milhões destes pequenos ruminantes (cabras e bodes, carneiros e ovelhas) e controlar os seus movimentos para obstar a que venham a limpar tudo a eito, devastando apenas tudo o que é para devastar e limpar.
E as questões que se levantam são: “Aonde é que o Secretário de Estado vai recrutar pelo menos 4 mil pastores?”; e “Porque fala somente em 130 mil hectares, quando a área florestal cobre pelo menos 3 milhões de hectares de território?”.
E eu recordo-me de que, no tempo em que as “doutas” autoridades europeias pretendiam que Portugal funcionasse quase apenas como repositório da floresta, criaram-se uns tantos cursos profissionais da área agro-florestal, que foram decaindo progressivamente, e a União Europeia subsidiava, quase garantidamente, projetos de produção e exploração com pequenos ruminantes. Porém, isso dava trabalho. E era apenas necessário garantir a manutenção da unidade de produção durante cinco anos, como para os outros projetos, durabilidade que os queimava cedo!
Mesmo, com este ceticismo todo, erros e dificuldades, venham daí as cabras sapadoras; e os bombeiros que tenham paciência e as aceitem! Mas que não seja esse o único meio de prevenção. Que venham outros: limpeza de margens de estradas, vias férreas, passagens de linhas de alta e média tensão, zonas envolventes de casas, fábricas, armazéns, quartéis, mato rasteiro nas florestas, etc.; reflorestação com base em folhosas; entre florestas, construção de aceiros, clareiras, pontos de água, charcas e zonas de cereal; e vigilância contínua.
Para prevenir os incêndios, tudo o que se faça será sempre pouco.

2018.01.24 – Louro de Carvalho

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