domingo, 4 de fevereiro de 2018

Protesto militar inédito, mas tardio

É verdade que, nos termos constitucionais, as Forças Armadas “obedecem aos órgãos de soberania competentes, nos termos da Constituição e da lei” (CRP art.º 275.º/3), que lhes incumbe “a defesa militar da República” (CRP art.º 275.º/1), que lhes incumbe, “nos termos da lei, satisfazer os compromissos internacionais do Estado Português no âmbito militar e participar em missões humanitárias e de paz assumidas pelas organizações internacionais de que Portugal faça parte (CRP art.º 275.º/5) e que podem ser incumbidas, nos termos da lei, de colaborar em missões de proteção civil, em tarefas relacionadas com a satisfação de necessidades básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações, e em ações de cooperação técnico-militar no âmbito da política nacional de cooperação (CRP art.º 275.º/6).
O n.º 6 do artigo da CRP referido ganhou relevância na opinião pública e no discurso do Estado a propósito da devastação que assolou no país no ano transcorrido sobretudo ao nível dos incêndios florestais, mas já vinha ganhando corpo há muito tempo precisamente pela manifesta ineficácia dos meios disponibilizados para a prevenção e combate aos fogos florestais, em virtude dos quais mais parece crescer o sacrifício de bombeiros, o sofrimento das populações e, sobretudo, os negócios de fornecedores de equipamentos. Isto sem esquecer o papel crucial da Força Aérea e da Armada em diversas operações de busca e salvamento. 
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Por motivos conexos com o politicamente correto, o poder político houve por bem, a partir das pretensões de algumas juventudes partidárias, nomeadamente postas à direita, extinguir o serviço militar obrigatório num país pobre de recursos, motivações e decréscimo de valores. Pensava que, instituindo o Dia da Defesa Nacional e com uma propaganda de caris tecnológico, atrairia mancebos e mancebas para a prestação de serviço na defesa militar da República.
Os primeiros lanços de recrutamento por estas vias foram enganadores. De facto, muitos não viram nos contratos plurianuais nem a realização pessoal nem as garantias de futuro em ordem à inserção profissional.
Embora todos os comandantes supremos das Forças Armadas (FA) democraticamente eleitos tenham sido simpáticos para o mundo castrense, com especial relevo para Cavaco Silva e Marcelo Rebelo de Sousa, sem esquecer Mário Soares, os governos, em geral, desprezaram as Forças Armadas (FA) em linha com uma larga franja da opinião pública. Exigiram-lhes trabalho, confiaram-lhes missões, mas não lhes deram recursos – nem humanos nem materiais. Fizeram delas um dos parentes pobres da democracia.
Perante isto, a Associação de Oficiais das Forças Armadas (AOFA) e a Associação Nacional de Sargentos (ANS) têm recorrentemente tecido as suas críticas ao poder pela não atenção devida aos problemas das FA. De vez em quando, antigos oficiais generais na reserva ou na reforma, mesmo alguns dos que foram chefes de topo, se manifestavam em razão do ambiente vivido no seio das Forças Armadas.
Do seu lado, os sucessivos chefes militares de topo criticavam os governos em questões de pouca monta, chegando ao ridículo de dizer que nem havia dinheiro para papel higiénico. Em relação aos grandes problemas, as críticas públicas eram muito esporádicas. Tanto assim é que, muitas vezes, os ministros da Defesa Nacional diziam que os representantes das FA eram os únicos interlocutores válidos no diálogo com o Governo. E bem recordo como o agora Bispo emérito das Forças Armadas e das Forças de Segurança fazia críticas acutilantes a governos e a governantes, nem sempre com autoridade por ser detentor de patente de oficial general, o que o inibia de intervir pública e politicamente, apesar de ter razão a maior parte das vezes.
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Desta vez, surgiu um protesto inédito da parte dos generais chefes das FA contra o Governo. Pina Monteiro, Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGA), Manuel Teixeira Rolo, Chefe do Estado-Maior da Força Aérea (CEMFA), Frederico Rovisco Duarte, Chefe do Estado-Maior do Exército (CEME), e o vice-almirante António Mendes Calado, vice-chefe do Estado-Maior da Armada (vice-CEMA) – este em vez e em nome do CEMA, assinaram um protesto formal contra a redução do número de efetivos para este ano, prevista pelo Governo. Segundo o Expresso o encontro ocorreu no dia 24 de janeiro e resultou num memorando formal, que foi depois entregue em Ministro da Defesa, Azeredo Lopes.
A razão do protesto/memorando tem a ver com a potencial falta de recursos para cumprir as missões, o que põe em causa a “segurança coletiva”. Pelos vistos, as chefias militares pediram que em 2018 fosse aumentado o número global de efetivos para mais 620; e o que tiveram foi um aumento de apenas 200 efetivos face ao ano anterior – número considerado insuficiente e injusto para as Forças Armadas, em comparação com as outras forças de segurança.
Além disso, o aumento máximo de 200 efetivos será “exclusivamente utilizado e justificado pela necessidade das Forças Armadas face ao reforço da sua participação no quadro do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais”, ou seja, o aumento deve-se à tarefa suplementar de ajuda no combate aos fogos, sendo que tudo o resto fica de fora.
O memorando reza que a redução dos efetivos em relação ao proposto “configura uma iniquidade relativamente ao crescimento já anunciado para as forças de segurança e outros organismos, em contraste com as carências já conhecidas nas Forças Armadas”. Em suma, os chefes militares de topo concluem que o aumento de apenas 200 efetivos em 2018 remete para valores inferiores a 2015, afastando-se dos objetivos previstos na reforma “Defesa 2020”, que estabeleceu que as FA teriam um teto de 32 mil militares, tendo agora só 28 mil.
Para os referidos chefes militares, a situação representa um “acréscimo do nível de risco” já que a redução para 200 efetivos vai impor “a redução ou cancelamento de missões, além de assumir riscos não negligenciáveis em termos de segurança do pessoal, coletiva e de instalações”.
O protesto formal daqueles quatro chefes militares é um protesto inédito, pois nunca antes os máximos representantes formais do mundo castrense se tinham unido para dar o murro na mesa. A ideia da formalização do protesto é tida como um modo de dizer ao Governo que, se ocorrer algo que envolva qualquer um dos ramos (Exército, Armada e Força Aérea), a responsabilidade pela capacidade de resposta será exclusivamente do poder político.
O gabinete do Ministro da Defesa Nacional reconhece, junto do Expresso, “as dificuldades sentidas”, mas alerta para o facto de haver habitualmente muitas “dificuldades no recrutamento e na retenção de efetivos”, que dá com que, mesmo em anos de aumento do teto máximo de efetivos, não se preencheram os objetivos do recrutamento. Para o Ministro, ainda assim, esta é “a primeira vez em três anos que o Governo aprova um aumento relevante do número de efetivos”, embora reconheça que o aumento se deve à participação ora pedida às FA no combate aos incêndios rurais. Sobre o aviso feito pelos generais de que a falta de meios pode pôr em causa o cumprimento das missões, o gabinete da Defesa remete para cada um dos chefes militares o ónus de “identificar as incapacidades e adequar os efetivos às missões que venha a ser classificadas como prioritárias”.
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A isto, o Presidente da AOFA diz que o memorando enviado pelos 4 chefes militares de topo ao Governo sobre o défice de efetivos vem confirmar que foi atingido um “ponto de rutura”.
Assim, António Mota, Presidente da Associação de Oficiais das Forças Armadas disse à Lusa:
Para nós, não é novidade nenhuma. É aquilo que temos vindo a dizer há anos sobre a exiguidade de efetivos.”.
Segundo o mesmo responsável, dados da Direção-Geral da Administração e Emprego Público indicam que, em setembro de 2017, os efetivos das FA estavam cerca de 5.500 abaixo do teto definido, que é de 32 mil; e este “declínio” de efetivos começou em 2011, agravou-se e agora é “literalmente impossível” fazer “mais com menos”, sendo que a “linha vermelha já foi ultrapassada há anos”.
De acordo com o presidente da AOFA, as missões primárias (como as operações da Força Aérea de busca e salvamento) continuam a ser realizadas, mas com grande sacrifício e sobrecarga de trabalho dos profissionais. A Força Aérea e a Marinha são dois dos ramos que perderam grande número de efetivos, havendo situações em que o pessoal é tão pouco que chega um navio duma missão e parte outro com a mesma tripulação, que não descansou o suficiente. E António Mota enfatizou que “não é possível pedir mais às pessoas”, sublinhando que a carreira das FA deixou de ser atrativa para os jovens que, em início de carreira, ganham mais se forem para a GNR.
Por outro lado, lembrou que, a par da falta de efetivos, as missões das FA são “cada vez mais e mais exigentes” e que foi atribuída à Força Aérea a gestão e combate a incêndios, o que “é uma missão brutal que a Força Aérea não fazia até hoje”. E advertiu que o problema que afeta as FA não se resume ao défice de efetivos; chega a outras restrições orçamentais com implicações na manutenção dos equipamentos dos diversos ramos.
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Apesar do protesto formal, os quatro chefes militares que haviam alertado o Ministro da Defesa Nacional para o défice de efetivos asseguraram esta tarde que “não esteve, não está, nem estará em causa o cumprimento das missões das Forças Armadas”.
Em nota do gabinete do chefe de Estado Maior-General das Forças Armadas a propósito do memorando do Conselho de Chefes de Estado Maior, os 4 chefes militares reafirmam que o relacionamento institucional com o Governo (designadamente com o Ministro da Defesa Nacional) tem sido e continuará a ser caraterizado pela “correção, respeito, frontalidade e lealdade”. Lamentam que partes do memorando tenham sido objeto de divulgação pública nos órgãos de comunicação social” e asseguram que, “independentemente do diálogo institucional estabelecido no quadro dos processos relativos aos efetivos militares, não esteve, não está, nem estará em causa o cumprimento das missões das Forças Armadas”.
Na sequência da tomada de posição, o CDS-PP a chamar ao parlamento o Ministro da Defesa Nacional, Azeredo Lopes, e o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas (CEMGFA), Pina Monteiro, para que esclareçam quais as reais necessidades de efetivos militares.
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Digo que o protesto é tardio, porque, embora as FA se devam subordinar ao poder político, este não pode minimizá-las, dado serem um recurso inestimável. Hoje o conceito de defesa não pode limitar-se a proteger as populações contra uma eventual invasão externa. Tem de incluir, até suprindo a desertificação humana do interior, o patrulhamento de todo o território contra as forças terroristas e crime organizado (tal como se patrulha o espaço oceânico e o espaço aéreo), dado que território abandonado não está defendido, também não permite dizer que as populações rarefeitas estejam seguras. E há ações que só a tropa sabe fazer com proficiência.
Assim, o número de efetivos deve ser calculado de acordo com as necessidades reais do presente e a estimar para o futuro. E o orçamento deve considerar vencimentos menos magros para os militares, sobretudo os de patentes menos elevadas, e todos os meios que sejam necessários para o cumprimento das missões internas e externas.
Quem abandonou o sistema do serviço militar obrigatório tem de pagar as FA profissionalizadas e contrariar a inevitabilidade da insuficiência de recrutamento.
Por tudo isto, a subordinação das FA aos órgãos de soberania não pode implicar a sujeição acrítica por parte das chefias nem a intromissão do Governo na cadeia de comando, a nível operacional. O poder político de topo define missões e os executantes devem definir os meios necessários e requisitá-los à tutela. De outro modo, os políticos definem as missões, mas os militares definem o modo de execução e avaliam o desempenho em diálogo com a tutela.
Ora, o que se passou com este Governo, para lá de aspetos muito positivos, reveste a modalidade de inépcia em muitos outros, de que a seguir se dá amostra.
O caso do roubo de material militar em Tancos é o mais evidente. O Ministro falou demasiado cedo, relevando a gravidade do caso, considerando-o inédito e exigindo responsabilidades militares. E os chefes militares, nomeadamente CEMGFA e CEMA vergaram-se acrítica vergonhosamente perante o Governo, não tendo sabido discernir responsabilidade política (definição de missões e afetação de meios) e responsabilidade militar (guarda de instalações, otimização de materiais, gestão de pessoal e planeamento, execução e avaliação de ações), assumindo apenas esta. E o desfecho final acabou por se reduzir a umas detenções e prisões disciplinares, até porque chegou a duvidar-se se efetivamente houve crime organizado. Mas o comandante supremo queria tudo investigado, não?!
Já antes, o caso do Colégio Militar andou pela praça pública pela voz do Ministro sem o respaldo e a salvaguarda da cadeia hierárquica militar.
E o caso do famigerado curso de Comandos em que morreram dois instruendos, que foi mal resolvido em termos militares, teve a repercussão política que não deveria ter tido, não porque não fosse necessário punir os criminosos, mas porque se pôs em causa os próprios cursos e a sua validade. E a própria justiça produziu, na fase de inquérito, juízos descabidos. Por um lado, foi dito que os cursos de comandos eram mais duros que os das tropas especiais e que os dos paraquedistas (Com que conhecimento de causa?); por outro, parece que não querem que o julgamento seja feito à luz do Código de Justiça Militar – mais severo que o Código Penal – quando estão em causa crimes estritamente militares. 
Por fim, lamentavelmente, parece que os chefes militares autores do protesto não vão aguentar a pedalada. E Marques Mendes já acusou o toque: um dia dizem uma coisa; noutro dia, dizem outra. E eu queria acreditar nas nossas FA e na sua persistência. Os chefes terão medo de perder o lugar ou de o deixar em mãos menos simpáticas?

2018.02.04 – Louro de Carvalho

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