O móbil legislativo
da reação dos médicos
A Portaria n.º 45/2018, de 9 de fevereiro, que regula os
requisitos gerais que devem ser satisfeitos pelo ciclo de estudos conducente ao
grau de licenciado em Medicina Tradicional Chinesa, vem na sequência da publicação
da Lei n.º 45/2003, de 22 de agosto, que estabelece o enquadramento da
atividade e do exercício dos profissionais que aplicam as terapêuticas não
convencionais, tal como são definidas pela Organização Mundial de Saúde.
A referida Lei aplica-se a todos os profissionais que se
dediquem ao exercício das terapêuticas não convencionais nela reconhecidas – as
que partem duma base filosófica diferente da medicina convencional e aplicam
processos específicos de diagnóstico e terapêuticas próprias (acupunctura, homeopatia, osteopatia, naturopatia, fitoterapia
e quiropráxia).
A lei deveria ser regulamentada no prazo de 180 dias após a
sua entrada em vigor. Porém, isto só veio a acontecer dez anos mais tarde
através da Lei n.º 71/2013, de 2 de
setembro.
Assim, esta lei de há quase 5 anos regula o acesso
às profissões no âmbito das terapêuticas não convencionais e o seu exercício,
no setor público ou privado, com ou sem fins lucrativos, aplicando-se a todos os profissionais que se dediquem ao exercício
das seguintes terapêuticas não convencionais: acupunctura; fitoterapia; homeopatia; medicina
tradicional chinesa; naturopatia; osteopatia; e quiropráxia.
Também esta lei seria regulamentada por portarias dos membros
do Governo responsáveis pelas áreas da saúde e do ensino superior, no prazo de
180 dias após a sua publicação.
E continuava tudo em banho-maria.
***
Entretanto, o XXI Governo promoveu a aprovação da
Lei n.º 1/2017, de 16 de janeiro, que procede à primeira alteração à Lei n.º 71/2013, de 2 de
setembro, que regulamenta a Lei n.º 45/2003, de 22 de agosto, relativamente ao
exercício profissional das atividades de aplicação de terapêuticas não
convencionais. A alteração consiste em aditar um artigo sobre o regime de IVA (aos profissionais que se dediquem ao exercício das
terapêuticas não convencionais é aplicável o mesmo regime de IVA das profissões
paramédicas) e em conferir natureza interpretativa a este artigo.
***
A reação corporativa dos médicos alegando o não suporte científico
Face à publicação da referida portaria, os
médicos, cuja voz não se ouviu aquando da discussão e publicação das leis
referidas (as duas primeiras
foram aprovadas sem votos contra no Parlamento e a primeira por unanimidade),
vêm agora a terreiro contra a licenciatura em medicina chinesa e ameaçam com
“formas inéditas” de protesto, sendo que o bastonário da OM afirma que a criação duma licenciatura de medicina
tradicional chinesa “constitui um perigo para a saúde”.
O Governo é
agora acusado de ameaçar a saúde e as finanças dos portugueses validando
cientificamente práticas tradicionais chinesas através duma licenciatura; e os
médicos admitem avançar para “formas inéditas” de mostrar o descontentamento
dos médicos.
Para o
bastonário Miguel Guimarães, a criação dum ciclo de estudos com formação de 4
anos “em práticas que não têm base científica constitui um perigo para a saúde
e para as finanças dos portugueses”. O representante dos médicos considera que
isto pode até gerar atrasos em diagnósticos e tratamentos de situações
potencialmente graves, com custos acrescidos. Em declarações à Lusa, disse que
“é importante que a população entenda que estes ciclos de estudo não habilitam
à prática da medicina, que é exclusiva dos médicos”, e que o Governo está “a
contribuir para um retrocesso sem precedentes” no que é a essência da
fundamentação científica de investigação e na evolução da inovação tecnológica
e terapêutica própria da medicina. Sustenta que “é uma atitude irresponsável” e
prevê que irá provocar um aumento brutal da publicidade enganosa, legalizado
pelo Ministro da Saúde”.
O bastonário
refere que Adalberto Fernandes introduz “mais um fator de agravamento no
desconforto e descontentamento dos médicos”, pelo que promete reunir-se com a
comunidade médica a fim de decidir “formas inéditas” de manifestarem o seu
“profundo desagrado”.
A criação
deste ciclo de estudos é, para a OM, uma forma de “induzir as pessoas em erro,
criando licenciaturas em terapêuticas que não têm a devida fundamentação
científica”.
Guimarães
assegura não estar a criticar as práticas tradicionais chinesas, mas entende
que necessitam duma investigação científica profunda e duma regulação, que não
significa a criação de licenciaturas, e avisa que a portaria pode mesmo pôr em
causa as relações institucionais entre a Ordem e o Governo. E referindo que a posição
foi aprovada com total consenso pelo Conselho Executivo da Ordem, diz que “a Ordem
fica totalmente legitimada para liderar um processo de oposição firme de todos
os médicos a uma política de saúde patológica que não serve os doentes”.
***
A posição da Sociedade
Portuguesa de Medicina Chinesa
Por
seu turno, a SPMC (Sociedade Portuguesa de Medicina Chinesa) acusa OM de
sectarismo. Na verdade, a SPMC considera “sectária” a
posição da Ordem dos Médicos sobre a medicina chinesa e revelou que há médicos
convencionais que enviam doentes para a medicina chinesa e recorrem a ela para
se tratarem.António Moreira, da direção da SPMC, sustenta, em
declarações à Lusa, que “há
posicionamentos sectários por parte das ordens, compreensíveis do ponto de
vista corporativo, mas nada têm que ver com ciência”. Respondendo às
declarações do bastonário da OM, que acusou o Governo de ameaçar a saúde dos
portugueses validando cientificamente práticas tradicionais chinesas através de
uma licenciatura, António Moreira afirmou:
“A posição da Ordem dos Médicos não é seguramente a posição dos médicos
que todos os dias enviam pacientes para colegas da medicina tradicional chinesa
e não é com certeza a de clínicos que recorrem aos serviços da medicina
tradicional chinesa para se tratarem, tal como pessoas da medicina tradicional
chinesa recorrem à medicina ocidental para se tratarem”.
O
representante da SPMC defendeu que a capacidade preventiva e de evitar a
progressão de doenças da medicina tradicional chinesa “é uma arma poderosa que
deve ser usada por todas as instituições de saúde”. Sublinhou “a coragem de
colocar cá fora uma regulamentação da lei que deveria ter sido feita há mais de
10 anos”. E, interpelado sobre quantos países têm licenciaturas em Medicina
Tradicional Chinesa, Moreira respondeu:
“Tal como existe aqui, há provavelmente em mais dois ou três países. Mas
esse não é o principal problema. As terapias não convencionais foram
regulamentadas em Portugal porque as pessoas precisam de separar o trigo do
joio e saber com quem podem contar, não confundir uma oferta de curandeiro com
uma oferta de alguém que domina um conjunto de procedimentos que vão sendo
apurados todos os dias e que foram passando pelo crivo da experiência e do
conhecimento.”.
O
responsável da SPMC lembra que “a humanidade tem quase 10.000 anos e a ciência
tem 300” e frisa haver “conclusões que a ciência refuta passado algum tempo”,
porque “a ciência vai mudando”. Recordado de que “o anterior bastonário
defendia que isto deveria passar pelo Ensino Superior e passar pelo crivo da
ciência”, afirmou a satisfação de que “agora vamos passar pelo crivo da
ciência”. E, considerando que “não faz sentido dizer que a medicina tradicional
chinesa não tem base científica”, Moreira reforça:
“Temos formação no ensino superior de um mestrado em medicina
tradicional chinesa que existe há 10 anos (...). Não compreendo qual é a
preocupação.”.
E
desafia:
“Vejam a quantidade de estudos publicados em revistas da especialidade,
a quantidade de estudos aleatoriamente controlados para tratamentos da medicina
tradicional chinesa e os medicamentos feitos à base da fitoterapia chinesa”.
***
A
postura do Governo
Do lado
do Governo, os Ministros da Saúde e da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior,
desvalorizaram hoje, no Porto, as acusações da OM relativamente à validação
científica de práticas tradicionais chinesas.
Falavam
à margem da 1.ª “Gago Conference on
European Science Policy” sobre investigação em Cancro a decorrer hoje no
Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S) da Universidade do Porto –
conferência que reúne representantes de governos, das comunidades médicas,
académicas e científicas, bem como de empresas no espaço europeu, com o
objetivo de debater e incrementar políticas de apoio à investigação em cancro,
de modo a que 3 em cada 4 doentes de cancro possam aspirar a ter perspetivas de
vida a partir de 2030 (neste
momento apenas 50% tem perspetivas de vida”.
Disse Adalberto
Campos Fernandes, Ministro da Saúde:
“Não faz nenhum sentido agitar a ideia de insegurança dos portugueses
apenas e só porque o Estado está a cumprir uma lei da Assembleia da República
aprovada sem votos contra em 2013 e que tinha sido aprovada por unanimidade em
2003”.
Depois,
vincou:
“O que se está a fazer é enquadrar aquilo que não estava enquadrado e
pôr-se dentro do sistema aquilo que estava fora do sistema. Se isso não é zelar
pela qualidade e pela segurança das pessoas, então o que será?”.
Também
o ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior quis “deixar bem claro que
o Governo em Portugal não cria cursos”. E disse:
“Já passámos há muitos anos essa fase. Nós podemos orgulhar-nos de ter
uma agência de acreditação e de avaliação que segue as melhores práticas
internacionais e um dos aspetos que obviamente hoje certifica – e que, mais uma
vez, estamos a reforçar – é a capacidade científica de qualquer instituição de
ensino superior antes de poder dar um curso.”.
Manuel
Heitor sublinhou:
“Qualquer curso que apareça tem de seguir as normas internacionais que
são devidamente avaliadas e só depois acreditadas pela agência de acreditação.
Não pode haver cursos de ensino superior em Portugal ministrados sem serem
acreditados. É ilegal.”.
Mais
afirmou:
“E, por isso, todos os cursos terão de ser avaliados e acreditados pela
agência, o que fizemos foi meramente seguir a orientação da agência após o
parecer da Organização Mundial de Saúde, exatamente como todos os outros países
europeus estão a fazer”.
Para
o Ministro do Ensino Superior, “não há
nenhuma exceção, o Governo não cria cursos e, nesta área, a regulação em
Portugal está verdadeiramente na frente daquilo que melhor se faz na Europa, a
agência de acreditação e de avaliação tem sido reconhecida como uma das melhores
práticas europeias nesta área”. E tranquiliza os portugueses:
“Por isso, podemos hoje estar descansados que os portugueses têm um bom
ensino superior, um ensino superior que é devidamente acreditado e avaliado
segundo as melhores práticas. Cada vez mais podemos dar confiança a Portugal,
aos portugueses e aos europeus que estudar em Portugal vale a pena porque o
ensino superior português é bom.”.
***
É de
questionar a OM se quer o exercício destas medicinas sem o suporte de grau
académico superior ou se exige mestrado para o fornecimento dalguns aparelhos
que o médico prescreve.
Depois,
poderemos falar de ciência e dos requisitos da mesma para a aquisição do grau.
***
O conteúdo da Portaria
Segundo
a nova portaria (cf art.os
1.º e 2.º), o ciclo de estudos conducente ao grau de licenciado em
Medicina Tradicional Chinesa visa preparar para o exercício da profissão de
especialista de medicina tradicional chinesa cuja caraterização e conteúdo
funcional foram aprovados pela Portaria n.º 207-G/2014, de 8 de outubro”, que
já define esta medicina como uma terapêutica: com uma conceção
holística, energética e dialética do ser humano; que assenta em axiomas e
teorias específicos da medicina tradicional chinesa; que aplica processos
específicos de diagnóstico e terapêuticas próprias tendo por base as teorias da
medicina tradicional chinesa; e que investiga, desenvolve e implementa planos
de tratamento utilizando a acupunctura, a fitoterapia, a massagem tuiná, a
dietética da medicina tradicional chinesa, os exercícios de chi kung e tai chi
terapêuticos e outros para melhorar e regular a função e tratar as “desarmonias
energéticas” tais como são entendidas pela medicina tradicional chinesa (cf seu art.º 2.º).
A
nova portaria estabelece o plano de estudos do ciclo conducente ao grau de
licenciado em Medicina Tradicional Chinesa, que integra as seguintes
componentes de formação: ciências fundamentais; ciências e técnicas clínicas; princípios
da medicina tradicional chinesa; e prática da medicina tradicional chinesa (vd art.º 5.º).
A componente
de formação em ciências fundamentais
abrange, designadamente, a formação em: neurofisiologia e anatomia funcional; bioquímica;
biologia molecular e celular; microbiologia e imunologia; biofísica; bioenergia;
botânica; psicologia, desenvolvimento pessoal, social e profissional; educação
para a saúde; promoção da saúde; e dietética e nutrição (vd art.º 6.º).
A componente
de formação em ciências e técnicas
clínicas abrange, designadamente, a formação em: fisiopatologia; patologia;
epidemiologia e saúde pública; imagiologia e análises clínicas; farmacologia; entrevista
e elaboração da história clínica em medicina tradicional chinesa; primeiros
socorros e suporte básico de vida; e higiene e segurança (vd art.º 7.º).
A componente
de formação em princípios da medicina
tradicional chinesa abrange, designadamente, a formação em: teorias de
medicina tradicional chinesa (incluindo: yin e yang; os 5 movimentos; qi, sangue e
líquidos orgânicos; os 8 princípios de diagnóstico; sistema dos meridianos e
ramificações jing luo; síndromes gerais e síndromes dos zang fu; patologia e
etipatogenia energéticas; os 6 níveis, as 4 camadas, os 3 aquecedores; e acupunctura); métodos de diagnóstico de medicina tradicional
chinesa (incluindo:
interrogatório-história; observação; exame físico, áudio-olfativo, da língua,
do pulso, dos meridianos e pontos, das áreas reflexas e palpação; e diferenciação
de síndromas); ciências
clínicas de medicina tradicional chinesa (incluindo: patologia externa; medicina
interna da medicina tradicional chinesa; ginecologia da medicina tradicional
chinesa; pediatria da medicina tradicional chinesa; osteopatia e traumatologia
da medicina tradicional chinesa; e prevenção e reabilitação da medicina
tradicional chinesa); métodos
terapêuticos de medicina tradicional chinesa (incluindo: acupunctura e moxabustão;
fitoterapia; dietética; massagem tuiná; exercícios energéticos, designadamente
chi kung e tai chi terapêuticos; farmacognosia e dispensário; traumatologia; e técnicas
de manipulação de medicina tradicional chinesa) (vd art.º 8.º).
A componente
de formação em prática da medicina
tradicional chinesa abrange, designadamente: avaliação do paciente; realização
do diagnóstico; estabelecimento dos princípios e estratégias terapêuticas e
realização e gestão do plano de tratamentos; realização do tratamento,
utilizando isoladamente ou combinando tratamentos de acupunctura, fitoterapia,
dietética, massagem tuiná, exercícios energéticos, de acordo com o plano de
tratamento; e respeito pelas normas de prática segura, ética e deontologia. (vd art.º 9.º).
Além disso,
o art.º 10.º prescreve a formação noutros domínios nos termos seguintes:
“O plano de estudos do ciclo de estudos
conducente ao grau de licenciado em Medicina Tradicional Chinesa deve ainda
assegurar, transversalmente às diferentes componentes, uma formação adequada
nos domínios da bioestatística, comunicação, ética, deontologia e legislação”.
***
Está
visto que não é a falta de suporte científico que falta neste plano de estudos.
O que origina a reação da OM é, como diz o Presidente da SPMC, o seu
posicionamento de corporação e exclusivista como se os médicos fossem os
detentores exclusivos do conhecimento, ciência e prática no que aos doentes diz
respeito. E parece emergir uma tentação de domínio na condução dos destinos do
país no atinente a saúde e finanças. Que hão de dizer, então, de enfermeiros e
paramédicos, gestores em saúde e outros investigadores em biologia e
bioquímica?
Têm
os senhores doutores de se abrir mais à interdisciplinaridade e pensar que
outros também produzem, detêm e comunicam ciência e tecnologia. O mundo não
gira à volta só de alguns nem dá boleia apenas a uns, excluindo os outros. Nem
a ciência é monopólio de ninguém nem se deixa aprisionar por ninguém.
Um
dos maiores revolucionários na medicina – Louis Pasteur – não era médico!
2018.02.14 – Louro de Carvalho
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