quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

O mistério da orfandade da Igreja do Porto


Hoje, 21 de fevereiro, seria justo e agradável telefonar, escrever ou visitar Dom António Francisco dos Santos a saudá-lo pela sua nomeação de há quatro anos para presidir à Igreja diocesana do Porto. Porém, a providência de Deus escreveu de outro modo, acentuando que é o Espírito que dirige o rumo das Igrejas e determinando que este dia deverá ser de sufrágio e, segundo o que algumas vozes sustentadas no novo Motu Proprio do Papa Francisco sobre uma nova via de santidade a propor à consideração dos crentes, estribada na oferta da vida, rezar pela elevação à honra dos altares do último dos bispos desta santa e complexa Igreja particular.
Entretanto, na edição de Voz Portucalense do passado dia 14, o Rev.mo Cónego Rui Osório acusa um certo cansaço pela orfandade a que está votada a Igreja do Porto. Com efeito, sem diminuir a responsabilidade, o peso, o valor e o mérito das diferentes estruturas diocesanas e de todos os elementos que integram a Igreja local, o Bispo, como símbolo e fator de unidade eclesial a valorizar a diversidade de opções, rumos e tendências, é efetivamente o pai na fé, o pontífice em diversas direções e o pastor que, presidindo à colegialidade, gera, orienta e valida a sinodalidade. Por conseguinte, é óbvio que, sem neutralizar ou diminuir as diversas vozes na Igreja, o Prelado diocesano tem uma palavra a dizer de simpatia, de orientação, de estímulo, de apreciação e de formação da consciência eclesial – palavra necessária quando se impõe uma clarificação pastoral sobre temáticas cruciais. E Rui Osório dá o exemplo da orientação que alguns bispos estão a estudar para fornecer às suas dioceses sobre a adoção de caminhos para a efetivação prática da Amoris Laetitia.  
Penso que este membro do Cabido Portuense e pároco da Foz do Douro tem toda a razão nas observações que faz. É certo que, em relação à Amoris Laetitia, de forma supletiva, o clero portuense poderia orientar-se pela carta pastoral do arcebispo de Braga, a metrópole de que a diocese do Porto é sufragânea. Não obstante, a construção dum normativo no âmbito desta Igreja local a partir da informação da realidade prestada por sacerdotes, diáconos, consagrados e leigos que estão no terreno e conhecem as especificidades desta grande e complexa realidade socioeclesial ganharia em autenticidade e validade – tal como estão a fazer outras dioceses.
Parece-me que a diocese está, dentro do possível, a ser bem conduzida pelo administrador diocesano e nada lhe falta do que depende do ministério episcopal, já que o administrador diocesano é um bispo e se mantêm ao serviço mais dois bispos auxiliares. Porém, como declarou publicamente na sua prudência pastoral Dom António Taipa, estará a orientar a diocese segundo as capacidades e limitações que julga deter, tendo um duplo cuidado, o de não desmerecer das orientações de Dom António Francisco dos Santos, que perduram na memória coletiva, e o de não vincular ou enredar o Pastor que vier a presidir aos destinos da diocese.
Por outro lado, é evidente o esforço de colegialidade e de sinodalidade que o saudoso Bispo do Porto imprimiu à orientação da diocese. Embora, a sua voz e o seu lugar fossem preponderantes, os grandes textos orientadores eram rubricados por si e pelos bispos auxiliares, sendo que o jornal diocesano Voz Portucalense dava visibilidade à ação de um e dos outros. E, depois da morte do Bispo diocesano, a distribuição de serviço tem primado pela equidade e eles levaram a cabo a visita pastoral a todas as paróquias da vigararia da Maia como fora estabelecido pelo Bispo diocesano. Por outro lado, as diversas estruturas têm procurado dar conta do recado.
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Há, entretanto, uma outra face da moeda que é preciso considerar.
A demora supina que sofre a provisão das dioceses aquando da sua vacatura. A sociedade civil e política define os tempos e prazos para a sucessão de Chefes de Estado, de chefes militares, de autarcas, etc. Ao invés, na Igreja, com exceção da eleição papal, parece que se tem todo o tempo do mundo. Não há razão para que uma diocese do Porto estivesse tanto tempo sem bispo diocesano aquando da transferência de Dom Manuel Clemente para o Patriarcado de Lisboa (de julho de 2013 a 21 de fevereiro de 2014, embora a posse do sucessor fosse a 5 de abril). Aveiro teve mais sorte. Esteve sem bispo diocesano desde 5 de abril até 4 de julho (embora Dom António Moiteiro tenha entrado solenemente apenas a 14 de setembro). Recordo-me de que Lamego esteve com a sé vaga desde 2 de dezembro de 1998 até 20 de janeiro de 2000.
É como tudo. Em 1978, Ramalho Eanes foi duramente criticado porque exonerou Mário Soares do cargo de Primeiro-Ministro. Ao tempo, a Constituição não era clara na matéria. E o Presidente pretendeu que o Governo continuasse em funções até à posse do governo seguinte. Foi preciso o aconselhamento de Jorge Miranda e a sua declaração pública de que “o mais contém o menos” para vencer os que diziam que, se o Presidente tomou a iniciava de exonerar, deveria ter já disponível a solução. A pari, penso que, em caso de transferência do bispo duma diocese para outra, para a diocese que fica sem bispo deveria ter sido encontrada já a solução, quando se decide a transferência.
No caso da vacatura da diocese por óbito do titular, a questão é diferente. Sem prejuízo de ser designado pelo colégio dos consultores um administrador diocesano, cuja ação o direito limita, é conveniente que se faça o luto diocesano e se digira a memória do bispo defunto. Porém, tudo o que ultrapasse o trimestre pode constituir uma tentação a Deus e uma punição inoportuna e incompatível com o bem da Igreja. O luto, a celebração da memória e a digestão da saudade não justificam tudo, muito menos a não resolução atempada das situações não desejadas que a vida cria ao devir coletivo. Julgo mais grave esta displicência da diplomacia vaticana – e não posso concordar com o Presidente da CEP quando diz que aguarda com serenidade as futuras nomeações dos bispos – que a índole sigilosa do processo de nomeação dos bispos. E, se, como dizia Dom António Francisco, os pobres não podem esperar, é preciso que a CEP diga ao Vaticano que o bem da Igreja a promover nas dioceses não pode esperar e que esta diocese tão grande e complexa – onde há pobreza e pobres – não pode esperar.
Certamente que este mistério da orfandade da Igreja do Porto não é querido por Deus!
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Nem vale dizer-se que o Bispo fora recebido com alguma reticência. Se isso foi verdade, a aura com que as gentes de Aveiro o emolduraram, a amizade de muitos de Lamego, Braga e outras paragens e a aceitação dócil da maioria das gentes portuenses cedo eclipsaram as supostas reticências. E, apesar de alguns espinhos que não são de estranhar na ação pastoral, a postura do Bispo, as suas palavras claras, serenas e audazes, os gestos, a proximidade, a dedicação, a preocupação pela sinodalidade e colegialidade, o investimento na valorização das pessoas, das estruturas humanas e físicas, a popularidade criada em torno do Bispo pela presença junto da imagem peregrina da Virgem de Fátima foram dados que se impuseram à memória coletiva como sinais de uma entrega sem reservas à causa da Igreja e ao bem das pessoas. O próprio testamento de índole pastoral e humanista da sua homilia na peregrinação diocesana, a Fátima a 9 de setembro, constitui o epílogo inesperado deste dinamismo episcopal.
Por outro lado, como em tempos Rui Osório escrevia que, se Dom António não fosse o profeta, ao menos que fosse o salmista, a passagem de Dom António pela Igreja portuense constituiu um verdadeiro salmo de louvor ao sacerdócio, cantável pelo prelado em festas jubilares, ordenações sacerdotais, celebrações exequiais ou em outras homenagens públicas – no que contrastava com as primeiras apreciações do Papa Francisco sobre os sacerdotes (A princípio, o Papa parecia tudo exigir dos sacerdotes e dos bispos). E foi um salmo de louvor pelo bem que tantos e tantas – sacerdotes, diáconos, consagrados, consagradas, catequistas, leigos e leigas – têm feito pela Igreja e pelas demais instituições na diocese. E foi um salmo de incómodo e denúncia pela sorte dos pobres, pelos efeitos da crise, pela dificuldade da Igreja em ser coerente com a sua doutrina, em especial com a sua doutrina social. E foi sobretudo o salmo da esperança no mundo que há de vir como resultado duma “Igreja bela, verdadeira casa de família, sensível, fraterna, acolhedora e sempre a caminho, mãe comovida com as dores e alegrias dos seus filhos e filhas, cada vez menos em casa, cada vez mais fora de casa, a quem deve fazer chegar e saber envolver na mais simples e comovente notícia do amor de Deus. Como disse, de modo extraordinariamente belo e sucinto o Papa Francisco, em Fátima: ‘o rosto jovem e belo da Igreja, que brilha quando é missionária, acolhedora, livre, fiel, pobre de meios e rica no amor’.” (cf Dom António Francisco, Homilia na Missa da Peregrinação Diocesana a Fátima, 9.9.2017).
Foi o Bispo que se apresentava publicamente como feliz, sentia que Deus o acompanhava com a chamada graça de estado (pela qual Deus disponibiliza os meios para enfrentar as dificuldades e ultrapassar as incapacidades pessoais) e que entendia a entrega e dedicação como naturais: “convencidos de que temos que fazer as coisas, fazemo-las”, dizia.
Deus o recompense e, se Lhe aprouver, faça brilhar diante de todos a sua santidade e entrega de vida!
2018.02.21 – Louro de Carvalho

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