Os peritos em ciência política e os responsáveis pelos
sistemas de ensino europeus conhecem a relevância da educação para a cidadania
na construção dum mundo mais justo, mais crítico, mais democrático e mais
responsável. A escola dedica tempo a esta área, mas ou faltam orientações coerentes
e sustentáveis para a profícua abordagem das matérias a ela atinentes ou essas orientações
não são tidas em conta, mercê da oscilação entre a inclusão da cidadania como
disciplina específica no desenho curricular num contexto da transversalidade e
a mera determinação da educação para a cidadania, que também tem dado pela designação
de formação cívica – e parece que vai passar a designar-se por “cidadania e
desenvolvimento” – a abordar em todas as disciplinas por todos os professores
e, pondo-os no final de cada período escolar a tecer considerações avaliativas
sobre cada aluno no respetivo conselho de turma ou de docentes reunido para a
avaliação sumativa das aprendizagens.
Depois, como faltam orientações precisas na formação
inicial dos professores e uma maior margem de manobra nas direções escolares,
que têm de agir sob o império do Ministério das Finanças, a educação para a
cidadania ou a formação cívica é, por regra, confiada ao diretor de turma, que
tendencialmente aproveita para pôr em dia com os alunos a relação administrativa
e disciplinadora com eles.
Ademais, nunca se pôs em marcha a famigerada
disciplina de “desenvolvimento pessoal e
social”, inserida nos planos curriculares aprovados pelo Decreto-Lei n.º 286/89,
de 29 de agosto, em alternativa à disciplina de Educação Moral e Religiosa
Católica ou de outras confissões – embora tenham sido preparados
professores para o efeito e a oferta de escola fosse obrigatória à medida que
dispusesse de tais professores. Por outro lado, foram caindo sucessivamente a Área-Escola,
do mesmo normativo, as áreas curriculares não disciplinares, prescritas pelo
Decreto-Lei n.º 6/2001, de 18 de janeiro, e a área de projeto, prescrita pelo
Decreto-Lei n.º 7/2001, de 18 de janeiro.
***
O relatório Eurydice
Education Citizenship School in Europe – 2017, sobre a matéria, mostra que a educação para a cidadania é uma
prioridade ao nível europeu, integra o currículo na maioria dos países e faz
todo o sentido a sua presença nas escolas faz todo o sentido. Além disso,
revela algumas medidas que se encontram em vigor, mas não monitoriza a sua
implementação, nem avalia a sua eficácia. O documento frisa a importância do
pensamento crítico e socialmente responsável em torno destas matérias, para o
que se requer a participação de pais e alunos e o envolvimento dos professores.
Num mundo que fervilha em atividade num contexto de situações
contraditórias de generosidade e conflito, a educação para a cidadania ganha
uma importância cada vez maior, se pautada pela excelência do conhecimento,
pela educação para o diálogo e respeito pelo ser e palavra do outro e pela
adoção da paz como estilo atitudinal e comportamental de vida. Através dela, os
alunos a tornar-se-ão cidadãos informados e responsáveis, ativos, dispostos e
capazes de assumirem por si a construção do seu destino e do das suas
comunidades. Os sistemas de ensino sabem como é importante ensinar crianças,
adolescentes e jovens a comportarem-se de forma responsável, a compreenderem o
papel das instituições e a sentirem-se progressivamente parte delas ou com elas
dialogantes, a adquirirem competências para desempenharem deveres sociais e
políticos no futuro que a eles pertence. Porém, o relatório em causa adverte:
“No entanto, apesar do progresso nos últimos
anos, quase metade dos países ainda não introduziu regulamentos ou
recomendações sobre a inclusão da Educação para a Cidadania na formação inicial
de professores”.
Além disso, o documento refere que não tem havido
orientações para avaliar os alunos nesta área disciplinar e as competências dos
diretores escolares são limitadas. E – diga-se – avaliar esta área com base em critérios
como assiduidade e pontualidade é de pouco alcance; e avaliar em termos de
autonomia e responsabilidade cai no abstrato.
Mas é de destacar:
“Embora a ênfase esteja nos alunos e no que
acontece na escola, o relatório reconhece que os professores desempenham um
papel vital no processo de aprendizagem, e reconhece que as atividades fora da
sala de aula (como visitas de estudo ou voluntariado e projetos na comunidade)
podem contribuir para os objetivos da educação para a cidadania”.
E é claro que a educação para a cidadania tem de
passar pela abordagem e exercício transversais em sala de aula e fora dela e em
vários espaços escolares e não escolares. É natural que os primeiros anos de escolaridade
propiciem uma incidência preferencial nas regras e modalidades de interação de
forma eficaz e construtiva. Porém, à medida que o aluno avança em idade e em
escolaridade, terá de se investir mais na postura atitudinal e comportamental
que apele constantemente à responsabilidade e à vivência democrática, suportadas
na progressiva capacidade de abstração e no pensamento analítico da sociedade,
no sistema de círculos concêntricos partindo do interior para o exterior.
***
Um parêntesis sobre a rede Eurydice:
Eurydice é uma rede
europeia que colige e difunde informação comparada sobre as políticas e os sistemas
educativos europeus, na forma de estudos e análises comparadas sobre várias
temáticas nas áreas da educação e formação desde a educação de infância ao
ensino superior.
Todos os
Estados Membros da UE participam na Rede Eurydice, lado a lado com alguns
países que não são membros da UE, mas que participam no Programa Erasmus+.
A Rede Eurydice ajuda a melhorar os sistemas
educativos na Europa fornecendo informação de alta qualidade sobre um amplo
leque de aspetos das políticas e práticas na educação. Com o apoio de unidades
nacionais de mais de 35 países, a Rede Eurydice faculta descrições dos sistemas
educativos nacionais, estudos comparativos sobre tópicos específicos, indicadores
e estatísticas. Os seus relatórios mostram a forma como os países lidam com os
desafios em todos os níveis de ensino: educação pré-escolar e cuidados de
infância, ensino primário, ensino secundário, ensino superior e formação de
adultos.
Criada, no
ano de 1980, em parceria entre a Comissão Europeia e os Estados Membros, com o
objetivo de apoiar a
cooperação europeia na área da educação, designadamente trocando informação sobre os sistemas educativos
nacionais, é financiada pelo Programa de Aprendizagem ao Longo da Vida e é
constituída por:
- Uma
UNIDADE EUROPEIA que coordena o trabalho desenvolvido pela Rede e produz as
publicações – unidade sediada na Agência Executiva para a Educação, o
Audiovisual e a Cultura (EACEA), que é responsável pela gestão
e promoção da Rede e das suas publicações.
- 40
UNIDADES NACIONAIS, sediadas nos 36 países que participam no Programa de
Aprendizagem ao Longo da Vida, por regra, integradas nos respetivos Ministérios
da Educação, trabalhando em colaboração estreita com peritos na área da
educação, e que recolhem informação a nível nacional, contribuem para a sua
análise e validam a versão final dos estudos comparados, sendo ainda
responsáveis pela tradução dos estudos nas línguas dos respetivos países.
A Eurydice colabora com o Eurostat,
CEDEFOP, Fundação Europeia para a Formação (ETF), Agência Europeia para o Desenvolvimento em Necessidades Educativas
Especiais e com o Centro de Investigação sobre Aprendizagem ao Longo da Vida (CRELL). E apoia o trabalho colaborativo desenvolvido pela
Comissão Europeia com organizações internacionais, tais como a OCDE, o Conselho
da Europa e a UNESCO.
A Unidade
Portuguesa da Rede Eurydice está sediada
na Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC) de acordo com o definido no Decreto-Regulamentar n.º
13/2012, de 20 de janeiro, o qual, na alínea q) do artigo 2.º, estabelece como
atribuição da DGEEC: “Assegurar o
desempenho das atividades da Unidade Portuguesa da Rede Eurydice”.
É através
desta rede que sabemos, por exemplo:
Que
países facultam educação pré-escolar e cuidados de infância para todos?
Que
medidas são mais utilizadas na Europa para reduzir o abandono escolar precoce?
Onde é
que os professores são melhor pagos?
Qual é a
percentagem de adultos na Europa que nunca usaram um computador?
Quanto
tempo duram as férias escolares na Europa?
Em que
países os estudantes podem ter acesso gratuito ao ensino superior na Europa?
***
Sobre o estado da educação para a cidadania, o relatório
Eurydice assenta que há, na Europa, 33
sistemas educativos formais que dão orientação e material de apoio neste âmbito
em pelo menos um nível de ensino. Desses, 18 têm orientações para todos os
níveis. E, além do modelo mais tradicional, da aprendizagem orientada pelo
professor, também há pedagogias inovadoras. Assim, Portugal, Polónia, Suíça e
Montenegro têm instalado o regime de formação cívico-política através dos
parlamentos de jovens para o público escolar. Na Irlanda, os alunos podem planear
e executar o seu próprio projeto de ação de cidadania. O Chipre investiu na
aprendizagem interativa com um guia de aprendizagem que apoia debates em temas
sensíveis. Na Letónia, selecionam-se filmes sobre casos reais de discriminação
para promover o debate, com base no pensamento crítico e a autorreflexão. Na
Holanda, o voluntariado pode integrar o currículo escolar. Em França, são
de salientar as recentes reformas no sentido de os professores terem
competências na educação para a cidadania de forma a transmitirem assuntos
importantes aos alunos, mediante o desenvolvimento de um plano de ação com
orientações concretas:
“Rejeitar todas as formas de violência e
discriminação, promover os valores da República, ter em consideração a
diversidade estudantil e acompanhar os alunos no processo de aprendizagem,
atuar como educador responsável e ético, integrar ferramentas digitais no
percurso de ensino, cooperar em equipa com os pais e parceiros escolares,
contribuir nas ações da comunidade escolar”.
É de registar a existência de países europeus
concentrados em treinar diretores de escolas para estes assuntos e em implementar
e desenvolver uma série de medidas, inclusive através do currículo e atividades
extracurriculares, com o escopo de envolver os pais e promover a cooperação
entre professores. Em Espanha, por exemplo, as cidades autónomas de Ceuta e
Melilla avançam com cursos de formação para diretores escolares de modo que
melhorem a coexistência nas escolas, planeiem estratégias e previnam conflitos.
Todavia, nem todos os países dedicam o mesmo número de
anos a educar para a cidadania. A duração da educação nesta área pode variar
entre 1 e 12 anos. Estónia, França e Finlândia são os países que dedicam mais tempo,
enquanto Croácia, Chipre e Turquia dedicam menos. E, por norma, não são feitos
testes de avaliação neste âmbito. Os resultados são normalmente usados para
atribuir certificados ou tomar decisões formais no atinente à progressão dos
alunos.
***
Porém, é de ter em conta que a educação para a
cidadania constitui um espaço de abertura para um filão rico de possibilidades
e exercita e desenvolve várias competências. Vai muito mais além do que ensinar
aos alunos os problemas políticos do seu país ou emoldurar o aluno de hábitos de
cortesia e boas maneiras no tratamento deferente para com os outros ou no
cuidado de si próprio. É tudo isso, mas, se conseguir incutir no aluno uma
visão holística da realidade e uma correta perceção do mundo que o rodeia – no vaivém
entre o contexto local e a aldeia global –, leva-o a “refletir sobre as
próprias atitudes, comunicar e ouvir, argumentar e escutar os pontos de vista
dos outros”. É nesta perspetiva que os currículos da maioria dos programas
educacionais europeus incluem o escopo de “encorajar os alunos a participarem
no processo democrático”. E “assim”, como se escreve no relatório, “a educação
moderna para a cidadania na Europa tende não apenas a disseminar conhecimento
teórico sobre democracia, mas também encoraja os alunos a tornarem-se cidadãos
ativos que participam na vida pública e política”.
De facto, do meu ponto de vista, tão estranho será um
aluno não ter consigo um conjunto de hábitos de higiene e cortesia, como não
conhecer as instituições (e seus titulares) presentes nas sua comunidade ou
como não fazer a mínima ideia do que se passa no seu país e no mundo. Sendo
assim, como pode abrir para uma tempestiva intervenção na vida pública? E como
pode ter uma sólida formação cívica, se lhe sussurram que a política é o
demónio em ação ou se o anestesiam com festas e entretenimentos para não se lhe
pegar o vírus da ideologia, distraindo-o do conhecimento e da discussão dos
verdadeiros problemas, vindo a separar artificiosamente cidadania e política,
confundindo desnecessariamente política com ação partidária?
O relatório Eurydice destaca, por outro lado, quatro
áreas de competências na educação para a cidadania como seus pilares
importantes: interagir de forma eficaz e construtiva com os outros, estimulando
permanentemente o desenvolvimento pessoal (autoconfiança, responsabilidade
pessoal e empatia),
comunicando, ouvindo e cooperando com os outros; pensar de forma crítica (raciocínio e
análise, literacia mediática, conhecimento e descoberta e uso de fontes); atuar de forma socialmente responsável, incluindo o
respeito pelo princípio de justiça e direitos humanos, o respeito por outras
culturas e outras religiões, mas desenvolvendo um sentimento de pertença e conhecendo
as questões relacionadas com o ambiente e a sustentabilidade; e agir de forma
democrática, incluindo o respeito pelos princípios democráticos, por forma a
conhecer e compreender os processos políticos, as instituições e organizações.
***
Assim,
lá chegaremos.
2018.03.01 – Louro
de Carvalho
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