quinta-feira, 1 de março de 2018

Educação para a cidadania rumo à construção duma sociedade responsável


Os peritos em ciência política e os responsáveis pelos sistemas de ensino europeus conhecem a relevância da educação para a cidadania na construção dum mundo mais justo, mais crítico, mais democrático e mais responsável. A escola dedica tempo a esta área, mas ou faltam orientações coerentes e sustentáveis para a profícua abordagem das matérias a ela atinentes ou essas orientações não são tidas em conta, mercê da oscilação entre a inclusão da cidadania como disciplina específica no desenho curricular num contexto da transversalidade e a mera determinação da educação para a cidadania, que também tem dado pela designação de formação cívica – e parece que vai passar a designar-se por “cidadania e desenvolvimento” – a abordar em todas as disciplinas por todos os professores e, pondo-os no final de cada período escolar a tecer considerações avaliativas sobre cada aluno no respetivo conselho de turma ou de docentes reunido para a avaliação sumativa das aprendizagens.  
Depois, como faltam orientações precisas na formação inicial dos professores e uma maior margem de manobra nas direções escolares, que têm de agir sob o império do Ministério das Finanças, a educação para a cidadania ou a formação cívica é, por regra, confiada ao diretor de turma, que tendencialmente aproveita para pôr em dia com os alunos a relação administrativa e disciplinadora com eles.
Ademais, nunca se pôs em marcha a famigerada disciplina de “desenvolvimento pessoal e social”, inserida nos planos curriculares aprovados pelo Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto, em alternativa à disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica ou de outras confissões – embora tenham sido preparados professores para o efeito e a oferta de escola fosse obrigatória à medida que dispusesse de tais professores. Por outro lado, foram caindo sucessivamente a Área-Escola, do mesmo normativo, as áreas curriculares não disciplinares, prescritas pelo Decreto-Lei n.º 6/2001, de 18 de janeiro, e a área de projeto, prescrita pelo Decreto-Lei n.º 7/2001, de 18 de janeiro.  
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O relatório Eurydice Education Citizenship School in Europe2017, sobre a matéria, mostra que a educação para a cidadania é uma prioridade ao nível europeu, integra o currículo na maioria dos países e faz todo o sentido a sua presença nas escolas faz todo o sentido. Além disso, revela algumas medidas que se encontram em vigor, mas não monitoriza a sua implementação, nem avalia a sua eficácia. O documento frisa a importância do pensamento crítico e socialmente responsável em torno destas matérias, para o que se requer a participação de pais e alunos e o envolvimento dos professores. 
Num mundo que fervilha em atividade num contexto de situações contraditórias de generosidade e conflito, a educação para a cidadania ganha uma importância cada vez maior, se pautada pela excelência do conhecimento, pela educação para o diálogo e respeito pelo ser e palavra do outro e pela adoção da paz como estilo atitudinal e comportamental de vida. Através dela, os alunos a tornar-se-ão cidadãos informados e responsáveis, ativos, dispostos e capazes de assumirem por si a construção do seu destino e do das suas comunidades. Os sistemas de ensino sabem como é importante ensinar crianças, adolescentes e jovens a comportarem-se de forma responsável, a compreenderem o papel das instituições e a sentirem-se progressivamente parte delas ou com elas dialogantes, a adquirirem competências para desempenharem deveres sociais e políticos no futuro que a eles pertence. Porém, o relatório em causa adverte:
No entanto, apesar do progresso nos últimos anos, quase metade dos países ainda não introduziu regulamentos ou recomendações sobre a inclusão da Educação para a Cidadania na formação inicial de professores”.
Além disso, o documento refere que não tem havido orientações para avaliar os alunos nesta área disciplinar e as competências dos diretores escolares são limitadas. E – diga-se – avaliar esta área com base em critérios como assiduidade e pontualidade é de pouco alcance; e avaliar em termos de autonomia e responsabilidade cai no abstrato.
Mas é de destacar: 
Embora a ênfase esteja nos alunos e no que acontece na escola, o relatório reconhece que os professores desempenham um papel vital no processo de aprendizagem, e reconhece que as atividades fora da sala de aula (como visitas de estudo ou voluntariado e projetos na comunidade) podem contribuir para os objetivos da educação para a cidadania”.
E é claro que a educação para a cidadania tem de passar pela abordagem e exercício transversais em sala de aula e fora dela e em vários espaços escolares e não escolares. É natural que os primeiros anos de escolaridade propiciem uma incidência preferencial nas regras e modalidades de interação de forma eficaz e construtiva. Porém, à medida que o aluno avança em idade e em escolaridade, terá de se investir mais na postura atitudinal e comportamental que apele constantemente à responsabilidade e à vivência democrática, suportadas na progressiva capacidade de abstração e no pensamento analítico da sociedade, no sistema de círculos concêntricos partindo do interior para o exterior.
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Um parêntesis sobre a rede Eurydice:
Eurydice é uma rede europeia que colige e difunde informação comparada sobre as políticas e os sistemas educativos europeus, na forma de estudos e análises comparadas sobre várias temáticas nas áreas da educação e formação desde a educação de infância ao ensino superior.
Todos os Estados Membros da UE participam na Rede Eurydice, lado a lado com alguns países que não são membros da UE, mas que participam no Programa Erasmus+.
A Rede Eurydice ajuda a melhorar os sistemas educativos na Europa fornecendo informação de alta qualidade sobre um amplo leque de aspetos das políticas e práticas na educação. Com o apoio de unidades nacionais de mais de 35 países, a Rede Eurydice faculta descrições dos sistemas educativos nacionais, estudos comparativos sobre tópicos específicos, indicadores e estatísticas. Os seus relatórios mostram a forma como os países lidam com os desafios em todos os níveis de ensino: educação pré-escolar e cuidados de infância, ensino primário, ensino secundário, ensino superior e formação de adultos.
Criada, no ano de 1980, em parceria entre a Comissão Europeia e os Estados Membros, com o objetivo de apoiar a cooperação europeia na área da educação, designadamente trocando informação sobre os sistemas educativos nacionais, é financiada pelo Programa de Aprendizagem ao Longo da Vida e é constituída por:
 - Uma UNIDADE EUROPEIA que coordena o trabalho desenvolvido pela Rede e produz as publicações – unidade sediada na Agência Executiva para a Educação, o Audiovisual e a Cultura (EACEA), que é responsável pela gestão e promoção da Rede e das suas publicações.
 - 40 UNIDADES NACIONAIS, sediadas nos 36 países que participam no Programa de Aprendizagem ao Longo da Vida, por regra, integradas nos respetivos Ministérios da Educação, trabalhando em colaboração estreita com peritos na área da educação, e que recolhem informação a nível nacional, contribuem para a sua análise e validam a versão final dos estudos comparados, sendo ainda responsáveis pela tradução dos estudos nas línguas dos respetivos países.
A Eurydice colabora com o Eurostat, CEDEFOP, Fundação Europeia para a Formação (ETF), Agência Europeia para o Desenvolvimento em Necessidades Educativas Especiais e com o Centro de Investigação sobre Aprendizagem ao Longo da Vida (CRELL). E apoia o trabalho colaborativo desenvolvido pela Comissão Europeia com organizações internacionais, tais como a OCDE, o Conselho da Europa e a UNESCO.
A Unidade Portuguesa da Rede Eurydice está sediada na Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC) de acordo com o definido no Decreto-Regulamentar n.º 13/2012, de 20 de janeiro, o qual, na alínea q) do artigo 2.º, estabelece como atribuição da DGEEC: “Assegurar o desempenho das atividades da Unidade Portuguesa da Rede Eurydice”.
É através desta rede que sabemos, por exemplo:
Que países facultam educação pré-escolar e cuidados de infância para todos?
Que medidas são mais utilizadas na Europa para reduzir o abandono escolar precoce?
Onde é que os professores são melhor pagos?
Qual é a percentagem de adultos na Europa que nunca usaram um computador?
Quanto tempo duram as férias escolares na Europa?
Em que países os estudantes podem ter acesso gratuito ao ensino superior na Europa?

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Sobre o estado da educação para a cidadania, o relatório Eurydice assenta que há, na Europa, 33 sistemas educativos formais que dão orientação e material de apoio neste âmbito em pelo menos um nível de ensino. Desses, 18 têm orientações para todos os níveis. E, além do modelo mais tradicional, da aprendizagem orientada pelo professor, também há pedagogias inovadoras. Assim, Portugal, Polónia, Suíça e Montenegro têm instalado o regime de formação cívico-política através dos parlamentos de jovens para o público escolar. Na Irlanda, os alunos podem planear e executar o seu próprio projeto de ação de cidadania. O Chipre investiu na aprendizagem interativa com um guia de aprendizagem que apoia debates em temas sensíveis. Na Letónia, selecionam-se filmes sobre casos reais de discriminação para promover o debate, com base no pensamento crítico e a autorreflexão. Na Holanda, o voluntariado pode integrar o currículo escolar. Em França, são de salientar as recentes reformas no sentido de os professores terem competências na educação para a cidadania de forma a transmitirem assuntos importantes aos alunos, mediante o desenvolvimento de um plano de ação com orientações concretas:
Rejeitar todas as formas de violência e discriminação, promover os valores da República, ter em consideração a diversidade estudantil e acompanhar os alunos no processo de aprendizagem, atuar como educador responsável e ético, integrar ferramentas digitais no percurso de ensino, cooperar em equipa com os pais e parceiros escolares, contribuir nas ações da comunidade escolar”. 
É de registar a existência de países europeus concentrados em treinar diretores de escolas para estes assuntos e em implementar e desenvolver uma série de medidas, inclusive através do currículo e atividades extracurriculares, com o escopo de envolver os pais e promover a cooperação entre professores. Em Espanha, por exemplo, as cidades autónomas de Ceuta e Melilla avançam com cursos de formação para diretores escolares de modo que melhorem a coexistência nas escolas, planeiem estratégias e previnam conflitos.
Todavia, nem todos os países dedicam o mesmo número de anos a educar para a cidadania. A duração da educação nesta área pode variar entre 1 e 12 anos. Estónia, França e Finlândia são os países que dedicam mais tempo, enquanto Croácia, Chipre e Turquia dedicam menos. E, por norma, não são feitos testes de avaliação neste âmbito. Os resultados são normalmente usados para atribuir certificados ou tomar decisões formais no atinente à progressão dos alunos. 
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Porém, é de ter em conta que a educação para a cidadania constitui um espaço de abertura para um filão rico de possibilidades e exercita e desenvolve várias competências. Vai muito mais além do que ensinar aos alunos os problemas políticos do seu país ou emoldurar o aluno de hábitos de cortesia e boas maneiras no tratamento deferente para com os outros ou no cuidado de si próprio. É tudo isso, mas, se conseguir incutir no aluno uma visão holística da realidade e uma correta perceção do mundo que o rodeia – no vaivém entre o contexto local e a aldeia global –, leva-o a “refletir sobre as próprias atitudes, comunicar e ouvir, argumentar e escutar os pontos de vista dos outros”. É nesta perspetiva que os currículos da maioria dos programas educacionais europeus incluem o escopo de “encorajar os alunos a participarem no processo democrático”. E “assim”, como se escreve no relatório, “a educação moderna para a cidadania na Europa tende não apenas a disseminar conhecimento teórico sobre democracia, mas também encoraja os alunos a tornarem-se cidadãos ativos que participam na vida pública e política”. 
De facto, do meu ponto de vista, tão estranho será um aluno não ter consigo um conjunto de hábitos de higiene e cortesia, como não conhecer as instituições (e seus titulares) presentes nas sua comunidade ou como não fazer a mínima ideia do que se passa no seu país e no mundo. Sendo assim, como pode abrir para uma tempestiva intervenção na vida pública? E como pode ter uma sólida formação cívica, se lhe sussurram que a política é o demónio em ação ou se o anestesiam com festas e entretenimentos para não se lhe pegar o vírus da ideologia, distraindo-o do conhecimento e da discussão dos verdadeiros problemas, vindo a separar artificiosamente cidadania e política, confundindo desnecessariamente política com ação partidária?  
O relatório Eurydice destaca, por outro lado, quatro áreas de competências na educação para a cidadania como seus pilares importantes: interagir de forma eficaz e construtiva com os outros, estimulando permanentemente o desenvolvimento pessoal (autoconfiança, responsabilidade pessoal e empatia), comunicando, ouvindo e cooperando com os outros; pensar de forma crítica (raciocínio e análise, literacia mediática, conhecimento e descoberta e uso de fontes); atuar de forma socialmente responsável, incluindo o respeito pelo princípio de justiça e direitos humanos, o respeito por outras culturas e outras religiões, mas desenvolvendo um sentimento de pertença e conhecendo as questões relacionadas com o ambiente e a sustentabilidade; e agir de forma democrática, incluindo o respeito pelos princípios democráticos, por forma a conhecer e compreender os processos políticos, as instituições e organizações.
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Assim, lá chegaremos.
2018.03.01 – Louro de Carvalho

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