sábado, 31 de março de 2018

Com Jesus, ir contra a corrente


Na pregação de Sexta-feira Santa, na solene celebração da Paixão do Senhor, presidida pelo Papa Francisco, Frei Raniero Cantalamessa exortou os jovens à ousadia, sustentando que “a direção oposta não é um lugar, mas uma pessoa: Jesus”.
O tema da homilia proferida pelo pregador da Casa Pontifícia foi “Quem vê, dá testemunho”, tirado dos versículos do Evangelho de João: “Aquele que viu estas coisas é que dá testemunho delas e o seu testemunho é verdadeiro. E ele bem sabe que diz a verdade, para vós crerdes também.” (Jo 19,35).
Na verdade, todos os discípulos abandonaram o Mestre após a prisão de Jesus no Horto das Oliveiras. Porém, o discípulo amado estava no Calvário no momento da imolação do Filho de Deus. Presenciou tudo: a crucifixão, o levantamento da cruz, o repartimento das vestes e o sorteio da túnica. E, sobretudo, partilhou a lúcida e comovente cena testamentária do Senhor:
Junto à cruz de Jesus estavam, de pé, sua mãe e a irmã da sua mãe, Maria, a mulher de Clopas, e Maria Madalena. Então, Jesus, ao ver ali ao pé a sua mãe e o discípulo que Ele amava, disse à mãe: ‘Mulher, eis o teu filho!’. Depois, disse ao discípulo: ‘Eis a tua mãe!’. E, desde aquela hora, o discípulo acolheu-a como sua.” (Jo 19,25-27).  
Aquele instante foi o da constituição da maternidade universal de Maria pela via do discipulado, discipulado que herda do Mestre o que Ele tem de melhor, a Mãe, tal como herdou o mistério do pão e do vinho, feitos Corpo e Sangue de Cristo. E a Mãe, a primeira discípula, que fora a grande educadora para e pela ternura, solicitude e autonomia, torna-se a Mãe dos discípulos e inspira a ação materna da Igreja que vai nascer do lado aberto do Crucificado.
Depois disso, Jesus, sabendo que tudo se consumara, para se cumprir totalmente a Escritura, disse: “Tenho sede!”. E, ensopando no vinagre, que estava ali numa vasilha cheia, uma esponja fixada num ramo de hissopo, chegaram-lha à boca. Ao tomar o vinagre, Jesus disse: ‘Tudo está consumado’. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito.
Tinha sede física, mas também a sede de almas que aceitassem a salvação oferecida na cruz, contra a maldade, a iniquidade e a indiferença. E sentiu que a sua obra tinha chegado ao fim. Deu-se a sua glorificação e foi glorificado o Pai. Agora era preciso contemplá-Lo na cruz e tirar consequências, aprendendo e testemunhando.  
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Ao verem que Jesus já estava morto, os soldados não lhe quebraram as pernas, mas um deles abriu-lhe o peito com uma lança do qual saiu, imediatamente, sangue e água. Quem viu este facto deu testemunho, – que é digno de fé, pois ele sabe que diz a verdade – a fim de que vós creiais.” (Jo 19,33-35).
Partindo desta citação do 4.º Evangelho, Cantalamessa afirmou que “ninguém jamais será capaz de nos convencer de que este testemunho solene não corresponde à verdade histórica”. O autor, São João, o discípulo a quem Jesus amava, estava no Calvário, aos pés da cruz, junto com a Mãe Maria. Eles foram testemunhas oculares e auditivas do facto!
Ele “viu” e “descreveu”, não apenas o que acontecia à vista de todos, mas o que se vê sob a luz do Espírito Santo e dos eventos pascais, dando sentido ao que havia visto. Naquele momento, era a imolação do verdadeiro Cordeiro de Deus, o pleno cumprimento da Páscoa antiga e, sobretudo a inauguração da nova Páscoa, a Páscoa prometida, que dá novo sentido à Páscoa antiga. Na verdade, Cristo na cruz era o novo Templo de Deus, de cujo peito jorra a água da vida. Ele é o início da nova criação! Assim, João entendeu o profundo significado das últimas palavras de Jesus: “Tudo está consumado”.
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São João Crisóstomo ensina o valor do sangue e da água que jorrou do lado aberto de Cristo. O valor deste sangue avalia-se também pela fonte e a fonte de que brotou é a cruz. Começou a brotar da cruz, mas a sua fonte manancial é o lado do Senhor. E, se a água que brotou do lado do Senhor é símbolo do Batismo, que Jesus nos mereceu na cruz e que nós assumimos sacramentalmente na ablução batismal, o sangue é símbolo da Eucaristia que celebramos em sacrifício do Senhor e nos alimenta em comunhão.
O soldado trespassou o lado, abriu uma brecha na parede do templo santo e nós achámos um grande tesouro e alegramo-nos encontrarmos riquezas admiráveis. Assim sucedeu com este Cordeiro da nova Aliança. Os judeus mataram-no e nós recebemos “o fruto do sacrifício”.
Esta água e este sangue simbolizam o Batismo e a Eucaristia. Foi destes sacramentos que nasceu a Igreja, pelo banho de regeneração e pela renovação do Espírito Santo, isto é, pelo sacramento do Batismo e pela Eucaristia que brotaram do lado de Cristo. Foi do lado de Cristo, portanto, que se formou a Igreja, como foi do lado de Adão que Eva foi formada. Por isso, a Escritura, falando do primeiro homem, usa a expressão “carne da minha carne, osso dos meus ossos”, que Paulo refere, aludindo ao lado de Cristo. Ora, assim como Deus, do lado de Adão formou a mulher, assim Cristo, do seu lado, nos deu a água e o sangue para formar a Igreja. E, como Deus abriu o lado de Adão enquanto ele dormia, assim Cristo nos deu a água e o sangue durante o sono da sua morte. É a união e complementaridade dos dois elementos do género humano e é a união e complementaridade do consórcio divino-humano Cristo-Igreja.
(cf Ofício de Leitura, Sexta-feira Santa in: http://www.liturgia.pt/lh/pdf/042TriPas6f.pdf )
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Depois, o pregador Cantalemessa interrogou-se sobre os inúmeros significados que se leem cruz de Cristo: Porquê a grande presença do Crucifixo em nossas igrejas, altares e em todos os lugares frequentados pelos cristãos? E respondeu com uma chave de leitura deste mistério: “Deus revela o seu poder na fraqueza, a sua sabedoria na loucura, a sua riqueza na pobreza”.
Esta chave de leitura permite perceber o sentido da Cruz, na qual Deus se revela em sua realidade mais íntima e verdadeira, pois Deus é “ágape”, amor oblativo; somente na cruz se entende a magnanimidade da autodoação de Deus.
Além disso, é conveniente anotar que Jesus morreu com 33 anos de idade, um jovem. E também o discípulo amado presente no Calvário era um jovem, o mais novo dos doze apóstolos. Por isso e neste sentido, o Frei Capuchinho recordou o próximo Sínodo dos Bispos sobre os Jovens. A Igreja quer colocá-los no centro da sua preocupação pastoral. A presença no Calvário do discípulo que Jesus amava representa uma mensagem especial. João seguiu Jesus quando era muito jovem. Este encontro pessoal e existencial foi sua verdadeira paixão! O mistério pascal da morte e ressurreição de Jesus, a sua Pessoa, representam o núcleo do pensamento do evangelista.
João era, certamente, um dos dois discípulos do Batista que, apareceu no início da vida pública de Jesus; o outro era André, irmão de Pedro. E perguntaram-lhe: “Mestre, onde moras?”. E Jesus respondeu: “Vinde e vede!”. Então, “desde aquela tarde, foram e ficaram com ele” (cf Jo 1,38-39).
Ora, neste Sínodo sobre a Juventude, disse Frei Cantalamessa, deveremos descobrir “o que Cristo espera dos jovens” e “o que eles podem dar à Igreja e à sociedade”. Mas o mais importante é levar os jovens a saber o que Jesus tem para lhes dar. João descobriu-o, ao ficar com Ele: “Jesus é vida em abundância! Jesus é alegria plena!”. Logo, encontrar-se pessoalmente com Cristo é possível também hoje, porque ele ressuscitou; ele é uma pessoa viva, não uma personagem dramaticamente confecionada e caraterizada.
João também deixou a sua mensagem aos jovens, na sua primeira Carta:
Jovens, eu vos escrevi, porque vós sois fortes e a Palavra de Deus permanece em vós. Não ameis o mundo nem as coisas do mundo. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele.” (1Jo 2,14.15).
Devemos estar no mundo – disse o Pregador da Casa Pontifícia – principalmente entre os pobres, os últimos, no mundo do sofrimento, da marginalização e do egoísmo, sem, porém, a ele pertencermos.
Exatamente porque não pertencemos ao mundo, porque esta não é a nossa pátria – a nossa pátria definitiva é o Céu –, teremos de ir contra a corrente.
Assim, na conclusão da sua pregação, nesta Sexta-feira da Paixão, o capuchinho deixou um convite aos jovens cristãos:
Sede como aqueles que vão à direção oposta! Atrevei-vos a ir contra a corrente! A direção oposta não é um lugar, mas uma pessoa: é Jesus, nosso amigo e redentor!”.
Mas foi-lhes confiada também uma tarefa especial: “Salvar o amor humano”. Com efeito, na cruz, Deus revelou-Se como Ágape, o Amor que se doa. Por isso, não devemos renunciar às alegrias do amor, mas ter a capacidade de se doar ao próximo: “Há mais alegria em dar do que em receber” (At 20,35), diz São Paulo.
Porém, é preciso preparar-se para a doação total de si, seja através do matrimónio seja da vida consagrada, começando com a doação do próprio tempo, do sorriso, da própria juventude em família, na paróquia, no voluntariado.
Porque Jesus na cruz não nos deu apenas o exemplo de extrema doação por amor, mas a água e o sangue, jorrados do seu peito, chegam até nós pelos sacramentos da Igreja e pela Palavra, devemos contemplar, com fé, o Crucifixo e aprender com ele a lição da vida e a via da Ressurreição que passa pela Cruz.
Contra a corrente egoísta e ensimesmada, uma vida de doação, uma vida o bem-fazer.
2018.03.31 – Louro de Carvalho


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