domingo, 18 de março de 2018

Ir além das aparências para entender o mistério de uma pessoa


O Papa Francisco rezou, neste domingo, 18 de março, como habitualmente o faz aos domingos e dias santos, a oração mariana do Angelus com os fiéis e peregrinos de várias partes do mundo, presentes na Praça São Pedro.
Porém, antes pronunciou uma breve alocução com acento no Evangelho do dia, salientando um dos verbos fundamentais do texto de João – o verbo “ver”. E disse que o verbo que João usa “ver”, “significa chegar ao coração, chegar com os olhos, com o entendimento até ao íntimo da pessoa, dentro da pessoa”. Não é de um ver superficial que se trata, mas do ver com olhar profundo e “penetrante”, “de olhos abertos”, como se dizia de Balaão filho de Beor:  
Oráculo de Balaão, filho de Beor, oráculo do homem de olhar penetrante; oráculo do que escuta as palavras de Deus, que tem a visão do Omnipotente, que se prostra, mas de olhos abertos” (Nm 24,3-4).
O Evangelho deste domingo, sublinha o Papa, narra o episódio ocorrido nos últimos dias da vida de Jesus que se encontra em Jerusalém para a festa da Páscoa judaica, sendo que alguns gregos também participaram nesta celebração ritual. “Trata-se de homens animados por sentimentos religiosos, atraídos pela fé do povo judeu e que, tendo ouvido falar desse grande profeta, se aproximam de Filipe, um dos doze apóstolos, e lhe dizem: Queremos ver Jesus”.
Provavelmente queriam ver Jesus por curiosidade, para não ficarem para trás, para verem prodígios e sinais. Tanto assim era que não estavam à vontade para se dirigirem a Ele, mas tentaram fazê-lo por intermediários.
É certo que a oferta da Salvação trazida por Cristo se dirigia também a eles, aliás como a todos, dado o seu caráter universal, mas essa visão de Jesus tinha de ser feita em comunidade e não se podia ficar pela tona. Era e é preciso chegar ao coração.   
Como diz o Pontífice, João faz ressaltar “esta frase, centrada no ver, que no vocabulário do evangelista significa ir além das aparências para entender o mistério de uma pessoa”. O verbo que João usa “ver” significa chegar ao coração, chegar com os olhos, com o entendimento até o íntimo da pessoa, dentro da pessoa”.
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O verbo “ver” é recorrente em João.
Vejamos, a título de exemplo, alguns lugares do Evangelho: “E nós vimos a sua glória, a glória que possui como Filho Unigénito do Pai, cheio de graça e de verdade” (Jo 1,14). “Vi o Espírito que descia do céu como uma pomba e permanecia sobre Ele […] Pois bem: eu vi e dou testemunho de que este é o Filho de Deus.” (Jo 1,32.34). “Ele respondeu-lhes: ‘Vinde e vereis’. Foram, pois, e viram onde morava e ficaram com Ele nesse dia.” (Jo 1,39). “Vi-te quando estavas debaixo da figueira” (Jo 1,48). “Hás de ver coisas maiores do que estas” (Jo 1,50). Em verdade, em verdade vos digo: vereis o Céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo por meio do Filho do Homem” (Jo 1,51). É um ver que denota a penetração no mistério de Deus, no coração da pessoa e na propedêutica para o testemunho.
“Muitos creram nele ao verem os sinais miraculosos que realizava” (Jo 2,23). “Nós falamos do que sabemos e damos testemunho do que vimos” (Jo 3,11). “Aquele que vem do Céu está acima de tudo e dá testemunho daquilo que viu e ouviu” (Jo 3,31-32). “Senhor, vejo que és um profeta” (Jo 4,19). “Vinde ver um homem que me disse tudo o que eu fiz” (Jo 4,29). “Se não virdes sinais extraordinários e prodígios, não acreditais (Jo 4,48). “O pai viu, então, que tinha sido exatamente àquela hora que Jesus lhe dissera: ‘O teu filho está salvo’. E acreditou ele e todos os da sua casa” (Jo 4,53). Alguns só acreditam se virem, enquanto outros creem sem ter visto.
“Jesus, ao vê-lo prostrado e sabendo que já levava muito tempo assim, disse-lhe: Queres ficar são?” (Jo 5,6). É o ver de compaixão pela necessidade. “ lá: ficaste curado. Não peques mais.” (Jo 5,14). É o ver de advertência. “Aquela gente, ao ver o sinal milagroso que Jesus tinha feito, dizia: ‘Este é realmente o Profeta que devia vir ao mundo’!” (Jo 6,14). É o ver que leva a crer. “Quando viu que nem Jesus nem os seus discípulos estavam ali, a multidão subiu para os barcos e foi para Cafarnaum à procura de Jesus” (Jo 6,24). É o ver do desconforto e que leva à procura. “Aquele que o Filho e nele crê tenha a vida eterna (Jo 1,40). É o ver da fé profunda e firme que transporta à vida eterna, que gera a salvação.
E revisitemos o cap. 20. Maria Madalena viu retirada a pedra do sepulcro (v. 1); Simão Pedro ficou admirado ao ver os panos (v. 6); o outro discípulo  viu e começou a crer” (v. 8); Maria Madalena “voltou-se para trás e viu Jesus, de pé, mas não se dava conta de que era Ele” (v. 14); “Maria Madalena foi e anunciou aos discípulos: ‘Vi o Senhor!’. E contou o que Ele lhe tinha dito” (v. 18); “Os discípulos encheram-se de alegria por verem o Senhor” (v. 20). “Disseram: ‘Vimos o Senhor’. Tomé disse: ‘Se eu não vir o sinal dos pregos nas suas mãos e não meter o meu dedo nesse sinal dos pregos e a minha mão no seu peito, não acredito’.” (v. 25).
Depois desta caminhada ao encontro do Ressuscitado, entre a surpresa, dúvida e alegria testemunhante, vem a sentença do Senhor: “Porque me viste, acreditaste. Felizes os que creem sem terem visto,” (v. 29). É um ver que tem de passar do corporal para o espiritual e para o total.
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A reação de Jesus ao desejo daqueles gregos de que fala a perícopa do Evangelho em causa (Jo 12,20-33) é surpreendente, no dizer do Papa. Jesus não responde com um ‘sim’ ou com um ‘não’, mas di-lo com um facto não palpável à vista desarmada: “Chegou a hora em que o Filho do Homem vai ser glorificado”. São palavras, que à primeira vista parecem ignorar o desejo dos gregos, mas na realidade dão a verdadeira resposta, porque quem quer conhecer Jesus deve olhá-Lo dentro da cruz, onde a sua glória é revelada – olhar dentro da cruz. Por isso, Francisco adverte:
O Evangelho de hoje convida-nos a dirigir o nosso olhar ao crucifixo, que não é um objeto de decoração ou o acessório de uma roupa, de que se abusa às vezes!”.
O crucifixo é, antes, um sinal religioso a ser contemplado e compreendido. Na imagem de Jesus crucificado revela-se o mistério da morte do Filho como supremo ato de amor, fonte de vida e salvação para a humanidade de todos os tempos, pois, “em suas chagas fomos curados” (1Pe 2,24).  Assim, a cruz não é ato de loucura ou pedra de escândalo nem mesmo a refinada sabedoria grega, mas a portadora da sabedoria do Altíssimo. Por isso, com Cristo inaugurou-se um tipo específico de sabedoria, a “Sabedoria da cruz”. E hoje a Santa Sofia é a sabedoria sapiente de Deus existente desde toda a eternidade, mas, depois do episódio do Calvário, a sabedoria para os crentes é Cristo crucificado. Nestes termos, o Papa Francisco discorre:
Posso pensar: como olho eu o crucifixo? Como uma obra de arte, para ver se é bonito ou feio? Eu olho-o de dentro, entro nas chagas de Jesus até o seu coração? Olho o mistério do Deus que se aniquilou até a morte, como um escravo, como um criminoso? Não vos esqueçais disso: olhar o crucifixo, mas olhá-lo dentro.
Depois, refere “a devoção bonita de rezar um Pai-Nosso numa das cinco chagas”, exortando: “Quando rezamos este Pai-Nosso, procuremos entrar dentro das chagas de Jesus, em seu coração”, pois, “ali, aprenderemos a grande sabedoria do mistério de Cristo, a grande sabedoria da cruz”.
Para explicar o significado da sua Paixão, Morte e Ressurreição, Jesus usa a imagem do grão de trigo, advertindo: “Se o grão de trigo que cai na terra não morre, continua só; mas se morre, então produz muito fruto”.
Enfim, a Cruz coroa a encarnação, pois é a sua finalidade. E o Papa explicita o querer de Jesus:
Ele quer deixar claro que o seu evento extremo, ou seja, a cruz, morte e ressurreição, é um ato de fecundidade, as suas chagas nos curaram. Uma fecundidade que dará fruto para muitos. Assim, ele compara-se ao grão de trigo que, morrendo na terra, gera vida nova.”.
Como diz o Papa, “com a encarnação, Jesus veio ao mundo; mas isso não basta”. Na verdade, “Ele deve também morrer para resgatar os homens da escravidão do pecado e dar-lhes uma nova vida reconciliada no amor”. Ele é o redentor do homem, o redentor do mundo!
E Francisco esmiúça meditando:
Eu disse para resgatar os homens: para me resgatar, te resgatar a ti, a todos nós, a cada um de nós. Ele pagou esse preço. Este é o mistério de Cristo. Vai às suas chagas, entra e contempla. Vê Jesus de dentro.”.
Segundo o Santo Padre, “este dinamismo do grão de trigo, realizado em Jesus, também deve ser realizado em nós, seus discípulos”, pois,somos chamados a fazer nossa esta lei pascal de perder a vida para recebê-la nova e também eterna”.
Mas é importante questionarmo-nos sobre o significado deste perder a vida à imagem do grão de trigo. Por isso, o discurso papal desenvolve-se agora no esquema pergunta-resposta:
O que significa perder a vida? O que significa ser um grão de trigo? Significa pensar menos em si mesmos, nos interesses pessoais, e saber ‘ver’ e ir ao encontro das necessidades do nosso próximo, especialmente dos últimos.”.
Por consequência, é preciso incorporar no nosso estilo de vida e este dinamismo:
Realizar com alegria obras caritativas aos que sofrem no corpo e no espírito é a maneira mais autêntica de viver o Evangelho, é o fundamento necessário para que as nossas comunidades cresçam na fraternidade e no acolhimento recíproco. Quero ver Jesus, mas vê-lo de dentro. Entra em suas chagas e contempla o amor de seu coração por ti, por mim, por todos.”.
E, a ilustrar a força deste dinamismo da dedicação compassiva e generosa, o Papa recordou visita feita, no dia 17, a Pietrelcina e San Giovanni Rotondo, onde lidou com o sofrimento e a dor, bem como com a abnegação dos cuidadores no Hospital Pediátrico e na Casa do Alívio e do Sofrimento. De facto, tantos e tantas completam na sua carne o que falta à Paixão de Cristo, por seu corpo, que é a Igreja (cf Cl 1,24).
2018.03.18 – Louro de Carvalho

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