segunda-feira, 19 de março de 2018

Martelação de contas ou habilidade contabilística ou jogo de interesses


De vez em quando, aponta-se a contas de empresas, serviços e Estados a ginástica da martelação das contas. Até se escreveu, em tempos, que um grande grupo financeiro ensinou o Estado grego a martelar as suas contas públicas para Zona Euro ver.
Porém, o que dá azo a esta reflexão é, não o GES cujos desaforos continuam a fazer mossa na memória financeira e no pecúlio dos contribuintes portugueses, mas a AMMG (Associação Mutualista Montepio Geral) e a sua dona, a CEMG (Caixa Económica Montepio Geral), geralmente conhecida por banco Montepio ou simplesmente Montepio.
***
Do Montepio, por razões de sustentabilidade – embora tenha sido dito publicamente que o banco não precisa de parceiros estratégicos como investidores –, surgiu um namoro à SCML para alinhar numa participação no capital. Quanto à iniciativa ou fases e modalidades da iniciativa, faz-se o jogo do empurra: Provedor (anterior e atual), Governo e Banco de Portugal. Discutiu-se a incompatibilidade (ou não) com a índole, os recursos, os fins e os meios adequados, à face dos Estatutos, como se discutiu a legitimidade de participações financeiras da SCML como se faz com a aquisição de imóveis e obras de arte. E, sobretudo, usou-se a arma do ganho do tempo, dizendo que não estava nenhuma decisão tomada, exatamente para, no auge da discussão distrativa, se tomar a decisão aparentemente menos arriscada, mas altamente capciosa.
Vejamos. Lançou-se para as pantalhas da discussão um valor atribuído ao banco de cerca de 2000 milhões de euros, quando a avaliação por parte do Haitong (a entidade encarregada da mesma) não estava concluída. Sendo assim, a SCML investiria cerca de 200 milhões, o correspondente a 10% do capital total do Montepio, o que lhe daria direito a dois lugares na administração. Face a algumas críticas, até porque, pelos vistos, 200 milhões seriam o que ela tinha disponível, a SCML faz saber que só entraria no projeto se outras entidades também entrassem nele.
Mesmo, sabendo-se que a avaliação do banco não fora concluída, por que a AMMG não forneceu os dados pedidos pelo Haitong, a Comunicação Social descobriu que ele valeria no máximo 1600 milhões, o que, assim sendo, 10% seriam 160 milhões. Mas não esqueçamos que dantes se falou num valor do Montepio estimado em 860 milhões, o que, para 10%, daria 86 milhões, que era o valor inicial apalavrado com o antigo provedor da SCML.
Agora, talvez por milagre da “Santa Rainha Leonor” ou de “São Frei Miguel Contreiras” (que andava pelas ruas de Lisboa com um anão e um burro a dar esmolas aos pobres), a CEMG está avaliada em 2400 milhões de euros. Porém, por obra de arrependimento parcial, a SCML não entra com 10%, ou seja 240 milhões. Não, a SCML e as outras entidades ligadas à economia social (dezenas de Misericórdias de todo o país e outras IPSS) entram na participação do capital montepiano com apenas 2% ou seja 48 milhões de euros (algumas vozes e canetas referem cerca de 50 milhões). A SCML entra, de imediato, com 20 milhões, o que dá um lugar de administrador não executivo ao seu provedor; as outras entidades entrarão com 28 milhões, mas, como não terão disponível este montante ou por ainda não terem acertado a forma de distribuir a quota de participação ou porque adquirirão ações, vão realizando a participação paulatinamente. E donde provisão o outro administrador?
Posto isto, qual é o resultado do martelamento de contas? Salvar o banco com 48 milhões? É pouco. Garantir a presença duma entidade tutelada pelo Estado no Montepio (Então sejam claros: digam ao que vão!). Mas eu penso que isto é a rampa de lançamento. As entidades ditas de economia social, estando lá facilmente são solicitadas ao reforço de capital logo que e sempre que necessário. E aí a Misericórdia de Lisboa, entre os pequenos do alfobre dos que detêm 2% do capital, reforçará a sua posição como pretender.
E mais uma questão. Se as outras Misericórdias e outras IPSS não participam nos jogos sociais como a SCML e não são tuteladas pelo Estado, como é que se explica que entrem no capital do Montepio? Será por ato espontâneo de ajuda solidária para com aquele pobrezinho? Será por receio de perderem subsídios estatais? Será por exigência do Montepio para financiamento das mesmas? Assim, esta economia social não mata, mas aleija!        
***
Falemos agora da Associação Mutualista, a AMMG.
Em 2017, perdeu 7000 associados. Certamente que não foi por estarem satisfeitos ou por estarem cumpridos os objetivos estatutários da AMMG. O problema é crónico: a má gestão.
Bem, mas restaram de 625 mil. E a instituição diz que as receitas associativas cresceram 234 milhões, para 711 milhões, “fruto da dinâmica do relacionamento associativo obtido através da rede dedicada de gestores mutualistas e do contributo da rede de balcões da CEMG”.
Também sabemos que, mesmo contra a opinião de um dos administradores, a AMMG aumentou o capital em 250 milhões e que, apesar das recomendações em contrário do Banco de Portugal, continuou a vender produtos seus nos balcões da CEMG sem a competente distinção de narizes.
Entretanto, a CEMG e a Montepio Seguros levaram a AMMG a registar imparidades adicionais no valor de 233,4 milhões de euros nas contas de 2017 – indicou a mutualista liderada por Tomás Correia no comunicado onde apresenta, de forma resumida, as contas consolidadas de 2016 e as contas individuais de 2017 (que esperam aprovação na próxima assembleia geral do dia 28 de março). Em relação ao banco, este ativo está avaliado em cerca de 2000 milhões de euros no balanço da associação – incorporando já uma imparidade anterior de 350 milhões de euros – sendo a questão da avaliação a razão pela qual o negócio da entrada da SCML ainda não foi concretizado. E, quanto à Montepio Seguros (inclui a Lusitania Vida, a Lusitania Seguros e a N Seguros), a proposta dos chineses da CEFC China Energy incorporava uma avaliação em cerca dos 250 milhões de euros.
Em 2015, o balanço consolidado da AMMG indicava resultados transitados negativos de 409 milhões de euros, um prejuízo no exercício de 273 milhões, e um total de capitais próprios de 30 milhões. E a Mutualista fechou o ano de 2016 com capitais próprios negativos em 251 milhões.
Ora, face ao exposto, esta IPSS, que estava isenta de pagar IRC, pediu às Finanças para perder a isenção de IRC. Em troca, beneficia de créditos fiscais que lhe permitem sair da situação de aperto, passando a apresentar capitais próprios positivos. E vai continuar a tirar partido deste “bónus” fiscal nos próximos anos, mas, quando este se esgotar pode voltar a ficar isenta de impostos. Basta cumprir novamente os critérios exigidos às IPSS.
“A AMMG, no cumprimento das normas internacionais de contabilidade, refletiu nas suas demonstrações financeiras o apuramento de ativos por impostos diferidos no montante de 808,6 milhões de euros”, lê-se no comunicado da instituição sobre os resultados de 2016 (consolidados) e 2017 (individuais). Beneficiando deste crédito, teve lucros de 587,5 milhões de euros, passando de capitais próprios de -250 milhões para 510 milhões de euros, pois desenvolve, a título principal, atividades de natureza comercial. Este regime será aplicado nos “períodos de 2017 e seguintes”.  Se deixar de beneficiar destes créditos, pode voltar a beneficiar da isenção de IRC.
A isenção de IRC aplicada à IPSS rege-se pelo art.º 10.º do CIRC, que define os requisitos para beneficiar dela. Exige-se que seja instituição de utilidade pública, que pelo menos metade dos lucros tenha sido afetada a essa função e que não exista qualquer interesse, direto ou indireto, dos órgãos estatutários nos resultados da entidade. Se falhar qualquer um destes requisitos, passa a ser tributada como qualquer outra empresa em Portugal.
Os créditos fiscais que elevaram os capitais próprios da AMMG – de 250 milhões negativos a 500 milhões positivos – têm em conta, sobretudo, as provisões que a associação reservou para fazer face a responsabilidades sobre os produtos por si comercializados. As provisões pesam 77% – muito mais que os prejuízos fiscais e as imparidades. Uma borla!
A Associação Mutualista contou com 808 milhões de ativos por impostos diferidos, – os chamados DTA na terminologia anglo-saxónica – para equilibrar o balanço de 2017. Nesta soma, as provisões matemáticas são a grande fatia: 77%, ou seja, 622,518 milhões de euros. Estas provisões são a “almofada” financeira que acautela as responsabilidades relativas aos produtos financeiros da associação. Bastante atrás na relevância em termos de crédito fiscal concedido, estão os prejuízos fiscais. Estes constituem um “ativo” de 202 milhões, ou seja, aproximadamente um quarto dos ativos por impostos diferidos. Mais residual é o peso dos benefícios pós-emprego, que se fica pelos 3,2 milhões. As imparidades estão na cauda desta soma, contabilizando apenas 2,8 milhões. Juntos, não chegam a pesar 1% do total.
A mutualista incluiu estes benefícios fiscais como ativos no balanço de 2017, dado que os poderá deduzir assim que tiver lucros tributáveis. No fundo, estes 808 milhões de ativos por impostos diferidos representam o valor económico de uma potencial dedução futura.
***
É óbvio, como diz o PS ou o Ministério de Centeno, que não há injeção de dinheiro público na Associação Mutualista Montepio nem são necessários esclarecimentos especiais, como pretende o PSD (este quer saber se há retroatividade ou não; e aí poderá ter razões), o BE ou o CDS. A este respeito, João Galamba, vice-presidente da bancada parlamentar do PS, declarou:  
A Associação Mutualista Montepio fez um pedido de informação vinculativa à Autoridade Tributária e Aduaneira, que concluiu estarem verificados os pressupostos legais de uma lei que existe e que não foi alterada para esse efeito. Ou seja, não está na disponibilidade da Autoridade Tributária negar algo que a lei prevê.”.
E aos jornalistas Galamba disse estranhar a manifestação de surpresa do PSD, porque este e CDS-PP “legislaram sobre ativos por impostos diferidos – legislação essa que tinha impactos bastante ruinosos para o Estado e que motivou mais tarde, em 2016, a sua alteração”.
Porém, é verdade o que diz Bagão Félix. De facto, trata-se, não de uma ilegalidade, mas de “criatividade contabilística para tapar os olhos” (nisto aparece acompanhado pelo PCP) ou de “uma ficção que não tem a ver com a realidade”. E o antigo Ministro da Segurança Social e das Finanças tem razão ao defender que os partidos devem liderar a luta contra a opção de dar um crédito fiscal à mutualista Montepio e que o IRC não pode andar “ao sabor das circunstâncias”.
A AMMG “é uma IPSS e não uma empresa”. Agora sujeita-se a IRC só para criar um proveito deferido que transforma contas estruturalmente negativas em contas conjunturalmente positivas. O objetivo último da iniciativa é beneficiar do regime fiscal que empresas e bancos têm – dos créditos fiscais – e refletir esse efeito fiscal positivo nas contas de 2017, nomeadamente ao nível dos capitais próprios. Lembrando que a AMMG está sob a alçada do Ministro do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social e não do das Finanças, Bagão Félix acrescenta, que “é proprietária única de uma entidade sob a alçada do Banco de Portugal”. Ainda assim, o antigo ministro considera que, para emendar a mão, é necessário que “os partidos políticos entrem em ação”. Na sua opinião “não se trata de um problema de supervisão”, mas antes de o “Estado proteger os interesses dos mutualistas”.
Mais: Bagão Félix, cuja oposição à entrada da Santa Casa no Montepio é conhecida, não percebe como se pode “pressupor que a instituição vai ter capacidade de gerar lucros futuros para abater o IRC de quase 600 milhões de euros”.
Quanto aos resultados da AMMG, é extraordinário (no mau sentido) em 2018 não serem ainda conhecidas na íntegra as contas consolidadas de 2016. Depois, faz todo o sentido que a isenção fiscal de IRC de que tem beneficiado a associação seja anulada, porque, atendendo ao tipo de empresas detidas pelo grupo, a sua atividade é inequivocamente de natureza empresarial. O regime de exceção não faz, portanto, sentido e seria injusto face aos demais mantê-lo.  
Dado o prejuízo de 2015 e a situação patrimonial que daí transitou para 2016, a AMMG tinha de fazer alguma coisa. Idealmente, a solução teria sido um aumento de capital. Mas à falta de concretização deste plano, a associação avançou para outro plano. Ora, neste plano, o valor global dos ativos por impostos diferidos surpreende pela dimensão. Mas, para a análise ser completa, faltam as notas explicativas do relatório de contas de 2017, sem o que não se percebe quão eficaz nem quão perene será a inclusão daqueles ativos por impostos diferidos no balanço e, em particular, no capital da associação. E falta a análise do plano de negócios, para se aferir da razoabilidade dos lucros futuros; exercício que o revisor oficial de contas e o conselho fiscal terão solicitado à administração para acomodar normas que, nesta matéria, são cada vez mais conservadoras. Uma coisa parece certa: esta espécie de aumento de capital será apenas um passo intermédio. Serve para recompor o aspeto do balanço, mas não passa disso mesmo: de um rearranjo.
***
Já agora, é de perguntar para que serve este martelamento de contas, esta engenharia contabilística ou este rearranjo, se é difícil ele dar num resultado significativamente eficaz e plausível. Não me digam que se destina, como soam adrede rumores, a pretender um reajustamento remuneratório dos administradores da AMMG, prémios e complementos de reforma dos mesmos, como aliás Tomás Correia já terá informalmente solicitado a Carlos Tavares, o novo chairman, e transitoriamente CEO, do banco!
Se as mutualistas e as IPSS podem legalmente funcionar assim, haja quem as meta nos eixos. 

Por tudo não vejo bem Misericórdias a entrar no Montepio, sobretudo neste Montepio.
2018.03.18 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário