No final do ano passado, a maior parte dos partidos com
assento parlamentar (excluíram-se o CDS e o PAN) chegaram a acordo num projeto que resultou na
aprovação dum decreto da AR enviado a Belém sobre financiamento partidário e
regime de fiscalização das suas contas, mas que o Presidente da República
vetou, aduzindo falta de transparência no processo e insuficiência de discussão
pública. Porém, fez saber que o promulgaria (ficando assim com a forma de lei) se os deputados deixassem cair duas alterações
introduzidas: o fim do autofinanciamento (leia-se: angariação de fundos) e a reversão total do IVA.
Na mensagem que enviou aos deputados a explicar as razões do veto, Marcelo
reconhece a parte da lei no atinente à fiscalização das finanças dos partidos
pela Entidade das Contas e Financiamentos Políticos e pelo Tribunal
Constitucional (TC), referindo
que “existiu mínima justificação nos trabalhos parlamentares” e que é possível
“compreender o alcance das inovações introduzidas, de resto, objeto de
expressa, mesmo se sucinta menção em plenário”.
Contudo, o decreto aprovado pela Assembleia da República (AR) inclui “outras disposições avulsas,
duas das quais especialmente relevantes, por dizerem respeito ao modo de
financiamento e por representarem, no seu todo, uma mudança
significativa no regime em vigor: o fim de qualquer limite global ao
financiamento privado e a não redução do financiamento público, traduzida no
regime de isenção do IVA” – numa linha de abertura “à subida das receitas, e,
portanto, das despesas dos partidos”.
Nestes dois casos, não foi dada qualquer “palavra justificativa”
na exposição de motivos. “Não existiu uma palavra de justificação ou
defesa no debate parlamentar em plenário, o único, no caso vertente, passível
de acesso documental pelos portugueses”, como se lê na mensagem.
Marcelo frisa que “uma matéria fundamental no domínio do financiamento
partidário é alterada sem que seja possível conhecer, a partir do processo de
elaboração da lei, a razão de ser da escolha efetuada”. Pensa terem
existido várias razões:
“Desde a tendência para a redução drástica
das receitas e das despesas partidárias até à orientação para o seu aumento sem
limites, passando por soluções intermédias de ajustamentos periódicos do
limite, em função dos mais diversos fatores; desde o financiamento
exclusivamente privado até ao financiamento exclusivamente público, passando
por sistemas mistos, dominantemente privados ou públicos”.
Porém, qualquer que seja a razão, Marcelo sublinha: “o que não pode haver é decisão sem que seja apresentada qualquer
justificação para a opção do legislador”. Assim, o Presidente
entende que a AR deve ter a “oportunidade de ponderar de
novo a matéria”, frisando que, desta vez, os deputados devem “proceder
ao debate e à fundamentação, com conhecimento público, das soluções adotadas
sobre o modo de financiamento partidário”. Em alternativa, se os deputados quiserem “salvaguardar a entrada em vigor, sem
demora, das regras relativas à fiscalização” das contas partidárias, devem
optar pelo “expurgo” das duas normas polémicas.
Agora, a 1 de março, o acordo do fim de ano não se
manteve, basicamente dada a mudança interna operada no PSD.
***
Não houve fumo branco, esta quinta-feira, na AR após várias conversas entre
os deputados dos diversos partidos para tentarem chegar a um texto comum, apesar
de, ao início da tarde, Carlos César ter dito que havia um “esforço” de
“convergência” e Fernando Negrão ter admitido um acordo.
O PSD apresentou uma proposta de eliminação a alínea do diploma vetado que
isentava totalmente de IVA os partidos. Além disso, os socialdemocratas querem
deixar claro, na norma transitória, que as alterações não são retroativas –
dúvida que gerou polémica devido aos diferendos existentes entre os partidos e
os tribunais administrativos e fiscais.
Por seu turno, o PS insistiu em fazer com que essa isenção total continue,
pelo que entendeu apresentar apenas uma proposta de alteração. Segundo Carlos
César, essa proposta visava “tornar claro que não haverá reembolso do IVA no
caso de despesas de campanhas eleitorais dos partidos políticos, na
medida em que, nessa área, os partidos já são beneficiários de subvenções
públicas”, desfazendo assim a base da alegada dupla subsidiação. Nos restantes
casos, essa isenção continuaria a existir. E, quanto à norma transitória, os
socialistas terão recuado face ao que tinham dito, recusando agora fazer
alterações ao artigo em causa.
O Bloco de Esquerda terá participado nas conversas entre os demais partidos,
mas apenas no sentido de contactar as restantes bancadas parlamentares sobre o
seu apoio (ou não) à proposta bloquista. A ideia do
BE é eliminar a isenção total do IVA, voltando à redação original da lei (que ainda
vigora), mas acrescentando que o IVA com a
“construção, manutenção e conservação de imóveis destinados exclusivamente à
sua atividade” tem de ser reembolsado.
O PCP não apresentou nenhuma proposta de alteração porque, na ótica dos
comunistas, o diploma deveria ser devolvido ao Presidente da República,
obrigando à sua promulgação. Contudo, fonte oficial do partido disse
que o PCP tomaria posição hoje, dia 2, no debate sobre as propostas de
alteração apresentadas.
O CDS mantém a proposta de eliminar as duas alterações polémicas: a isenção
total do IVA e o fim do limite ao total de angariação de fundos. E pretendeu
ainda atacar outra alteração que, no entanto, não mereceu o voto contra do CDS
no plenário que aprovou este projeto de lei. Em causa está a retroatividade das
regras aprovadas a processos pendentes, tese que o PS rejeita.
Como o diploma foi vetado por Marcelo Rebelo de Sousa – e após um adiamento
pedido pelo PSD por causa da tomada de posse de Rui Rio –, o decreto da
Assembleia da República tinha de ser reapreciado, o que aconteceu hoje. O
Governo e os partidos tiveram oportunidade de voltar a discutir o tema.
Contudo, havendo propostas de alteração ao decreto vetado, inicia-se um novo processo legislativo pelo que o
projeto deveria regressar à 1.ª Comissão (a Comissão
de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias), para ser apreciado na especialidade.
***
Como se viu, após o veto presidencial, as reações dos partidos foram
inconclusivas sobre qual seria o destino da lei. O PCP foi o único a
criticar a decisão de Marcelo (que foi elogiado por Ferro Rodrigues) e a querer devolver o decreto a Belém. Contudo, como
se trata de uma lei orgânica, precisará da aprovação de dois terços dos
deputados presentes na sessão plenária, desde que superior à maioria absoluta
dos deputados em efetividade de funções. O PSD adiou a discussão para um
momento posterior às eleições internas, que originaram alterações na direção da
sua bancada parlamentar. O PS disse estar aberto para discutir o decreto
apenas no Parlamento, mas voltando a defender as alterações. O BE
mostrou-se disponível para melhorar o texto da lei.
E, no dia 1 de março, os partidos com assento parlamentar decidiram em
conferência de líderes quando será discutido o diploma (hoje, 2 de
março). Após o veto, a AR tinha de
esperar, nos termos regimentais, um período de 15 dias de reflexão para
apreciar a matéria em plenário.
***
Contudo, apesar de não se ter
reiterado o acordo do ano passado, o novo decreto parlamentar passou com uma
alteração: deixou de estar prevista a
isenção total do IVA. Afinal, PSD, PS, BE e PCP voltaram a unir-se. O
texto, porque se mantêm as restantes normas, não teve de baixar à 1.ª Comissão.
Por conseguinte, está com guia de marcha para o palácio presidencial.
O novo
diploma mantém a norma transitória e o fim do limite da angariação de fundos
pelos partidos. No entanto, é eliminada a alínea que previa a isenção total do
IVA para os partidos, um tema que criou divisões na opinião pública e entre o
PSD, PS e BE. Ou seja, o novo decreto é totalmente
igual aquele que foi enviado para Belém, exceto na questão do IVA.
Apesar
de quererem a isenção total do IVA, tanto o PS como o PCP votaram a favor do
novo decreto com as alterações introduzidas, nomeadamente a saída dessa alínea.
Por
outro lado, o CDS e o PAN, que propuseram essa retirada da isenção total do
IVA, que acabou por ser aprovada, decidiram votar contra o novo decreto com as
alterações introduzidas, por serem contra parte do diploma. Tanto Helena Roseta
como Paulo Trigo Pereira se abstiveram. Além disso, houve deputados de diversas
bancadas a anunciar declarações de voto.
Ainda
assim, o decreto avança e vai para Belém novamente. Como é um novo decreto, o Presidente da República não é obrigado a
promulgá-lo. Só seria obrigado se o decreto vetado fosse
devolvido na íntegra ao Chefe de Estado. Resta saber se Marcelo fica satisfeito
com as alterações introduzidas, tendo em conta os argumentos do veto de
janeiro, ou se irá novamente vetar o diploma diretamente ou pela sujeição à
apreciação prévia do TC.
***
José
Silvano, do PSD, recordando do texto do veto presidencial que o grupo de
trabalho fora acusado de preparar em segredo o diploma, recusou perentoriamente
tal acusação, frisando que foi um longo trabalho em estreita colaboração com o
Tribunal Constitucional e aceitando que houve “reserva”, mas não segredo”.
Silvano disse que o debate posterior permitiu o debate e a clarificação perante
os cidadãos:
“Este diploma tem mais de uma
dezena de alterações e apenas duas alterações tiveram contestação pública e
reparos do Presidente da República”.
Defendeu que o PSD só alterou a alínea do IVA para clarificar a lei,
recusando a ideia de que o fizera para dar isenção total aos partidos, pois, “mesmo
na questão das campanhas eleitorais não estava nem nunca esteve na nossa
intenção serem envolvidas”, aduzindo que a lei já diz que ficam fora da isenção
do IVA. Referiu que O PSD vai clarificar a norma transitória para que não tenha
retroatividade. E, quanto ao limite da angariação de fundos, Silvano diz que o
limite era “baixo” e criava “constrangimentos”, lembrando que o próprio TC
pedira atenção ao tema.
José Luís Ferreira, do PEV, atacou também a discussão feita contra esta
lei. O deputado ecologista defendeu o modo como o processo ocorreu, nomeadamente
a criação dum grupo de trabalho. Aduziu que “a lei em vigor apresenta problemas
em relação à nossa Constituição” e, defendeu a alteração polémica do fim do
limite da angariação de fundos para os partidos. “Relativamente ao IVA”, disse
que se pretendia evitar que fosse a AT a decidir o que se inclui na isenção”,
criticando a arbitrariedade do fisco.
António Carlos Monteiro, do CDS, reiterou a crítica a PSD, PS, BE e PCP por
terem apresentado um “projeto consensual” no final do ano passado com as
alterações no IVA e na angariação de fundos. E apontou que o debate que
aproveitou as alterações do TC para ir mais além, “não está a ser feito nem foi
feito com a participação da sociedade”.
Mais, segundo o deputado, O CDS não pode registar neste debate que o BE vem
agora propor a isenção do IVA para os edifícios dos partidos, pois não houve
discussão sobre esse tema.
Pedro Delgado Alves, do PS, pediu um “debate sério assente nos factos e na
lei” e não com a simplificação que o CDS quer sobre um tema complexo, acusando
este partido de querer o fim do financiamento público dos partidos. Por outro
lado, defendeu a “forma legítima” em que este debate tem sido feito,
acrescentando que o PS é “sensível” face aos argumentos do Presidente pedindo
mais transparência. “Foi isso que temos vindo a fazer”, garante o deputado
socialista.
António Filipe, do PCP, disse que “a lei do financiamento dos
partidos em vigor é uma má lei” e que “teve o voto contra do PCP”. Depois,
disse que essa lei não permite aos partidos funcionarem de forma independente.
Mais. O PCP critica a lei por exigir aos partidos o que não exige a nenhuma
outra entidade sem fins lucrativos, pois não faz sentido uma limitação na
angariação de fundos. E, quanto ao IVA, António Filipe defende que a alteração
introduzida não levará a distorções de mercado, o que está prevenido na lei,
mas ao combate à “discricionariedade” da AT. E, como o objetivo não era
“alargar” a isenção, mas prevenir a “tributação ilegal” do IVA aos partidos
pelo fisco, “o PCP reafirma a sua disponibilidade para confirmar o diploma
vetado, aceitando apenas as propostas que visam clarificar as alterações já
aprovadas”.
André Silva, do PAN, interveio dizendo que o fim do limite da angariação de
fundos “atenta” contra as boas práticas de transparência e atacando a norma
transitória pela retroatividade que permite. Assim, as propostas do PAN são para
revogar as três alterações polémicas: IVA, angariação de fundos e a norma
transitória.
Pedro Filipe Soares, do BE, disse que o “debate exige mais seriedade”,
criticando o discurso do PAN. O deputado bloquista recorda que o TC disse ao
Parlamento que ou alterava a lei ou esta seria declarada inconstitucional. Não poderia, pois, criar-se um buraco negro da fiscalização do
financiamento dos partidos ao contrário do que algumas bancadas
pretendiam”.
O líder do BE atacou o PAN e o CDS, referindo que “devíamos ter cautela” no agendamento
da matéria, mas recusou a ideia de que houve falta de transparência. E defendeu
o modelo de financiamento misto, acusando, no entanto, o facto de o
financiamento, pela dependência da representação eleitoral”, fazer que os
partidos mais pequenos, sem a parte privada, poderem ser impedidos de evoluir.
***
A ver vamos se dois dias de debate serão suficientes para contentar
Marcelo, elogiado por Ferro Rodrigues, no âmbito da transparência e escrutínio
público, e se a meia resposta da AR ao teor recomendado evitará novo veto
presidencial. Porque é que o reino da hipocrisia não trata os partidos como
associações sem fins lucrativos e de utilidade pública?
É verdade que os partidos, se dependerem totalmente do financiamento público,
correm o risco de não sobreviverem ou de ficarem dependentes das opções de quem
gere as contas públicas. Por outro lado, a subvenção pública é um incentivo à
subsistência e ao crescimento, devendo ser atribuído um mínimo de verba a todos
os que apresentem candidatura séria aos órgãos do poder, complementável pelo que
há a distribuir por conta dos resultados eleitorais. E, se a subsidiação por
empresas pode gerar a gravitação em torno de interesses particulares, nada
obstará a que a angariação de fundos não seja limitada, desde que a fiscalização
das contas funcione.
2018.03.02 –
Louro de Carvalho
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