Sócrates, a convite do núcleo de estudantes da Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra, deu conferência sobre o projeto europeu depois da
crise. E, como era de esperar, autoelogiou-se a si e aos seus governos e culpou
a austeridade preconizada por Passos Coelho de ter “escavado” ainda mais no
buraco da crise, como dizia no período fugaz em que assumiu o papel de comentador
político na RTP 1 nos serões de domingo à noite, enquanto Marcelo pregava na
TVI. E disse que
Portugal é hoje um país propositadamente atrasado.
Porém,
contra o que alguém poderia pensar não falou da justiça nem da situação
política atual. Aí não defraudou a confiança dos organizadores, podendo, antes,
ter ficado aquém de algumas expectativas alimentadas por alguns no atinente ao conteúdo
da conferência. Porém, o que lhe foi solicitado terá sido a sua visão da pré-crise
e da forma como obviar à crise – o que se presta à narrativa política do modo
como encarou a crise e à da sua opinião sobre o mérito da sua ação política e
provavelmente o demérito com que avaliou a ação política de outrem.
Ao invés do
que é usual no feroz animal político, ora zangado por tudo e com todos à boa
maneira de Alexandre Herculano nos tempos finais na sua quinta de Vale de Lobos,
chegou sem dar nas vistas, sozinho, e quase 20 minutos antes da hora. Acompanhado
do presidente do núcleo de estudantes da Faculdade de Economia, Simão de
Carvalho, entrou discretamente e a tempo de tomar um café. A sala do auditório
onde decorreu esta conferência integrada no ciclo de conferências “Economia hoje, futuro amanhã” ainda
estava a meio gás às 14,15 horas, apesar de esta ser a hora para que estava
agendada a conferência de Sócrates. O antigo Primeiro-Ministro só apareceria
pouco depois das 14,30 horas e a primeira coisa que disse aos alunos foi gabar-lhes a “coragem” por o terem
convidado, aliás como o fizera no município de Santarém, quando o então Presidente
da Câmara Municipal Francisco Moita Flores, eleito pelo PSD, o agraciou na
qualidade de Primeiro-Ministro com a medalha do município.
Seguiram-se
quase duas horas de intervenção a culpar a austeridade implementada pelo
anterior Governo por ter “escavado” ainda mais no buraco da crise, enfatizando
que “a austeridade como resposta à crise falhou em toda a linha” e evocando as
diferenças face à forma como os EUA saíram da crise de 2008.
Do Brexit à
Catalunha, de Macron a Donald Trump, passando pelo Facebook e as restrições à
liberdade em nome da segurança, pelo “desencantamento europeu” e terminando em
elogios “imodestos” ao seu governo, o último governo com um “projeto de modernização”, a palestra teve
de tudo um pouco. Apenas não teve uma palavra de justiça, processos judiciais,
Operação Marquês, crimes ou acusações de corrupção. Nem as perguntas dos
estudantes, onde, segundo Simão de Carvalho, não havia qualquer restrição
temática, levantaram nem induziram nenhuma dessas questões.
***
Depois de
Simão de Carvalho ter reforçado que a Faculdade de Economia da Universidade de
Coimbra é “inequivocamente um local de reflexão social sem doutrina política
vinculada”, José Sócrates elogiou: “Gabo-vos a coragem e o desassombro
de não cederem ao politicamente correto e fazerem o que acham que melhor contribui
para a perceção do projeto europeu”.
Prova disso
era a escolha de Sócrates como orador deste ciclo de conferências, que arrancou
em fevereiro com Passos Coelho e por onde passaram nomes como Marques Mendes,
Jorge Coelho ou Teodora Cardoso. Simão esclareceu: “Primamos pelos pilares democráticos e pelas opiniões díspares”. E, lembrando
que para as 17 horas estava marcada naquela mesma universidade uma manifestação
de estudantes contra o aumento das propinas e o regime fundacional,
ironizou:
“Só
esperamos que seja dado à manifestação dos estudantes pelo futuro do ensino
superior o mesmo eco que foi dado a esta conferência”.
***
Entre o “buraco da austeridade” e a falta de modernização
Depois, Sócrates olhou de frente para as centenas de alunos (e alguns professores) que lotaram o auditório da
Faculdade e desfiou toda a sua teoria sobre “O projeto Europeu depois da Crise Económica”. Esta tarde em Coimbra,
o orador estava como peixe na água: uma plateia interessada em o ouvir, uma
organização a criticar as opções da comunicação social – por ter dado mais
destaque à presença do ex-Primeiro-Ministro do que à manifestação antipropinas
que decorria no mesmo dia, naquela cidade – e um conjunto de certezas para
defender.
O desafio era
falar do tempo que se seguiu a 2008, quando rebentou a crise económica. Mas
Sócrates viu-se obrigado a recuar até Paris, remetendo a plateia para o ano de
1938, para explicar a teoria da crise, que afinal só existiu em consequência do
seu anúncio. E disse:
“Nesse
ano reuniram-se aqueles que eram considerados os espíritos mais vibrantes do
liberalismo europeu (a propósito do lançamento do livro de Walter Lippmann, o
primeiro a introduzir o conceito de Guerra Fria), e as opiniões dividiam-se em
duas correntes, na diferença sobre a responsabilidade do Estado. Para uns,
havia Estado a mais (que intervinha e protegia os trabalhadores, e apontavam
essa como a causa da crise que se vivia); para outros, a falta de intervenção
do Estado é que conduzira àquela situação, um ano antes da segunda guerra
mundial.”.
Também em 2008 ficámos perante essa discussão. E explicitou:
“Os que achavam – como é o meu caso – que
grande parte da responsabilidade se devia à ausência do Estado, à sua
deficiente presença nos mercados financeiros saíram derrotados pela fação que
defendia a responsabilidade do excesso de protecionismo estatal na crise económica.
A diferença de 1938 para 2008 foi uma: a corrente que saiu vencedora foi a que
no pós-guerra fundou o projeto europeu, com base nos compromissos entre países
e nas políticas sociais. Ora, em 2008, foi a outra que saiu vencedora.”.
Sócrates pensa que a corrente dos anos 30 nunca se deu por
vencida. A provar-se a sua teoria, estaremos perante uma atitude de revanche. “Aqueles
que perderam fizeram um ajuste de contas em 2008”. E, por isso mesmo, defende
que a receita encontrada para a crise foi “puramente ideológica, sem qualquer
base científica, técnica ou económica”.
O tema era o
projeto europeu depois da crise económica e foi nisso que Sócrates se centrou.
A ideia foi um ajuste de contas com a história, apesar de ainda não haver
“distância suficiente”. “Esta história está mal contada”, disse, afirmando que,
quando a crise de 2008 rebentou, a Europa iniciou a narrativa de que “a origem
estava nos défices e não nos mercados”, pelo que “a crise era da
responsabilidade dos Estados”.
Como antídoto,
“criou-se a ideia de que tudo se resolveria com menos proteção social, com
redução da despesa, com essas tretas todas, mas deu no que deu”, disse,
apontando o dedo “àqueles que aplicaram uma receita desastrosa de acordo com uma
ideologia dominante na Europa e que agora vêm dizer que as coisas estão
melhores porque essa ideologia da austeridade acontece”. E reiterou que “essa história
está mal contada”.
A imagem do
escavamento põe Passos Coelho e António Costa como protagonistas. E disse:
“É como se alguém estivesse num buraco e,
para sair do buraco, escavava mais, afundando-se ainda mais. O que aconteceu
foi que este Governo deixou de escavar, abandonou a austeridade, e só aí é que
se começou a verificar recuperação. […] A recuperação económica
portuguesa não está a acontecer porque houve austeridade, mas sim porque se
abandonou a austeridade.“,
Defendeu,
depois, que só, quando o Banco Central Europeu decidiu implementar uma política
de harmonização financeira quantitativa (quantitative easing) é que a crise começou a ser superada – passo dado
muito antes pela reserva federal dos EUA e que fez com que a resposta dos EUA à
crise tivesse sido mais rápida e mais eficaz do que a resposta europeia.
E sustentou
que foi a crise que causou o défice e não o contrário. Foi o excesso de
protecionismo social e não o inverso. “Austeridade não foi capaz de resolver o
problema do défice nem da dívida”. Para o orador, o segredo é claro: Portugal
não precisa de austeridade, mas de projetos de desenvolvimento. E foi aí que
não se poupou em autoelogios, reivindicando que a última vez em que se ouviu
falar num projeto de modernização para o país foi no governo por si liderado, “quando apostámos na construção
de escolas públicas e barragens, em mais investimento na ciência, nas
tecnologias de informação, na modernização das infraestruturas”. O caso TGV é exemplo disso. Sócrates
lutou pela construção duma linha de alta velocidade, que caiu por terra com o
governo de Passos Coelho. Um erro, segundo Sócrates, que defendeu:
“Pôr a rede de alta velocidade a parar em
Badajoz é uma decisão política que nos condena ao atraso, e é das ideias mais
reacionárias que tenho ouvido no nosso país”.
E explicou o
uso que deu à palavra reacionário:
“É uma ideia de resignação, não tem ambição,
e nós não devemos aceitar tudo isto sem querer mais, devemos ter uma visão para
a modernização porque só assim é que se consegue crescimento económico”.
Foi uma longa
palestra com o orador a defender as medidas “contracíclicas” da economia e a
anotar que a crise e o modo como a Europa lhe respondeu, só começando a sair dela
em 2015, deixou “mossa”. E, confessando-se um profundo europeísta, mas obrigado
a registar que se instalou o germe da desconfiança entre Estados europeus,
afirmou que, agora, a ideia que fica do Velho Continente é de que, ao primeiro
obstáculo, “é cada um por si”.
O ex-governante acredita que a Europa foi duplamente vítima –
da crise e da resposta à crise. E a experiência portuguesa demonstra bem como
essa receita falhou em toda a linha, segundo ele, que aponta igual falhanço ao
Brexit e à guerra ao terrorismo desencadeada a partir dos EUA, que desencadearia
um dos maiores êxodos de deslocados da História, fazendo despertar a ideia “de
que todos nós devemos abdicar da nossa liberdade individual para termos mais
segurança”. Ora, “Não teremos nem uma coisa nem outra”, disse Sócrates,
socialista e europeísta confesso, a assistir a essa “lenta evolução que
transforma os Estados democráticos em Estados policiais” ou que faz crescer a extrema-direita
por toda a parte.
“Cá chegará,
também”, acredita o orador, que, mesmo desgostoso com o projeto europeu que vai
ruindo, em resultado da desconfiança entre os países, continua esperançoso a
dizer:
“Sempre fui (como todos os políticos são) um
otimista. E o que hoje vos disse aqui serve para vos alertar para os perigos e
vos incentivar a contestar esse modelo.”.
Foi isto que foi
dizendo aos estudantes, que no final tinham muitas perguntas para lhe fazer sobre
o que disse e sobre o que fez.
***
O que os estudantes esperavam de Sócrates
A sala do auditório da Faculdade de Economia encheu
plenamente, com jovens estudantes a sentarem-se ao longo das escadas e até a
ocupar os corredores de passagem do auditório para o ouvirem, por não haver
lugares sentados para todos. Isto, apesar de o convite ter sido fortemente
contestado nas redes sociais. E não foram só estudantes
de Economia a assistir à palestra. Houve até mais estudantes de Gestão e de
Relações Internacionais do que apenas de Economia. Alguns nem se tinham
inscrito para assistir à conferência, mas como tiveram uma “aula que foi
cancelada”, resolveram ir.
De entre os
meramente curiosos, houve quem tenha vindo para se “rir”, por achava “irónico”
o núcleo de estudantes ter convidado o ex-Primeiro-Ministro que está acusado de
31 crimes, de corrupção passiva a branqueamento de capitais passando por fraude
fiscal qualificada. E houve quem concedesse: “Ainda assim foi Primeiro-Ministro, terá sempre alguma coisa a dizer e
contributos importantes para o debate”. E um outro disse: “Não foi ainda julgado, por isso não achei
mal esta conferência”.
Alguém dizia
gostar de perguntar ao ex-chefe do Governo, no âmbito desta conferência sobre o
projeto europeu depois da crise, “de que maneira as políticas dele
influenciaram ou não o início da crise, porque dizem que a crise foi
internacional, mas o impacto que teve nos vários países foi diferente, e isso
dependeu das políticas que foram implementadas em cada um”, ou seja, “o que
poderia ter sido feito que [Sócrates] não fez”.
Alguns alunos
estavam mais curiosos em ver a forma como ele se comportaria e a postura dos estudantes
perante a presença do ex-governante, avançando que “Esta é uma universidade
muito crítica, por isso é importante ouvir o que estas personalidades de peso
têm para dizer”, pois “é preciso ouvir para criticar”.
À entrada do
auditório, questionado pelos jornalistas sobre se a sua presença na conferência
era uma espécie de regresso à política ou, até, o início da preparação duma
candidatura presidencial, Sócrates foi parco nas palavras, mas irónico no tom, rejeitando
comentar o que quer que fosse:
“Não me parece que isto seja uma matéria de política, é mais uma
matéria de bruxaria. Deixemos
essa matéria entregue aos videntes, que fazem disso profissão.”.
À saída, repetiu-se
o número: Sócrates não comentou a atuação do Governo, não falou no nome de Costa,
nem disse se esta conferência era o início de um ciclo de participação ativa. Saiu
da Faculdade de Economia como entrara: à boleia, num carro que o deixou à porta
e ali o apanhou.
Ainda fora
convidado pelos estudantes para os acompanhar na manifestação, mas declinou o
convite, dizendo “Boa sorte”, ainda
sentado à mesa do auditório, depois de um aluno lhe fazer uma “pequena
provocação” sobre a reforma do ensino superior implementada no seu governo,
alterando o modo de representação dos professores e estudantes nas direções das
universidades. E perguntou:
“Mas a vossa manifestação não é sobre isso
pois não? É sobre menos propinas e mais bolsas de estudo, não é?”.
À voz que na
plateia acrescentou “E pela
representatividade!”, retorquiu: “Ai
é? Lamento, então, nisso discordamos, mas acho que podemos viver com essa
divergência. Boa sorte, então”. Houve risos, mas a divergência ficou por
ali. Não houve perguntas incómodas e Sócrates finou a palestra debaixo de aplausos.
A manifestação prosseguiu fora de portas e juntou todos os núcleos de
estudantes da Universidade. Mas o orador seguiu a sua vida.
***
Apesar de caído em desgraça na opinião pública, mantém-se em
boa forma política, sem débitos à capacidade de comunicação e a manter convicta
e, à sua maneira, sustentável a narrativa política que sempre defendeu sobre a
governação e sobre a crise (sua origem, face e efeitos). Se calhar, é pena que não surjam outros defensores
convictos desta narrativa, ainda credibilizados.
2018,03.21 –
Louro de Carvalho
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