sábado, 31 de março de 2018

A proximidade de Deus… a proximidade apostólica


Na homilia da Missa Crismal em Quinta-feira Santa, o Papa Francisco dirigiu-se expressamente aos “sacerdotes da diocese de Roma e doutras dioceses do mundo” e quis abordar o tema da proximidade apostólica à luz da arquetípica proximidade de Deus, considerando o privilégio com que o povo de Israel foi agraciado em razão de ter o seu Deus tão próximo de si a ponto de o Senhor atender o clamor do povo sempre que é invocado (cf Nm 4,7).
Depois, comentando o texto de Isaías, acentuou a presença do Servo de Deus – já ungido com o óleo da alegria e “enviado a anunciar a boa nova aos pobres” – no meio do povo, relevando a sua proximidade junto dos pobres, doentes, presos… a ungi-los com o óleo da alegria, sentindo-se impelido e acompanhado “ao longo do caminho” pelo Espírito que “está sobre Ele”.
Esse servo é a figura profética do Messias, Jesus, o Sacerdote eterno, que vem a ser o protótipo dos ministros do nosso Deus. Com efeito, a profecia explicita:
Vós sereis chamados ‘Sacerdotes do Senhor’ e nomeados ‘Ministros do nosso Deus’. [… ] Dar-lhes-ei fielmente a sua recompensa e farei com eles uma aliança eterna. A sua descendência será célebre entre as nações e a sua posteridade entre os povos. Todos os que os virem hão de reco­­nhecê-los como a linhagem abençoada pelo Senhor.” (Is 61,6a.8b-9).
Para lá do exemplo de proximidade de Deus ao seu povo, o Papa salienta a proximidade de Deus em relação a uma pessoa, um condutor do Povo. Poderíamos lembrar Abraão, Isaac e Jacob ou Moisés e Josué. Mas o Salmo 89 [88] – cuja 1.ª parte (vv 1-19) celebra o próprio Deus como rei do universo e de Israel, em particular, e a 2.ª celebra a aliança de Deus com a dinastia de David (2Sm7), prometendo que a manteria firme para sempre – mostra-nos como a companhia de Deus que “levou pela mão o rei David desde a sua juventude e lhe emprestou o seu braço até agora que é idoso”. Esta proximidade de Deus mantida ao longo do tempo, apesar dos pecados, toma, segundo o Bispo de Roma, “o nome de fidelidade”, ou seja, “a proximidade mantida ao longo do tempo chama-se fidelidade”. Obviamente que estamos a falar da fidelidade de Deus que permanece de geração em geração, ou seja, é eterna (vd Sl 117 [116],2). É por isso que temos de cantar eternamente a bondade e as misericórdias do Senhor (Sl 89,2).
Também Francisco nos adverte de que o Apocalipse nos aproxima do Senhor em pessoa que vem sempre (Erchomenos), “até no-Lo fazer ver, havendo aqui “a alusão ao facto de que “hão de vê-Lo até mesmo os que O trespassaram” (Jo 19,37). Esta alusão “faz-nos sentir que as chagas do Senhor ressuscitado permanecem visíveis, que Ele vem sempre ao nosso encontro, se quisermos “fazer-nos próximo” da carne de todos os que sofrem, especialmente as crianças. É a nossa função imitativa e replicativa da proximidade do Senhor.
Com efeito, participando da unção de Cristo, os discípulos constituem um povo sacerdotal, um povo messiânico, portador de todas as esperanças da humanidade. Habitando no coração dos fiéis como num templo (Lumen Gentium, 9), o Espírito Santo introduz-nos na plenitude da verdade
(Jo 16,13), distribui as graças e os ofícios e realiza a maravilhosa comunhão dos fiéis (Unitatis Redintegratio, 2.
Assim, sabemos que “Jesus Cristo, a Testemunha fiel, o Primeiro vencedor da morte e o Soberano dos reis da terra” é Aquele “que nos ama e nos purificou dos nossos pecados com o seu sangue, e fez de nós um reino de sacerdotes para Deus e seu Pai” (Ap 1,5-6).
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Porém, o Santo Padre fixa-se de modo especial na imagem central do Evangelho do dia (Lc 4,16-21), em que se contempla o Senhor com os olhos dos compatriotas, que estavam “fixos n’Ele” (Lc 4,20). Na sinagoga de Nazaré, Jesus levantou-Se para ler. Entregaram-Lhe o rolo do profeta Isaías. E leu em voz alta a passagem do enviado de Deus: “O Espírito do Senhor está sobre Mim, (…) Me ungiu e enviou...” (Is 61,1). E concluiu pela proclamação da proximidade de Deus com palavras tão provocadoras: “Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir”. Obviamente, os compatriotas não gostaram, porque Ele não leu a passagem toda, pois omitiu a parte que juntamente com a publicação do ano da Graça anunciava a vingança do nosso Deus e afirmou-se Ele o cumpridor da profecia, o Messias esperado.
Como diz o Papa, Jesus encontra a passagem e lê com maior competência que a dos escribas. E discorre conjeturando:
Poderia ter sido um escriba ou um doutor da lei, mas quis ser um ‘evangelizador’, um pregador de estrada, o ‘Mensageiro de boas novas para o seu povo, o pregador cujos pés são formosos, como diz Isaías (cf Is 52,7). O pregador faz-se vizinho.”.
E Francisco tira a seguinte ilação:
Esta é a grande opção de Deus: o Senhor escolheu ser Alguém que está próximo do seu povo. Trinta anos de vida oculta! Só depois começará a pregar. É a pedagogia da encarnação, da inculturação; não só nas culturas distantes, mas também na própria paróquia, na nova cultura dos jovens...”.
A adianta que a proximidade, mais do que uma virtude particular, é “atitude que envolve a pessoa inteira, o seu modo de estabelecer laços, de estar contemporaneamente em si mesma e atenta ao outro”. Com efeito, as pessoas, ao afirmarem, dum sacerdote, que está perto da gente, salientam duas coisas: “está sempre” (ao invés do que nunca está, de quem dizem: “está muito ocupado!”); e “fala com todos” – grandes, pequenos, pobres, com os que não creem. São “padres próximos, que estão, que falam com todos…, padres de estrada”. E, este respeito, dá o exemplo de Filipe:
E um que aprendeu bem, de Jesus, a ser pregador de estrada foi Filipe. Narram os Atos dos Apóstolos que ia de terra em terra, anunciando a Boa Nova da Palavra, pregando em todas as cidades e que estas ficavam inundadas de alegria. Filipe era um daqueles que o Espírito podia ‘arrebatar’ em qualquer momento e fazê-lo sair para evangelizar, deslocando-se dum lugar para outro, alguém capaz de batizar pessoas de boa-fé, como o ministro da rainha da Etiópia, e fazê-lo ali mesmo, na estrada (cf At 8,5-8.26-40).”.
Considerando que a proximidade “é a chave da misericórdia, pois não seria misericórdia se não fizesse sempre tudo, como boa samaritana, para eliminar as distâncias”, o Bispo de Roma, assume que é ela “a chave do evangelizador, porque é uma atitude-chave no Evangelho” (o Senhor usa-a para descrever o Reino). Temos, por isso, de assumir o facto de que a proximidade é também a chave da verdade, não só da misericórdia. De facto, “a verdade não é só a definição que permite nomear situações e coisas mantendo-as à distância com conceitos e raciocínios lógicos”. A verdade “é também fidelidade” (emeth), que permite “designar as pessoas pelo próprio nome, como o Senhor as designa, antes de as classificar ou definir a sua situação”.
E o Papa alerta para a necessidade de estarmos atentos para não cairmos na tentação de fazer ídolos com algumas verdades abstratas. E justifica:
São ídolos cómodos, ao alcance da mão, que dão um certo prestígio e poder e são difíceis de reconhecer. Porque a ‘verdade-ídolo’ mimetiza-se, usa as palavras evangélicas como um vestido, mas não deixa que lhe toquem o coração. E, pior ainda, afasta as pessoas simples da proximidade sanadora da Palavra e dos Sacramentos de Jesus.”.
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Mas há o exemplo eminente de proximidade que galvaniza a devoção do Papa: Maria, a Mãe dos sacerdotes, que podemos invocar como “Nossa Senhora da Proximidade”, pois, “como uma verdadeira mãe, caminha connosco, luta connosco e aproxima-nos incessantemente do amor de Deus” (EG, 286) e “infunde sem cessar a proximidade do amor de Deus, de tal modo que ninguém se sinta excluído”. Está próxima “não só por partir com ‘prontidão’ (Ib, 288) para servir, que é uma forma de proximidade, mas também pela sua maneira de dizer as coisas”. Veja-se o caso de Caná: “a tempestividade e o tom com que Ela diz aos serventes ‘fazei o que Ele vos disser’ (Jo 2,5) farão com que estas palavras se tornem o modelo materno de toda a linguagem eclesial”. Porem, o Pontífice avisa:
Para as dizer [aquelas palavras] como Ela devemos, além de pedir a graça, saber estar onde ‘se cozinham’ as coisas importantes, aquelas que contam para cada coração, cada família, cada cultura. Só com esta proximidade – podemos dizer de cozinha – será possível discernir qual é o vinho que falta e qual é o de melhor qualidade que o Senhor quer dar.”.
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A luz do que expôs aos padres, o Papa propôs a meditação sobre três âmbitos de proximidade: o do acompanhamento espiritual, o da Confissão e o da pregação.
A proximidade no diálogo espiritual deve meditar-se tendo como pano de fundo o encontro do Senhor com a Samaritana (cf Jo 4,5-41). Ele começa por lhe ensinar a reconhecer como adorar, em Espírito e verdade; depois, delicadamente, ajuda-a a nomear o seu pecado sem a ofender; e, por fim, deixa-Se contagiar pelo seu espírito missionário e vai com ela evangelizar a povoação. Modelo de diálogo espiritual é este, o de quem “sabe trazer à luz o pecado” do interlocutor “sem ensombrar a sua oração de adoração nem pôr obstáculos à sua vocação missionária”.
A proximidade na Confissão é de meditar contemplando a passagem da adúltera (cf Jo 8,3-11), onde se vê como a proximidade é decisiva, pois as verdades de Jesus sempre aproximam e se dizem face a face a ponto de poder “fixar o outro nos olhos – como o Senhor, quando Se levanta depois de ter estado de joelhos junto da adúltera que queriam lapidar e lhe diz “também Eu não te condeno” (Jo 8,11). E pode-se dizer “doravante não tornes a pecar”, não em tom pertencente à esfera jurídica da verdade-definição, mas como frase dita na área da verdade-fiel que permita ao pecador olhar em frente e não para trás. O tom justo deste “não tornes a pecar” é o do confessor “que o diz disposto a repeti-lo setenta vezes sete” – pois acredita que o juiz único do pecado ou do pecador é Deus e só Deus – quando muito o confessor será juiz das disposições do penitente (Assim nos ensinava Mons. José Moais e Costa naqueles longínquos anos).
O âmbito da pregação leva a pensar nas pessoas que estão afastadas. E a primeira pregação de Pedro no contexto do Pentecostes (At 2,14-36.38-40) constitui um bom modelo. Pedro anuncia que a palavra é “para todos os que estão longe” (At 2,39) e prega de tal modo que o querigma “os emocionou até ao fundo dos corações” e os fez perguntar: ‘Que havemos de fazer’?” (At 2,37). E esta é a pergunta que devemos provocar e a que devemos responder em jeito materno e em dinamismo eclesial. E Francisco insiste na qualidade da homilia:
É a pedra de toque para avaliar a proximidade e a capacidade de encontro de um Pastor com o seu povo (EG. 135). Na homilia, vê-se quão próximo temos estado de Deus na oração e quão próximo estamos do nosso povo na sua vida diária.”.
A boa notícia concretiza-se com o alimento e ajuda mútuos da proximidade com Deus e da proximidade com o povo. Assim, se o Pastor se sente longe de Deus, aproxime-se do povo, que o curará das ideologias que lhe entorpeceram o fervor. Na verdade, as pessoas simples ensinam a ver Jesus doutro modo: encantam-se com o fascínio de Jesus, com a autoridade moral do seu bom exemplo, com a utilidade para a vida dos seus ensinamentos. E, se o Pastor se sente longe das pessoas, deve aproximar-se do Senhor e da sua Palavra, pois, no Evangelho, Jesus ensina o seu modo de ver as pessoas e sobretudo “quanto vale a seus olhos cada um daqueles por quem derramou o seu sangue na cruz”. Na verdade, com a proximidade com Deus, a Palavra faz-se carne e o Pastor torna-se próximo de toda a carne. Na proximidade com o povo de Deus, a sua carne dolorosa torna-se palavra no coração do Pastor, que terá de que falar com Deus, tornando-se um intercessor.
Assim, segundo o Papa, o sacerdote vizinho caminha no meio do povo com a proximidade e ternura de bom pastor e, em seu jeito pastoral, ora vai à frente, ora no meio, ora atrás. E as pessoas veem-no com apreço e sentem por ele aquele algo de especial que só sentem na presença de Jesus. Por isso, a proximidade não é algo adicional, mas nela “se decide se queremos tornar Jesus presente na vida da humanidade” ou se “O deixamos no plano das ideias, encerrado em belas letras, quando muito encarnado nalgum bom hábito que pouco a pouco se torna rotina”.
Por tudo isto, o Santo Padre exorta os sacerdotes de todo o mundo a pedirem a Nossa Senhora da Proximidade a aproximação entre eles próprios e que, na hora de dizerem ao povo “fazei o que Ele vos disser”, os unifique no tom, para que, na diversidade de opiniões, se torne presente a proximidade materna daquela que com o seu ‘sim’ os aproximou de Jesus para sempre. Com efeito, a sua proximidade, tal como sobressaiu em todos os passos da vida de Jesus menino, também foi relevante no percurso da via crucis e no topo do Calvário, onde não só continuou mãe do Mestre como ganhou o estatuto de mãe dos discípulos. E com este mister se associou à reunião orante dos apóstolos no cenáculo à espera do Pentecostes.
Na verdade, o sacerdócio instituído em Quinta-feira Santa, com e em função do banquete eucarístico de comunhão e sacrifício do Calvário tem Mãe muito pronta, próxima e solícita; e com Ela deve aprender o exercício da solicitude, da prontidão, da proximidade, do acolhimento. É a maternidade da Igreja em ação, reflexão, apostolado!
2018.03.30 – Louro de Carvalho

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