domingo, 25 de março de 2018

Por favor, decidi-vos antes que gritem as pedras...


O segmento apelativo enunciado em epígrafe é a exortação final aos jovens presentes na Praça de São Pedro e a todos aqueles que estavam em ligação com Roma nesta XXXIII Jornada Mundial da Juventude (com o tema “Não tenhas medo, Maria! Encontraste graça junto a Deus” - Lc 1,30) em 25 de março de 2018, Domingo de Ramos na Paixão do Senhor.
Comemora-se a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém. Como refere o Evangelho de Marcos, proclamado depois da Bênção dos Ramos e antes da procissão aclamatória, “levaram, como previsto, o jumentinho a Jesus, lançaram-lhe por cima as capas e Jesus montou nele. Muitos estenderam as capas pelo caminho; outros, ramos de verdura que tinham cortado nos campos. E tanto os que iam à frente como os que vinham atrás gritavam: Hossana! Bendito seja o que vem em nome do Senhor! Bendito o Reino do nosso pai David que está a chegar. Hossana nas alturas! (Mc 11,7-10).
Por isso, na sua homilia, o Papa sublinha que a Liturgia convida “a intervir e a participar na alegria e na festa do povo que é capaz de aclamar e louvar o seu Senhor”. Com efeito, como refere o texto homilético de hoje, “Jesus entra na cidade rodeado pelos seus, rodeado por cânticos e gritos rumorosos”. E o Pontífice discorre:
Podemos imaginar que são a voz do filho perdoado, a do leproso curado ou o balir da ovelha extraviada que ressoam, intensamente e todos juntos, nesta entrada. É o cântico do publicano e do impuro; é o grito da pessoa que vivia marginalizada da cidade. É o grito de homens e mulheres que O seguiram, porque experimentaram a sua compaixão à vista do sofrimento e miséria deles... É o cântico e a alegria espontânea de tantos marginalizados que, tocados por Jesus, podem gritar: ‘Bendito seja o que vem em nome do Senhor!’ (Mc 11,9).”.
É, pois, justo e salutar bendizer “Aquele que lhes restituíra a dignidade e a esperança”, Aquele que é a “alegria de tantos pecadores perdoados que reencontraram ousadia e esperança”. Por isso, “gritam, rejubilam”: É a alegria.
***
Não obstante, esta alegria torna-se incómoda para muitos. É a inveja. Como frisa o Pontífice, “vê-se claramente em toda a narração evangélica que, para alguns, a alegria suscitada por Jesus é motivo de fastídio e irritação”, nomeadamente para quem se considera justo e fiel aos preceitos rituais e se sente contestado por não sair do ritualismo. Aí a alegria dos outros torna-se incómoda, absurda, escandalosa e insuportável, sobretudo para quem teve de reprimir “a sensibilidade face à angústia, ao sofrimento e à miséria”. E Francisco retoma palavras suas da exortação apostólica Evangelii gaudium, documento programático do seu pontificado:
Uma alegria intolerável para quantos perderam a memória e se esqueceram das inúmeras oportunidades por eles usufruídas. Como é difícil, para quem procura justificar-se e salvar-se a si mesmo, compreender a alegria e a festa da misericórdia de Deus! Como é difícil, para quantos confiam apenas nas suas próprias forças e se sentem superiores aos outros, poder compartilhar esta alegria!” (EG, 94).
Por isso, os inimigos de Jesus lançaram a cizânia da contra-aclamação entre as multidões levando-as a gritar não “Hossana”, mas “Crucifica-O!”. E este domingo é de Paixão, porque o Senhor entra em Jerusalém para padecer e morrer. Assim seria glorificado e mereceria a salvação oferecida pelo Pai a todos os homens. Assim se compreende que o Papa anote que alegria da entrada triunfal “esmorece dando lugar a um sabor amargo e doloroso depois que acabámos de ouvir a narração da Paixão” (Is 50,4-7; Fl 2,6-11; Mc 14,1-15,47). Com efeito, nesta celebração de Igreja e Juventude, cruzam-se histórias de alegria e sofrimento, erros e sucessos que fazem parte da nossa vida diária como discípulos, porque consegue revelar sentimentos e contradições que hoje, com frequência, aparecem em nós, homens e mulheres deste tempo: “capazes de amar muito” e “de odiar” – capazes de sacrifício heroico e de saber ‘lavar-se as mãos’ no momento oportuno; capazes de fidelidade e de grandes abandonos e traições.
Sim, não é fácil o discípulo manter-se fiel até ao fim, assumir os próprios erros, deixar de acusar os outros ou escudar-se no lodaçal da indiferença lavando as mãos como Pilatos ou questionar-se sobre quem o nomeou guarda do irmão.
E é no contexto da inveja, do incómodo ou da indiferença (que nos faz alinhar com quem dá ou promete mais) que “nasce o grito da pessoa a quem não treme a voz para bradar: ‘Crucifica-O!’ (Mc 15,13). E, frisando a índole manipulável desse brado, verifica o Pontífice:
Não é um grito espontâneo, mas grito pilotado, construído, que se forma com o desprezo, a calúnia, a emissão de testemunhos falsos. É o grito que nasce na passagem dos factos à sua narração, nasce da narração. É a voz de quem manipula a realidade criando uma versão favorável a si próprio e não tem problemas em ‘tramar’ os outros para ele mesmo se ver livre.”.
Além de provir de falsa narrativa, diz o Papa, acentuando a trama, soberba e autossuficiência:
O grito de quem não tem escrúpulos em procurar os meios para reforçar a sua posição e silenciar as vozes dissonantes. É o grito que nasce de ‘maquilhar’ a realidade, pintando-a de tal maneira que acabe por desfigurar o rosto de Jesus fazendo-O aparecer como um ‘malfeitor’. É a voz de quem deseja defender a sua posição, desacreditando especialmente quem não se pode defender. É o grito produzido pelas ‘intrigas’ da autossuficiência, do orgulho e da soberba, que proclama sem problemas: crucifica-O, crucifica-O!”.
***
E, voltando à apoteose da entrada de Jesus na sua Cidade de Jerusalém e no Templo onde, como diz Marcos, “tendo examinado tudo em seu redor, como a hora já ia adiantada, saiu para Betânia com os Doze” (Mc 11,11), constata o Papa argentino:
No fim, silencia-se a festa do povo, destrói-se a esperança, matam-se os sonhos, suprime-se a alegria; deste modo, no fim, blinda-se o coração, resfria-se a caridade. É o grito do ‘salva-te a ti mesmo’, que pretende adormecer a solidariedade, apagar os ideais, tornar insensível o olhar... O grito que pretende cancelar a compaixão, aquele ‘padecer com’, a compaixão, que é o ponto fraco’ de Deus.”.
Perante cenários como este, o discurso papal apresenta como o melhor antídoto a atitude de “olhar a cruz de Cristo” e a de se deixar “interpelar pelo seu último grito”. Na verdade, “Cristo morreu, gritando o seu amor por cada um de nós: por jovens e idosos, santos e pecadores, amor pelos do seu tempo e pelos do nosso tempo”. E é curioso notar como o Papa sustenta a profundeza e sobrevivência da alegria e a genuinidade da misericórdia:
Na sua cruz, fomos salvos para que ninguém apague a alegria do Evangelho; para que ninguém, na própria situação em que se encontra, permaneça longe do olhar misericordioso do Pai. Olhar a cruz significa deixar-nos interpelar nas nossas prioridades, escolhas e ações. Significa deixar-nos interrogar sobre a nossa sensibilidade face a quem está a passar ou a viver momentos de dificuldade.”.
Face ao mistério da alegria e misericórdia cravadas na cruz, é de perguntar o que vê o coração de cada um, ou seja, se “Jesus continua a ser motivo de alegria e louvor no nosso coração” ou se nos envergonhamos “das suas prioridades para com os pecadores, os últimos, os abandonados”.
***
Depois, articulando o espírito da celebração litúrgica de hoje com a da XXXIII Jornada Mundial da Juventude, tendo como pano de fundo a reunião pré-sinodal terminada a 14 de março, cujas conclusões forma hoje entregues, e no horizonte do próximo Sínodo sobre Os jovens, a fé e o discernimento vocacional”, Francisco volta-se para os jovens ali presentes:
E, no vosso caso, queridos jovens, a alegria que Jesus suscita em vós é, para alguns, motivo de fastídio e também irritação, porque um jovem alegre é difícil de manipular. Um jovem alegre é difícil de manipular.”.
E recordou o possível terceiro grito de hoje, o das pedras. Com efeito, alguns fariseus, do meio da multidão, pediram a Jesus que repreendesse os discípulos. E ele replicou:
Digo-vos que, se eles se calarem, gritarão as pedras” (Lc 19,39-40).
E o Pontífice reconhece que “silenciar os jovens é uma tentação que sempre existiu” e que “há muitas maneiras de tornar os jovens silenciosos e invisíveis” ou “muitas maneiras de os anestesiar e adormecer para que não façam barulho, para que não se interroguem nem ponham em discussão”. E insiste:
‘Vós… calai-vos!’ Há muitas maneiras de os fazer estar tranquilos, para que não se envolvam, e os seus sonhos percam altura tornando-se fantastiquices rasteiras, mesquinhas, tristes.”.
Nós bem sabemos quantas iniciativas, festas e espetáculos se organizam para distrair os jovens e os desviar do trabalho, do acesso ao conhecimento, da reflexão temática e da consequente intervenção na vida social e política, ficando margem de manobra para a serventia aos grandes interesses, sem contestação anímica e sustentável.  
Por isso, o Papa entende que, neste Domingo de Ramos, em que celebramos o Dia Mundial da Juventude, nos faz bem “ouvir a resposta de Jesus aos fariseus de ontem e de todos os tempos (também os de hoje): ‘Se eles se calarem, gritarão as pedras’.” (Lc 19,40).
E em tom interpelativo, desafia:
Queridos jovens, cabe a vós a decisão de gritar, cabe a vós decidir-vos pelo Hossana do domingo para não cair no ‘crucifica-O’ de sexta-feira... E cabe a vós não ficar calados. Se os outros calam, se nós, idosos e responsáveis (tantas vezes corruptos), silenciamos, se o mundo se cala e perde a alegria, pergunto-vos: vós gritareis?”.
E, por fim, o apelo claro:
Por favor, decidi-vos antes que gritem as pedras...”.
2018.03.25 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário