sábado, 3 de março de 2018

A 15.ª obra de misericórdia


No dia 1 de setembro de 2016, o Papa Francisco, na sequência do teor por que apostava na sua encíclica Laudato Si’ e no contexto do Ano Jubilar da Misericórdia, afirmou que o cuidado com o Ambiente deve ser visto pelos cristãos como uma “nova obra de misericórdia”, que se une às 14 tradicionais (7 corporais e 7 espirituais), para defender a “vida humana na sua totalidade”. Porém, a obra de misericórdia que o Pontífice quis adicionar dá para os dois campos. Explicita ele:
Tomo a liberdade de propor um complemento aos dois elencos de sete obras de misericórdia [corporais e espirituais], acrescentando a cada um o cuidado da casa comum”.
Sendo um complemento aos dois elencos, configura a dupla vertente: na vertente espiritual, comporta a atitude contemplativa e orante; na vertente corporal, requer os “simples gestos quotidianos” que permitem quebrar “a lógica da violência, da exploração, do egoísmo”.
A nível espiritual, temos mais que motivos para enveredar pela “grata contemplação do mundo”, como acentua o Papa. E, se esta dimensão espiritual estiver presente, os católicos saberão reconhecer “os pecados contra a criação” que também cometeram, para que seja possível “dar passos concretos no caminho da conversão ecológica”. Depois, arrepender-se-ão “do mal que estamos a fazer à nossa casa comum”.
Ora, esta postura exige que o sério exame de consciência pessoal e coletiva chegue ao campo ecológico para, depois, seguirmos o conselho papal:
Habitados por tal arrependimento, podemos confessar os nossos pecados contra o Criador, contra a criação, contra os nossos irmãos e irmãs”.
O Pontífice argentino espera que este processo leve a um “propósito firme de mudar de vida”, que se traduza “em atitudes e comportamento concretos mais respeitadores da criação”.
E a mensagem daquele dia setembrino concluía com uma oração ao “Deus dos pobres”, rezando pelos “abandonados e esquecidos desta terra”. Na verdade, a exploração excessiva e indevida dos recursos naturais, desequilibrando gravemente o ecossistema, representa enorme prejuízo para os mais pobres, que ou são explorados no trabalho e, depois, descartados, ou impedidos de aceder aos recursos a que, em princípio, tinham direito.
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À luz desta postura pontifícia, devo recusar a ideia que norteia o escrito de João Cândido da Silva, a 2 de março no Observador, sob o título “A 15.ª obra de misericórdia da Santa Casa”.

Quem me conhece sabe que desde início estou contra a entrada da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa no capital do Montepio. Penso que o tema – até porque posso não ter razão em tudo – deveria ter sido mais discutido a nível político e, já que a SCML, embora tutelada pelo Estado, se autoproclama estatutariamente paladina dos valores do cristianismo no acolhimento dos necessitados, gostaria de ouvir uma palavra da Conferência Episcopal, a qual intervém mesmo em assuntos que alguns pensam que não lhe dizem respeito. E gostava do debate participado pela sociedade civil e não apenas entre SCML e Montepio e, em certo modo, Banco de Portugal.
Porém, as minhas razões podem não coincidir com as da visão de João Cândido da Silva, bem como as de Fernando Negrão, que se fez porta-voz de Rui Rio. O colunista diz que Negrão esteve bem ao escolher o tema do Montepio para confrontar António Costa porque “a missão da Santa Casa não é a de se comprometer com o resgate de bancos em apuros”. E, eu, embora também alinhe com esta razão, não me circunscrevo a ela. Não é só o facto de se tratar de um banco em apuros, mas por se tratar de um banco cujo histórico e cujo momento presente não inspiram confiança. Mas por essa linha até se poderia legitimar o contributo da SCML para ajudar a salvar o banco público, já que está ou deve estar ao serviço de todos.
A razão é de maior peso: o desvio das verbas arrancadas por meios voluntários ou aliciantes aos contribuintes da sociedade para os fins estatutários e em que a banca não está selecionada como meio adequado à consecução desses fins. É óbvio que o investimento será um dos meios, mas nunca o investimento sem cálculo e acautelamento de risco. Mesmo os jogos sociais, de que a SCML tem o monopólio, que não devia ter por ser uma instituição local e os jogos se estenderem a todo o território, são produto do suor das pessoas, que ao menos tacitamente sabem que o resultado vai para a SCML e para o Estado por via fiscal.
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Pouco me importa  se os deputados do PSD se amotinaram de verdade na eleição do seu novo líder parlamentar ou se quiseram primar pelo espetáculo de truculência, demagogia, insultos, desonestidade intelectual e demais truques e manhas que soem marcar os momentos de maior visibilidade na AR (Assembleia da República) como são os debates quinzenais com o Primeiro-Ministro. É o debate político discutível, mas legítimo, embora os deputados devam saber que os eleitores lhes exigem os patamares mínimos de decência na ocupação da “casa da democracia”.
De facto a vitória questionável de Negrão configura “uma tomada de posição hostil” dirigida a Rui Rio, o que permite duvidar se os deputados da atual maior bancada na AR querem fazer oposição ao Governo ou ao seu líder partidário. Se for o segundo caso, a síndrome da orfandade dos deputados aficionados do líder cessante (de partido ou de bancada parlamentar) leva-os a querer reviver, mas fazem-no talvez pela forma mais inadequada.
Por isso, o colunista, em vez de inventar uma 15.ª obra de misericórdia para a SCML, poderia pensar nela para a bancada parlamentar em causa, como a obra do aconselhamento a que percebam que as circunstâncias mudaram e a roda dentada da vida está a girar.
Na verdade, os herdeiros de Passos não aproveitaram a oportunidade de eleger um candidato seu que disputasse as eleições diretas. Os posicionáveis primaram pela não comparência na arena, embora tenham comparecido no Congresso e tenham feito ou apoiado discurso.
Santana Lopes foi aquele que se perfilou na lide contra Rio, mas não conseguiu vencê-lo.
Segundo Cândido da Silva, os agora apelidados de passistas “perderam por falta de comparência e vão andar por aí”. Muitos deles estão na AR por serem deputados “e, se têm dificuldade em ser leais com o líder do partido, têm de o ser perante os eleitores”. E pode o grupo parlamentar servir para alimentar as divergências partidárias internas, mas esse não será o melhor modo de ganhar a confiança de quem não se revê na atual opção governativa e almeja uma alternativa democrática.
Talvez fosse, pois, desejável o mencionado colunista inventar uma 16.ª obra de misericórdia para os deputados reganharem a boa forma estribada na sólida formação de caráter, que aceita a questionação das lideranças e a discordância política, mas por meios francos e transparentes,  
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Quanto à parte do artigo de opinião mais relacionada com a minha base de reflexão, Fernando Negrão, segundo Cândido da Silva, aparece bem na estreia como líder parlamentar no confronto António Costa com discussão sobre a provável entrada da SCML no capital do Montepio.
Trata-se de um dossiê em que o Governo ou outros podem “fazer uma coisa e fingir que se trata de outra completamente distinta”. Por mais que se diga que o Banco está sólido, o que se passa é a conveniência de fazer uma operação de recapitalização de uma instituição financeira com fortes carências de dinheiro fresco, travestida de iniciativa de reforço da economia social, estratagema que apenas assegura o conforto e o silêncio das partes interessadas.
Tanto assim é que, no calor da discussão política, empresarial ou reguladora, todas as partes querem alijar para outrem a paternidade da iniciativa. Até há quem diga que um teve a ideia da participação numa entidade financeira e outro fora a correr oferecer o Montepio.
Assim, é fácil deduzir que, “se o plano fosse bom e pacífico”, nenhum dos interessados confessaria tanta ignorância de elenco.
Nada permite vislumbrar, na transformação da SCML em acionista de referência duma financeira, que haja uma linha de coerência e consequência. “A Santa Casa prossegue fins sociais em áreas que vão da educação à saúde e ao combate à pobreza. É um investidor relevante em imobiliário e as aplicações em ações têm um valor praticamente residual quando comparado com a dimensão do ativo” – diz o colunista.
Dizem que o investimento no Montepio seria um modo de diversificação dos investimentos da Santa Casa. Só que esta tem-se revelado muito cautelosa tendo em conta a sua missão e a necessidade de estabilidade financeira para responder aos compromissos.
Ainda que a análise séria da política de investimentos da Santa Casa levasse a concluir que fosse útil incorrer em mais risco para alcançar retorno mais elevado, isto não condiz com uma decisão que pode comprometer perto de 20% do ativo da Misericórdia. Isto não é diversificação, mas concentração do risco e num banco problemático.
E esta última asserção é confirmada pelos acontecimentos. O “Expresso” diz que a avaliação feita pelo Haitong ao Montepio foi bem inferior ao previsto e o investimento da Santa Casa, pelo menos nos moldes inicialmente pensados (a compra de 10% do capital), está em risco.
Não foi ainda noticiada a avaliação que o Haitong fez, mas o Expresso adianta, sem especificar fontes, que o valor ficou “bem abaixo dos dois mil milhões que chegaram a ser badalados e, mesmo, abaixo dos 1,6 mil milhões que o mesmo semanário chegou a escrever. Por isso, o jornal fala numa “mudança substancial de posicionamento”.
Com a operação em risco, o Expresso acrescenta que estão a ser estudados outros cenários para criar um banco da economia social, que pode passar pela entrada não só da Santa Casa, mas de outros parceiros, diluindo o peso da instituição agora liderada por Edmundo Martinho, que disse, no Parlamento, que a operação estaria concluída até ao final de janeiro.
Já começou o mês de março e o discurso dos principais responsáveis está a mudar de tom, com Tomás Correia, presidente da associação mutualista, a dizer que está “pouco preocupado com quem entra ou não entra” no banco, acrescentando que a SCML poderia desempenhar um papel que “não sendo único, pode ser muito importante”.
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A Santa Casa, diz Cândido da Silva, “é um investidor modesto em ações” e, desde o tempo da rainha Dona Leonor, não se lhe conhecem sonhos de enveredar pela banca a sério e a magra experiência que fez em tempos melhore deu mau resultado. Em todo o caso, é detentora de um considerável bolo de liquidez, materializado, segundo as contas de 2016, em perto de 200 milhões de euros em depósitos bancários – número equivalente ao que, numa primeira fase, foi referido como o valor que a Misericórdia iria injetar no Montepio. Ou seja, tem sido uma instituição previdente na gestão das suas finanças, num país em que não há travões quando cobiça e a irresponsabilidade de alguns gestores atropelam o destino das poupanças alheias. Azar o dela!
Entre as 14 obras de misericórdia evangélicas que animaram a rainha viúva de Dom João II a fundar a Santa Casa, estão as práticas cristãs de dar de comer a quem tem fome e dar de beber a quem tem sede, vestir os nus, dar pousada aos peregrinos, tratar dos doentes e outras pessoas fragilizadas, acompanhar os reclusos e prisioneiros e sepultar os defuntos. E, no foro imaterial, inscrevem-se ações como a educação e cultura, a formação de caráter, o aconselhamento, a correção dos erros, defeitos e vícios, a ajuda os demais a suportar as suas fraquezas e, porque não, o rezar por vivos e defuntos.  

Não pode o Governo nem ninguém acrescentar como obra de misericórdia a missão do resgate de bancos em apuros. De todo, nem mesmo na ótica de acudir aos aflitos, isso se enquadra no espírito da instituição.
É óbvio que o acolhimento meritório aos refugiados, outra modalidade de serem peregrinos, enquadra-se nas clássicas obras de misericórdia.
Se queremos algo com sabor de novo, voltemos ao discurso do Papa Francisco e assumamos a preocupação ecológica, cuidando da Terra e cuidando do próximo.
2018.03.03 – Louro de Carvalho 



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