segunda-feira, 26 de março de 2018

Sobre o relatório dos incêndios florestais de outubro de 2017 pela CTI


Mal os governantes e os deputados receberam o relatório da CTI (Comissão Técnica Independente), criada no âmbito da Assembleia da República, não tendo capacidade humana de assimilar o conteúdo veiculado pela leitura atenta que terão feito – sinceramente duvido de que a tenham feito –, e as vozes críticas começaram a fazer-se ouvir bem cedo e de forma bastante acintosa ou displicente.
E eu pergunto-me se efetivamente os que se pronunciaram publicamente já leram o documento de 276 páginas e se já o assimilaram, o que não é fácil, dada a sua índole predominantemente técnica. É possível que o tenham lido com as categorias de análise do relatório dos incêndios de junho. Mas os de outubro tiveram outros contornos circunstanciais, outra dimensão e sequelas diferentes. Desde logo, foi atingida maior extensão territorial, ainda que de menos municípios (8 em outubro conta os 11 de junho); embora tivesse sido menor o número de vítimas mortais, esse número foi subindo à medida que o tempo passava; também as vítimas mortais não resultaram predominantemente de estradas impedidas ou de engaiolamento em automóveis; e a suposta aproximação de tempo chuvoso fez proliferar as queimadas, não tendo estas sido devidamente controladas e sobretudo podendo ter servido de cobertura a mãozinha criminosa.
Não se estranha que as consequências dos fogos de outubro sejam algo similares das de junho. Com efeito, a aprendizagem que poderia ter sido feita desde junho, dando de barato que não havia legislação a observar nesta matéria, só poderia advir dum conhecimento empírico, pois não tinha havido tempo de ler e assimilar o respetivo relatório da CTI e muito menos o que fora encomendado pelo MAI a uma equipa da Universidade de Coimbra. Além disso, as informações avulsas que iam sendo transmitidas não permitiam fazer um juízo de valor suficiente. Por outro lado, as entidades que supostamente têm responsabilidades nas falhas verificadas estavam numa de alijar para outrem as responsabilidades (fugir com o rabo à seringa) fazendo duma Ministra e seus serviços ou dos que tutelava o bode expiatório, ficando os outros a assobiar para o lado.
Agora, enquanto uns afirmam que políticos podem ter de responder criminalmente pelo que se passou em outubro (em relação a junho, foram constituídos sem consequências dois arguidos com ligação ao teatro das operações), agentes ligados aos bombeiros e proteção civil e antigos governantes vêm dizer que o relatório tem dados falsos ou que não correspondem à verdade. Mas todos esquecem que há legislação em vigor desde 2003 e 2006 e as ZIF (zonas de intervenção florestal), que a distração do Simplex, Energias Renováveis ou troika levou a esquecer. E os partidos estiveram no Parlamento, PSD/CDS e PS estiveram no Governo e Marcelo era comentador político.  
Alguns partidos, dizendo que o Governo falhou de forma palmar, exigem esclarecimentos ou pedem responsabilidades políticas. Marcelo, provavelmente tendo lido o relatório em diagonal ou inspirado por assessores (aliás, dada a sua capacidade de leitura e de trabalho, pode ter lido as 276 pgs, mas sem tempo de assimilar), adiantou que este relatório foi mais longe que o anterior e prometeu desnecessariamente (todos cremos na solidariedade entre os órgãos de soberania, mas desejamos a não intromissão) apoiar o Governo e o Parlamento se estes órgãos entendessem dever alterar a legislação atinente aos fogos e florestas. Ora, a meu ver, era preciso que o relatório fosse lido, assimilado e discutido no Governo, no Parlamento e nas instâncias interessadas. Só depois é que seriam tiradas consequências políticas e técnicas. Ademais, parece-me atitude primária ter-se dito que a legislação ora aprovada não tem a devida justificação técnica e científica (Isso há de ser sempre assim). Ora, legislar é ato político resultante de opções, levando estas a assumir umas soluções e rejeitar outras; e importa a legislação ser clara, eficaz e equilibradamente imperativa.
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Alguns órgãos de comunicação social, ao mesmo tempo que abrem para a leitura integral do relatório em suporte pdf, avançam com a síntese do que falhou em outubro.
Assim, o Correio da Manhã aponta “falhas na programação do socorro e na rede de comunicações e um ‘dramático abandono’ das populações”, mas diz que a CTI admite uma conjugação singular de fatores meteorológicos.
O documento da CTI (criada pela Lei n.º 109-A/2017, de 14 de dezembro, e cujo prazo foi prorrogado pela Lei n.º 5/2018, de 20 de fevereiro), entregue no Parlamento a 17 de março, atualiza para 48 (neste momento são 49) o número de mortos (maioritariamente idosos) dos incêndios de 14 a 16 de outubro e conclui ter falhado a capacidade de “previsão e programação” para “minimizar a extensão” do fogo na região Centro (onde ocorreram as mortes), perante as previsões meteorológicas de temperaturas elevadas e vento. Assim, a CTI regista que a junção de vários fatores meteorológicos constituiu “o maior fenómeno piro-convectivo registado na Europa até ao momento e o maior do mundo em 2017, com uma média de 10 mil hectares ardidos por hora entre as 16 horas do dia 15 de outubro e as 5 horas do dia 16”. Contudo, a ANPC (Autoridade Nacional de Proteção Civil) pediu reforço de meios devido às condições meteorológicas, mas não obteve “plena autorização a nível superior”, e a atuação do INEM (Instituto Nacional de Emergência Médica) foi “limitada” por falhas na rede de comunicações de tal modo que, “em algumas fases das operações, não foi possível referenciar o posicionamento dos meios envolvidos em diversos teatros de operações”.
As queimadas e o fogo posto (sobretudo este) foram as duas principais causas das mais de 900 ignições registadas, considerando-se preocupante o número de reacendimentos. O número de total de ignições (de fogachos e de incêndios florestais e agrícolas) iniciadas nos dias 14, 15 e 16 e registadas no SGIIF (Sistema de Gestão de Informação de Incêndios Florestais), do ICNF (Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas), “foi de 206, 495 e 213, respetivamente”, somando 914.
Apesar de haver soluções para “minimizar a extensão do incêndio” de outubro – casos houve em que não havia nada a fazer (Só visto!) –, a CTI refere que o panorama vivido nesses dias se traduziu “numa situação de dramático abandono, com escassez de meios, ficando as populações entregues a si próprias”. É certo que, “por momentos iniciais”, se cumpriram as determinações fixadas nas diretivas, “mas rapidamente se verificou não haver possibilidade de manter a estratégia teoricamente fixada”, sobretudo pela dificuldade de mobilizar forças suficientes face ao número de ignições que se sucediam em áreas de grande dimensão e pela impossibilidade de dar resposta a todos os incêndios por parte dos corpos de bombeiros. A impossibilidade de dar resposta esteve relacionada com o facto de outubro estar na fase Delta e, nesta fase de combate a incêndios, a capacidade de mobilização é limitada.
Os peritos sustentam que, na fase de ataque inicial, a dispersão dos fogos, a velocidade de expansão e a respetiva severidade impediram frequentemente a aplicação do conceito de triangulação, até porque os corpos de bombeiros que se movimentaram para teatros de operações afastados dos concelhos de origem tiveram de regressar para garantirem o combate aos incêndios que eclodiram na sua área de atuação própria. Os fogos de outubro revelaram também dificuldades dos municípios para liderar procedimentos relacionados com a emergência e o socorro e considerou-se que o apoio das Forças Armadas no combate às chamas “ficou aquém do desejável”. Precisamos de mais efetivos militares e com melhor equipamento!
Para a CTI, os apoios públicos à floresta têm de ser reorientados e a estrutura do ICNF deve ter um reforço de meios, a par duma revisão da sua estrutura, havendo ainda necessidade de mudanças estruturais e não apenas pontuais nas áreas de baixa densidade. A GNR tem de intensificar o patrulhamento nos locais com forte concentração de ocorrências de incêndio, sobretudo durante o período crítico (são precisos mais efetivos). Tem de haver da parte das autoridades “flexibilidade para ter meios de previsão e combate em qualquer época do ano”. E deve ser criada uma unidade de missão para reorganizar os bombeiros.
A comissão dá conta de comportamentos provocados pelo “efeito Pedrógão” (fogo de junho), que levou várias pessoas a abandonarem as suas localidades sem ordem prévia de evacuação.
O presidente da comissão admitiu que as recomendações feitas pelos especialistas só terão efeitos a “médio e longo prazo” e afirmou que devem ser acompanhadas para serem cumpridas. Dias antes dos fogos de outubro, a CTI apresentou o relatório sobre os incêndios de 17 a 24 de junho, em que morreram 66 pessoas. O documento referia que, apesar de o fogo de Pedrógão ter origem em descargas elétricas na rede de distribuição, um alerta precoce poderia evitar a maioria das mortes, e apontava falhas na mobilização de meios, no comando dos bombeiros e no SIRESP (Sistema Integrado das Redes de Emergência e Segurança de Portugal), bem como falta de conhecimento técnico no sistema de defesa florestal. Reconhecer isto exige humildade!
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Agora, Costa e Marcelo estão unidos na “sensibilização” a 250 km de distância das populações. Na verdade, na semana em que foi conhecido o relatório dos incêndios de outubro, o Presidente foi mostrar ao Governo que não há “desunião” na “causa nacional” que é a limpeza das florestas. As diferenças a 24 de março foram: um a sul, outro a norte, mas ambos enlameados pela chuva que se fez sentir todo o dia; um de helicóptero, outro de carro. De resto, o Primeiro-Ministro e o Presidente da República afinaram as mensagens neste dia “simbólico” para mostrar que as matas e terrenos têm de ser limpos, porque esta é uma “causa nacional”. O Chefe de Estado juntou-se à ação de sensibilização do Executivo que António Costa prometeu no Parlamento (dizendo que não tinha máquinas, mas que oferecia “estes dois braços” e apealando a todos os deputados) e que pôs ministros e secretários de Estado no terreno em ações de limpeza da floresta. Assim, as dúvidas sobre a resposta que está a ser dada ficaram para outras ocasiões.
A dois meses da época de fogos e numa semana em que foi conhecido o relatório crítico da CTI, Marcelo Rebelo de Sousa preferiu dar o braço ao Governo e deixou os puxões de orelhas para o que disse no discurso de 17 de outubro de 2017, declarando que “não queria regressar ao passado”. E, questionado se mantém as dúvidas sobre se o Governo está a fazer tudo nas medidas de prevenção para enfrentar o próximo verão, replicou:
Não se tente encontrar divisões, angústias, hesitações, naquilo que é uma causa nacional. Não vamos agora encontrar divisões que não existem numa causa em que todos somados somos poucos. Divididos não somos suficientes.”.
Depois dum trilho em passo apressado pela Serra do Crasto, em Viseu, onde militares de várias regiões do país criam faixas de gestão de combustível e limpam mato junto de casas e estradas, o Chefe de Estado, que tinha começado a sua ação na Peneda-Gerês, repetiu não ser dado “a angústias metafísicas”, mas “a determinação e decisão” e que “tudo o que é preciso fazer, que o Parlamento entenda ou o Governo, o Presidente apoia” – o que tem dito desde outubro.
E esse “tudo” para o Governo foi, a 24, uma ação de sensibilização. De manhã, Costa começou nos Vermelhos (Loulé), aldeia arrasada pelas chamas em plena Serra do Caldeirão no grande incêndio de 2004, que queimaram quase toda a zona do interior da região. De novo, o sítio (freguesia do Ameixial) integra a lista das zonas de risco. E o Primeiro-Ministro enfatizou:
Nem desvalorizar os riscos, porque isso é um perigo, nem ficarmos paralisados com medo. Quando há um risco nós devemos procurar identificá-lo, mitigá-lo de forma a aumentar a segurança de todos.”.
Para isso, o exercício do dia 24 pôs no terreno em todo o território um dispositivo com cerca de 1600 militares e máquinas para abrir caminhos. E o Chefe do Governo sublinhou que, “pela primeira vez, em muitos anos, está a haver uma consciência muito grande” e referiu a quem critica a escassez de tempo para cortar o mato que há ainda para desbravar e árvores por limpar.
Referia-se sobretudo ao líder do PSD que considerou este dia que pôs uma vintena de governantes a cortar mato, mesmo que por “simbolismo”, uma “ação de marketing”. A resposta saiu também de Belém. Marcelo disse estar “acima dessa lógica do debate político”, que é natural, mas “é tão importante que se ganhe este combate que é nacional” e que esse “debate por mais votos, menos votos é secundário”. Já em Torres Vedras, onde acabou, o Primeiro-Ministro assumiu que se tratava duma “ação de comunicação”. E, se dúvidas houvesse para quem se estava a dirigir, o Presidente não deixou grande margem para interpretações:
Quem quer que seja governo hoje ou daqui a 4, 8, 12, 16 anos seja governo só ganha com a vitória neste combate. Quem achar o contrário é porque não tenciona ser governo tão depressa.”.
Costa ainda foi a Portalegre, à Serra de São Mamede onde frisou que, além de limpar, é preciso criar valor, tornar a floresta fonte de riqueza, para que os proprietários, que muitas vezes abandonam os terrenos voltem a ter interesse neles e, com isso, a zona florestal seja mais cuidada e preparada para mitigar efeitos dos incêndios. E afirmou:
Quando as zonas de intervenção florestal (ZIF) e as entidades estiverem plenamente a funcionar, os próprios privados passam a ter rendimento da exploração florestal que permita fazer a limpeza. Nós temos de interromper este círculo vicioso em que o abandono ou a falta de rendimentos da floresta faz com que ninguém limpe.”.
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Por outro lado, continua pertinente pensar-se nas cabras como limpadoras de floresta. Leonel Pereira que guarda cabras-sapadoras desde os 6 anos na Serra do Caldeirão, foi o centro das atenções na visita de Costa. Tem a seu cargo cerca de 150 e faz diariamente prevenção contra incêndios, pois elas “comem todos os dias”, não distinguem “domingo ou feriado”. E comem tudo o que seja verde”. Para prevenir os fogos, tomou conta de cerca de 100 hectares de esteva. Sempre fez isto, mas, agora, prometeram apoio para aumentar o rebanho. Candidatou-se e espera, pois, aos 48 anos, só crê se vir. De facto, damos dinheiro para tudo (aumento de eletricidade, gasolina e telecomunicações – que devia ser controlado), mas não o temos para pastores (a incentivar)!
Na freguesia do Ameixial, no limite do concelho de Loulé com o Alentejo, a ocupação do território é só de 3,5 habitantes por hectare. A Câmara Municipal de Loulé destacou do orçamento a verba de meio milhão de euros para reforçar as medidas que o Governo anunciou. O objetivo é fazer do Caldeirão exemplo da política de gestão da floresta, envolvendo a associação de produtores florestais e as associações de caçadores.
Enfim, há muitas formas de prevenção de incêndios e de reordenamento florestal. Mãos à obra!
2018.03.25 – Louro de Carvalho

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