Mal os governantes e os deputados receberam o relatório da
CTI (Comissão Técnica Independente), criada no âmbito da Assembleia
da República, não tendo capacidade humana de assimilar o conteúdo veiculado
pela leitura atenta que terão feito – sinceramente duvido de que a tenham feito
–, e as vozes críticas começaram a fazer-se ouvir bem cedo e de forma bastante
acintosa ou displicente.
E eu pergunto-me se efetivamente os que se pronunciaram
publicamente já leram o documento de 276 páginas e se já o assimilaram, o que
não é fácil, dada a sua índole predominantemente técnica. É possível que o
tenham lido com as categorias de análise do relatório dos incêndios de junho.
Mas os de outubro tiveram outros contornos circunstanciais, outra dimensão e
sequelas diferentes. Desde logo, foi atingida maior extensão territorial, ainda
que de menos municípios (8 em outubro conta os
11 de junho); embora tivesse sido menor o número de vítimas mortais,
esse número foi subindo à medida que o tempo passava; também as vítimas mortais
não resultaram predominantemente de estradas impedidas ou de engaiolamento em
automóveis; e a suposta aproximação de tempo chuvoso fez proliferar as
queimadas, não tendo estas sido devidamente controladas e sobretudo podendo ter
servido de cobertura a mãozinha criminosa.
Não se estranha que as consequências dos fogos de outubro
sejam algo similares das de junho. Com efeito, a aprendizagem que poderia ter
sido feita desde junho, dando de barato que não havia legislação a observar
nesta matéria, só poderia advir dum conhecimento empírico, pois não tinha
havido tempo de ler e assimilar o respetivo relatório da CTI e muito menos o
que fora encomendado pelo MAI a uma equipa da Universidade de Coimbra. Além
disso, as informações avulsas que iam sendo transmitidas não permitiam fazer um
juízo de valor suficiente. Por outro lado, as entidades que supostamente têm
responsabilidades nas falhas verificadas estavam numa de alijar para outrem as
responsabilidades (fugir com o rabo à
seringa) fazendo duma Ministra e seus serviços ou dos que tutelava o bode
expiatório, ficando os outros a assobiar para o lado.
Agora, enquanto uns afirmam que políticos podem ter de
responder criminalmente pelo que se passou em outubro (em relação a junho, foram constituídos sem consequências dois
arguidos com ligação ao teatro das operações), agentes ligados aos bombeiros e
proteção civil e antigos governantes vêm dizer que o relatório tem dados falsos
ou que não correspondem à verdade. Mas todos esquecem que há legislação em
vigor desde 2003 e 2006 e as ZIF (zonas
de intervenção florestal), que a distração do Simplex, Energias Renováveis ou troika
levou a esquecer. E os partidos estiveram no Parlamento, PSD/CDS e PS estiveram
no Governo e Marcelo era comentador político.
Alguns partidos, dizendo que o Governo falhou de forma
palmar, exigem esclarecimentos ou pedem responsabilidades políticas. Marcelo,
provavelmente tendo lido o relatório em diagonal ou inspirado por assessores (aliás, dada a sua capacidade de leitura e de trabalho, pode ter
lido as 276 pgs, mas sem tempo de assimilar), adiantou que este relatório foi
mais longe que o anterior e prometeu desnecessariamente (todos cremos na solidariedade entre os órgãos de soberania,
mas desejamos a não intromissão) apoiar o Governo e o Parlamento se estes órgãos entendessem
dever alterar a legislação atinente aos fogos e florestas. Ora, a meu ver, era
preciso que o relatório fosse lido, assimilado e discutido no Governo, no
Parlamento e nas instâncias interessadas. Só depois é que seriam tiradas
consequências políticas e técnicas. Ademais, parece-me atitude primária ter-se
dito que a legislação ora aprovada não tem a devida justificação técnica e
científica (Isso há de ser sempre assim). Ora, legislar
é ato político resultante de opções, levando estas a assumir umas soluções e
rejeitar outras; e importa a legislação ser clara, eficaz e equilibradamente
imperativa.
***
Alguns órgãos de comunicação social, ao mesmo tempo que abrem
para a leitura integral do relatório em suporte pdf, avançam com a síntese do
que falhou em outubro.
Assim, o Correio da Manhã
aponta “falhas na programação do socorro e na rede de comunicações e um
‘dramático abandono’ das populações”, mas diz que a CTI admite uma conjugação
singular de fatores meteorológicos.
O documento da CTI (criada
pela Lei n.º 109-A/2017, de 14 de dezembro, e cujo prazo foi prorrogado pela
Lei n.º 5/2018, de 20 de fevereiro), entregue no Parlamento a 17 de março, atualiza para 48 (neste momento são 49) o número de mortos (maioritariamente
idosos) dos incêndios de 14 a 16 de outubro e conclui ter falhado a capacidade
de “previsão e programação” para “minimizar a extensão” do fogo na região
Centro (onde ocorreram as mortes), perante as previsões meteorológicas de temperaturas
elevadas e vento. Assim, a CTI regista que a junção de vários fatores
meteorológicos constituiu “o maior fenómeno piro-convectivo registado na Europa
até ao momento e o maior do mundo em 2017, com uma média de 10 mil hectares
ardidos por hora entre as 16 horas do dia 15 de outubro e as 5 horas do dia
16”. Contudo, a ANPC (Autoridade Nacional de
Proteção Civil) pediu reforço de meios devido às condições meteorológicas,
mas não obteve “plena autorização a nível superior”, e a atuação do INEM (Instituto Nacional de Emergência Médica) foi “limitada”
por falhas na rede de comunicações de tal modo que, “em algumas fases das
operações, não foi possível referenciar o posicionamento dos meios envolvidos em
diversos teatros de operações”.
As queimadas e o fogo posto (sobretudo
este)
foram as duas principais causas das mais de 900 ignições registadas,
considerando-se preocupante o número de reacendimentos. O número de total de
ignições (de fogachos e de incêndios
florestais e agrícolas) iniciadas nos dias 14, 15 e 16 e registadas no SGIIF (Sistema de Gestão de Informação de Incêndios Florestais), do ICNF (Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas), “foi de 206,
495 e 213, respetivamente”, somando 914.
Apesar de haver soluções para “minimizar a extensão do
incêndio” de outubro – casos houve em que não havia nada a fazer (Só visto!) –, a CTI refere que o panorama vivido nesses dias se
traduziu “numa situação de dramático abandono, com escassez de meios, ficando
as populações entregues a si próprias”. É certo que, “por momentos iniciais”, se
cumpriram as determinações fixadas nas diretivas, “mas rapidamente se verificou
não haver possibilidade de manter a estratégia teoricamente fixada”, sobretudo
pela dificuldade de mobilizar forças suficientes face ao número de ignições que
se sucediam em áreas de grande dimensão e pela impossibilidade de dar resposta
a todos os incêndios por parte dos corpos de bombeiros. A impossibilidade de
dar resposta esteve relacionada com o facto de outubro estar na fase Delta e, nesta fase de combate a
incêndios, a capacidade de mobilização é limitada.
Os peritos sustentam que, na fase de ataque inicial, a
dispersão dos fogos, a velocidade de expansão e a respetiva severidade
impediram frequentemente a aplicação do conceito de triangulação, até porque os
corpos de bombeiros que se movimentaram para teatros de operações afastados dos
concelhos de origem tiveram de regressar para garantirem o combate aos
incêndios que eclodiram na sua área de atuação própria. Os fogos de outubro
revelaram também dificuldades dos municípios para liderar procedimentos
relacionados com a emergência e o socorro e considerou-se que o apoio das Forças
Armadas no combate às chamas “ficou aquém do desejável”. Precisamos de mais
efetivos militares e com melhor equipamento!
Para a CTI, os apoios públicos à floresta têm de ser
reorientados e a estrutura do ICNF deve ter um reforço de meios, a par duma
revisão da sua estrutura, havendo ainda necessidade de mudanças estruturais e
não apenas pontuais nas áreas de baixa densidade. A GNR tem de intensificar o
patrulhamento nos locais com forte concentração de ocorrências de incêndio,
sobretudo durante o período crítico (são precisos
mais efetivos). Tem de haver da parte das autoridades “flexibilidade para
ter meios de previsão e combate em qualquer época do ano”. E deve ser criada uma
unidade de missão para reorganizar os bombeiros.
A comissão dá conta de comportamentos provocados pelo “efeito
Pedrógão” (fogo de junho), que levou
várias pessoas a abandonarem as suas localidades sem ordem prévia de evacuação.
O presidente da comissão admitiu que as recomendações feitas
pelos especialistas só terão efeitos a “médio e longo prazo” e afirmou que
devem ser acompanhadas para serem cumpridas. Dias antes dos fogos de outubro, a
CTI apresentou o relatório sobre os incêndios de 17 a 24 de junho, em que
morreram 66 pessoas. O documento referia que, apesar de o fogo de Pedrógão ter origem
em descargas elétricas na rede de distribuição, um alerta precoce poderia
evitar a maioria das mortes, e apontava falhas na mobilização de meios, no
comando dos bombeiros e no SIRESP (Sistema
Integrado das Redes de Emergência e Segurança de Portugal), bem como
falta de conhecimento técnico no sistema de defesa florestal. Reconhecer isto
exige humildade!
***
Agora, Costa e Marcelo estão unidos na
“sensibilização” a 250 km de distância das populações. Na verdade, na semana em que foi conhecido o relatório
dos incêndios de outubro, o Presidente foi mostrar ao Governo que não há
“desunião” na “causa nacional” que é a limpeza das florestas. As
diferenças a 24 de março foram: um a sul, outro a norte, mas ambos enlameados pela
chuva que se fez sentir todo o dia; um de helicóptero, outro de carro. De
resto, o Primeiro-Ministro e o Presidente da República afinaram as mensagens
neste dia “simbólico” para mostrar que as matas e terrenos têm de ser limpos,
porque esta é uma “causa nacional”. O Chefe de Estado juntou-se à ação de
sensibilização do Executivo que António Costa prometeu no Parlamento (dizendo que
não tinha máquinas, mas que oferecia “estes dois braços” e apealando a todos os
deputados) e que pôs ministros e secretários
de Estado no terreno em ações de limpeza da floresta. Assim, as dúvidas sobre a
resposta que está a ser dada ficaram para outras ocasiões.
A dois meses
da época de fogos e numa semana em que foi conhecido o relatório crítico da
CTI, Marcelo Rebelo de Sousa preferiu dar o braço ao Governo e deixou os puxões
de orelhas para o que disse no discurso de 17 de outubro de 2017, declarando
que “não queria regressar ao passado”. E, questionado se mantém as dúvidas
sobre se o Governo está a fazer tudo nas medidas de prevenção para enfrentar o
próximo verão, replicou:
“Não se tente encontrar divisões, angústias,
hesitações, naquilo que é uma causa nacional. Não vamos agora encontrar
divisões que não existem numa causa em que todos somados somos poucos. Divididos
não somos suficientes.”.
Depois dum
trilho em passo apressado pela Serra do Crasto, em Viseu, onde militares de
várias regiões do país criam faixas de gestão de combustível e limpam mato
junto de casas e estradas, o Chefe de Estado, que tinha começado a sua ação na Peneda-Gerês,
repetiu não ser dado “a angústias metafísicas”, mas “a determinação e decisão” e
que “tudo o que é preciso fazer, que o Parlamento entenda ou o Governo, o
Presidente apoia” – o que tem dito desde outubro.
E esse
“tudo” para o Governo foi, a 24, uma ação de sensibilização. De manhã, Costa
começou nos Vermelhos (Loulé), aldeia
arrasada pelas chamas em plena Serra do Caldeirão no grande incêndio de 2004,
que queimaram quase toda a zona do interior da região. De novo, o sítio (freguesia do
Ameixial) integra a lista das zonas de
risco. E o Primeiro-Ministro enfatizou:
“Nem desvalorizar os riscos, porque isso é
um perigo, nem ficarmos paralisados com medo. Quando há um risco nós devemos
procurar identificá-lo, mitigá-lo de forma a aumentar a segurança de todos.”.
Para isso, o
exercício do dia 24 pôs no terreno em todo o território um dispositivo com
cerca de 1600 militares e máquinas para abrir caminhos. E o Chefe do Governo
sublinhou que, “pela primeira vez, em muitos anos, está a haver uma consciência
muito grande” e referiu a quem critica a escassez de tempo para cortar o mato
que há ainda para desbravar e árvores por limpar.
Referia-se
sobretudo ao líder do PSD que considerou este dia que pôs uma vintena de
governantes a cortar mato, mesmo que por “simbolismo”, uma “ação de marketing”.
A resposta saiu também de Belém. Marcelo disse estar “acima dessa lógica do
debate político”, que é natural, mas “é tão importante que se ganhe este
combate que é nacional” e que esse “debate por mais votos, menos votos é secundário”.
Já em Torres Vedras, onde acabou, o Primeiro-Ministro assumiu que se tratava duma
“ação de comunicação”. E, se dúvidas houvesse para quem se estava a dirigir, o
Presidente não deixou grande margem para interpretações:
“Quem quer que seja governo hoje ou daqui a
4, 8, 12, 16 anos seja governo só ganha com a vitória neste combate. Quem achar
o contrário é porque não tenciona ser governo tão depressa.”.
Costa ainda
foi a Portalegre, à Serra de São Mamede onde frisou que, além de limpar, é
preciso criar valor, tornar a floresta fonte de riqueza, para que os
proprietários, que muitas vezes abandonam os terrenos voltem a ter interesse
neles e, com isso, a zona florestal seja mais cuidada e preparada para mitigar
efeitos dos incêndios. E afirmou:
“Quando as zonas de intervenção florestal (ZIF)
e as entidades estiverem plenamente a funcionar, os próprios privados passam a
ter rendimento da exploração florestal que permita fazer a limpeza. Nós temos
de interromper este círculo vicioso em que o abandono ou a falta de rendimentos
da floresta faz com que ninguém limpe.”.
***
Por outro
lado, continua pertinente pensar-se nas cabras como limpadoras de floresta. Leonel
Pereira que guarda cabras-sapadoras desde os 6 anos na Serra do Caldeirão, foi
o centro das atenções na visita de Costa. Tem a seu cargo cerca de 150 e faz diariamente
prevenção contra incêndios, pois elas “comem todos os dias”, não distinguem “domingo
ou feriado”. E comem tudo o que seja verde”. Para prevenir os fogos, tomou conta
de cerca de 100 hectares de esteva. Sempre fez isto, mas, agora, prometeram apoio
para aumentar o rebanho. Candidatou-se e espera, pois, aos 48 anos, só crê se
vir. De facto, damos dinheiro para tudo (aumento de eletricidade, gasolina e telecomunicações
– que devia ser controlado), mas não o
temos para pastores (a incentivar)!
Na freguesia
do Ameixial, no limite do concelho de Loulé com o Alentejo, a ocupação do
território é só de 3,5 habitantes por hectare. A Câmara Municipal de Loulé destacou
do orçamento a verba de meio milhão de euros para reforçar as medidas que o
Governo anunciou. O objetivo é fazer do Caldeirão exemplo da política de gestão
da floresta, envolvendo a associação de produtores florestais e as associações
de caçadores.
Enfim,
há muitas formas de prevenção de incêndios e de reordenamento florestal. Mãos à
obra!
2018.03.25 –
Louro de Carvalho
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