terça-feira, 27 de março de 2018

Um banco de economia social ou a ambição da governança


Tanto o Provedor da SCML (Santa Casa da Misericórdia de Lisboa) como o Presidente da UMP (União das Misericórdias Portuguesas) justificam a participação, ainda que simbólica, com a intenção de fazer da CEMG (Caixa Económica Montepio Geral) um banco de economia social (a UMP dá um sinal político). O próprio Presidente da CNIS (Confederação das Instituições Particulares de Solidariedade Social) admite essa possibilidade. A isto o ex-Presidente da CEMG, conhecida por banco Montepio, veio, em tempos, dizer que não sabia o que e um banco de economia social.
Também recentemente o Presidente do Crédito Agrícola (CA) afirma que a entrada das Misericórdias no capital do Montepio ficará “à responsabilidade de quem o faz”. Licínio Pina reforça a ideia de que estas entidades não têm vocação para terem participações financeiras em bancos. O objetivo deste investimento será alegadamente a criação do banco da economia social. Mas, como Félix Morgado, ex-Presidente do Montepio, o responsável pelo CA diz não saber o que é um banco social. E declarou, na sessão em que apresentou os resultados de 2017 da organização que lidera, conseguindo duplicar os seus lucros para 150,2 milhões de euros:
Por princípio, penso que as Misericórdias não têm vocação para terem participações financeiras em bancos. Existem com um objetivo muito claro: apoio social. E não devem desviar-se daí. Qualquer outro investimento fica à responsabilidade de quem o faz.”.
Considerando que a SCML vai entrar no Montepio, mas contando com o apoio das outras misericórdias e IPSS, alegadamente com o objetivo da criação dum banco de economia social, interroga-se sobre que tipo de entidade é esta. E alinhando com a posição do ex-Presidente do Montepio Félix Morgado, que diz saber o que “é um banco alimentar, mas não um banco social”, também diz que não sabe o que é isso. E, constatando que “ainda não apareceu nenhuma licença bancária que diga banco de economia social”, desafia:
Se o querem, têm aqui. Somos o banco que está mais próximo das populações”.
E o Presidente do CA anatematiza, dizendo que, “se há problemas noutro banco e se, com a capa de um banco social, querem constituir um banco de economia social, constituam, mas não contem connosco”. Licínio Pina refere que o Governo não falou com a administração do banco, mas que “houve várias pessoas da Associação Mutualista” que falaram com ele alegando que “era vontade das altas instâncias do país fazer isso”. Segundo o que revela o Presidente do CA, que chegou a ser abordado pelo Banco de Portugal, a ideia seria criar uma holding do banco de economia social, que, depois, reportaria ao regulador como consolidado.
Alguns contestam a postura e as declarações de Licínio Pina, apontando-lhe ignorância, pois, se há bancos públicos e bancos privados, interrogam-se porque não pode haver bancos propriedade de entidades da economia social. Ora, a resposta é clara: em tese uma entidade de economia social pode ser proprietária de um banco – o que não significa per se que esse banco seja uma instrumento de economia social. No caso vertente, não parece que um banco de que é proprietária uma entidade mutualista ou cooperativista se venha a dedicar à ação social. A vocação de um banco – não nos iludamos – é a venda e compra de dinheiro e o seu fim é o lucro. Se uma entidade pública, privada  ou pública no regime de gestão privada lhe exigir uma intervenção social, tem de lhe pagar os custos disso. Também assim chegou a fazer a CGD.
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Enquanto o Montepio consegue martelar as suas contas a ponto de se considerar que vale cerca de 2 400 milhões de euros e a sua proprietária, a AMMG (Associação Mutualista Montepio Geral) ou MGAM (Montepio Geral Associação Mutualista), para oferecer lucros de mais de 500 milhões em 2017 e cobrir os prejuízos de 2016, renunciou à isenção de IRC e obteve créditos fiscais de 802 milhões de euros – grande operação de cosmética contabilística que tornou a MGAM uma empresa e a retirou da condição d e IPSS –, o CA conseguiu mais do que duplicar os lucros em 2017. Registou lucros de 150,2 milhões de euros no ano passado, face aos 58,3 milhões registados no ano anterior. Licínio Pina diz que este “é o melhor resultado líquido de sempre do banco” e que 2017 foi um ano que “correu muito bem ao Crédito Agrícola”.

É um aumento face ao ano anterior que reflete a melhoria do negócio bancário. Este indicador cresceu 147,6 milhões de euros, um aumento de 105% face a 2016.

Também no ano passado, a instituição registou um aumento da margem financeira para 289,7 milhões, em comparação com 276 milhões no ano anterior. Isto sucedeu graças à subida das comissões, “influenciada pelo reforço da oferta de produtos e serviços complementares”, como revela o banco. As comissões fixaram-se nos 148 milhões de euros, o que traduz um crescimento de 9,9 milhões de euros (+7,2%) em relação a 2016. Mas o Presidente do CA garante que as comissões não vão subir mais, pois, como afirma, “o nosso preçário é muito contido” e “a nossa postura no mercado é de não agressividade.” Por outro lado, o banco refere que os rácios de capital se apresentam “muito acima do mínimo regulamentar exigido pelo Banco de Portugal”. Com efeito, os rácios CET1 faseado e totalmente implementado foram de 15,5% e 15%, respetivamente.
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Por isso, enquanto outros bancos entrados em derrapagem absorvem dinheiro dos contribuintes, despedem pessoal e fecham balcões, o Crédito Agrícola “vê oportunidades”.

Assim, o Presidente do CA afirma o banco vai manter as agências nas regiões do país onde outras instituições estão a encerrar e garante que “Não vamos abandonar as pessoas”.

O CA manterá as agências em regiões do país onde outras instituições financeiras estão a sair. Embora tenha reduzido algumas, o banco tem feito um esforço enorme para manter as agências em funcionamento” e “é atualmente a maior rede de agências”. Ao todo, o banco tem 669 balcões e tem 400 agências onde não opera mais ninguém. 
De acordo com o banco, a “rede de distribuição do Crédito Agrícola foi, ao longo de 2017, alvo de alterações pontuais no que respeita à localização e ao horário das agências enquanto estratégia privilegiada para rentabilização da sua rede, tendo existido a preocupação de minimizar os encerramentos”.
Apesar de Licínio Pina não falar em encerramento de balcões, põe em cima da mesa a possibilidade de o banco vir a avançar com a fusão de caixas agrícolas, dado haver “um conjunto de caixas de muito reduzida dimensão”, que, à luz das novas exigências regulamentares, “terão de se fundir para ganhar escala”. Nos próximos dois anos, a instituição financeira deve avançar com a fusão de 20 caixas – isto numa altura em que o banco “está mais focado em desenvolver a banca digital e não física”.
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Entretanto, uma jornalista da revista “Sábado” fez de cliente-mistério, que deu conta do recado.
Contada a breve história da disponibilidade de 4000 euros para aplicação sem qualquer risco e com tempo de procurar alternativas noutros bancos, a funcionária do balcão, com o objetivo de “tirar as notícias do caminho”, alegou:
São tudo notícias sobre coisas antigas, o banco está numa situação confortável, o BCE [Banco Central Europeu] até lhe deu um rácio de capital bom, mas isso não vende papel”.
Obviamente, a funcionária não sabia da intenção que era saber “como são comercializados os produtos de poupança da dona do Montepio, a Montepio Geral Associação Mutualista. E passou a falar da saúde financeira da Associação, coisa importante, pois, acabou por propor a aplicação do dinheiro num produto garantido pelo património da Associação e não pelo Fundo de Garantia de Depósitos, discorrendo que “a Associação tem 105 euros em património por cada 100 euros de obrigações para com os mutualistas” e, ancorada no reconto da “breve história do mutualismo e do seu banco”, referiu andarem “lado a lado há quase 200 anos”. 
Pelos vistos, isto repetiu-se em 6 das agências visitadas. E os produtos do acionista do Montepio são vendidos como alternativa sem risco aos depósitos. Não há qualquer separação física entre o atendimento do banco e do acionista. É apresentado um plano de poupança da Associação – com os tranquilizadores nomes Prazo Certo e Capital Certo na ficha de produto –, uma aplicação a 5 anos com taxas mais altas do que os depósitos do banco e um complexo de benefícios extra. A seguir, é apresentado o depósito a prazo do banco. Sugere-se “diversificar”, isto é, distribuir o dinheiro pela Caixa Económica Montepio Geral e pelo acionista – sugestão estranha dada a garantia de ausência de risco. E dão uma ficha do depósito e outra do produto da Associação onde se avisa, a negrito no cabeçalho, que não é um depósito. 
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Quem tem memória da confusão gerada – e com graves consequências – por exemplo, com a promiscuidade com as vendas, aos balcões do BES, de produtos de entidades integrantes do grupo GES, entende que vender produtos de poupança da Associação aos balcões do banco deveria ser uma tarefa proibida ou de muito difícil execução. Após ter visitado os balcões do Montepio como cliente-mistério em 2015, o Banco de Portugal (BdP) determinou que os balcões do banco vincassem aos clientes que os produtos da Associação não eram depósitos bancários, que na ficha do produto constasse o aviso e que o banco criasse e executasse um plano para distinguir as duas entidades (que por imposição do BdP foram juridicamente separadas). Entretanto a Associação fechou as contas consolidadas de 2015 com capitais próprios negativos de 107 milhões e publicou tardiamente as de 2016. O jornal Público noticiou há cerca de um ano que nas contas de 2015 a KPMG avisou os mutualistas de que sem uma injeção de fundos o cenário era de falência técnica. Depois, a KPMG, sem pôr em causa as contas de 2016, lançava a dúvida sobre o valor a que a Associação tem o banco contabilizado no seu balanço, cerca de 2000 milhões de euros. O banco é o principal ativo no balanço da associação e o seu valor é essencial para que se repita a mensagem tranquilizadora: “Por cada 100 euros de responsabilidades para com os associados, o MGAM possui 105 euros em ativo”.
Contudo, apesar das dificuldades operacionais e de imagem, a Associação gizou para 2018 um objetivo muito ambicioso para o seu financiamento, a cumprir na rede de balcões do seu banco: a captação de 970 milhões de euros. Isto levará quem tem produtos Capital Certo a reinvestir 370 milhões e atrair em média 50 milhões adicionais por mês.
A um aforrador que se apresentou muito conservador, os depósitos do banco e os produtos da Associação foram indicados como alternativas do mesmo tipo, ficando em destaque o produto da associação em destaque. Num ambiente em que bancos praticam taxas de 0%, a rentabilidade do denominado Capital Certo (uma taxa anual bruta média de 1,2%) oferece uma hipótese de venda bem explorável. O risco decorrente do facto de ser o património da Mutualista a garantir o rentabilidade e capital ou não é referido ou é desvalorizado. Mais foi dito que “em 180 anos a Associação nunca deixou de cumprir e não há de ser agora que falha” – referiram à Sábado.

A distinção entre Associação e banco é obnubilada pela forma de comercialização e pela partilha de parte da designação, pois ambas as entidades partilham o nome “Montepio”, os produtos da Associação são vendidos por pessoas do banco na mesma zona que os produtos do banco e há argumentos que cruzam as duas instituições, devido à integração e interação comerciais entre elas. No entanto, chegam a adiantar que a aplicação mutualista teria, entre outras vantagens, isenção nas comissões de gestão de conta no banco (que chegam a 65 euros por ano na concorrência). E, em relação à confusão apontada, sobretudo sobre a falta de espaços próprios nos balcões do banco dedicados ao acionista, a Associação assegura que “mais de 94% dos associados distinguem inequivocamente as marcas e a oferta da Associação Mutualista face à oferta do banco. Bem dito: os associados. E os clientes? Terão estes de ser sócios do Banco ou membros da Associação? Será por isto que se virá a chamar banco de economia social?

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Quanto à regulação e supervisão, levantam-se questões pertinentes. Quem regula e supervisiona o quê, dado a separação entre as marcas não ser clara (embora satisfatória). O BdP supervisiona o banco e refere que a separação ainda está em curso, tendo o banco feito “um caminho gradual”. O supervisor verifica in loco se as medidas adotadas estão a funcionar e avisa:
Caso as medidas implementadas e a implementar não sejam suficientes para atingir o objetivo fixado pelo Banco de Portugal, a instituição terá de considerar medidas adicionais”.
A supervisão do BdP assegura a transparência sobre a forma de comercialização de produtos que não são do banco aos seus balcões – para minimizar o risco para o banco. No entanto, a confusão continua, embora se garanta que o banco se exima de muitas responsabilidades. E sabemos bem como foi a Mutualista que pôs em risco a sustentabilidade e a imagem do banco, que até havia comprado o Finibanco. Aliás, já estamos habituados: o BdP acabou por deixar afundar o BES por só supervisionar o banco e não o resto do grupo, o GES – e o BES não aguentou a exposição ao GES; nacionalizou-se o BPN, mas deixou-se à vontade a SLN (a dona).
E quem regula e supervisiona a Associação Mutualista e produtos financeiros que comercializa é a DGSS (Direcção-Geral da Segurança Social), cuja vocação técnica para tal foi questionada por Bagão Félix, ex-ministro da pasta. Questionada sobre a inspeção à Mutualista e a frequência, a DGSS enunciou de forma genérica a missão geral de supervisão do mutualismo: garantir o cumprimento da lei e defender os interesses dos associados, não podendo limitar o direito de livre atuação das associações salvo nos casos e condições expressamente previstos na lei.
Já agora a seguradora que foi comprada ao grupo Montepio pelos chineses vê o seu presidente investigado. Com efeito, quem regula e supervisiona as seguradoras é outro regulador: Instituto de Seguros de Portugal (ISP).
Ou estou enganado ou o Governo prometeu confiar a regulação e supervisão das entidades que mexem com dinheiros a um supervisor único. Estamos à espera de quê?
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Quanto à SCML, lá irá entrar no Montepio, com 1%, 2%, 3% ou 4% (progressivamente) acompanhada simbolicamente por mais Misericórdias e IPSS. Garantirá administradores no banco e ajudara a escolher o Presidente da Mesa da Assembleia Geral. É isso o importante, não?
2018.03.27 – Louro de Carvalho

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