sábado, 24 de março de 2018

Este é o Pontificado da nova evangelização


Eis a afirmação perentória de Dom Rino Fisichella, o Presidente do Pontifício Conselho para a Nova Evangelização, numa entrevista ao Vatican News sobre o empenho do seu Dicastério no crescimento dos frutos do Jubileu da Misericórdia e no papel dos Santuários num esforçado novo impulso à evangelização.
Seguramente neste aspeto, o pontificado do Papa Francisco representa a linha de continuidade com os pontificados anteriores. Já desde o tempo de Paulo VI, que publicou em 1975, a famosa exortação apostólica “Evangelii Nuntiandi” (sobre a evangelização no mundo contemporâneo) se acentua a necessidade de a Evangelização ir por outras vias falando-se da “Evangelização do Amor”, simbolizada da frase que, segundo o Arcebispo de Milão Giovanni Montini, o futuro Paulo VI, bastava que os cristãos passassem por cada casa a dizer a cada um: “Deus ama-te”. E assim se foi falando da reevangelização sobretudo da Europa descristianizada (não foi sem razão que Ratzinger se tornou Bento) ou com um cristianismo de tradição, de rotina ou descafeinado e foi ganhando corpo a Nova Evangelização (NE). Entretanto, Bento XVI lançou pedradas no charco com a proclamação do Ano da Fé e ao convidar Rino Fisichella para presidir ao novo dicastério que ia criar – o Pontifício Conselho para a Nova Evangelização. (cf Vatican News, 24 de março de 2018)
 Nova Evangelização” (NE) designa “um projeto pastoral” nascido do Concílio do Vaticano II, em continuidade com a trilogia de Constituições: Lumen Gentium (Constituição sobre a Igreja), Dei Verbum (Constituição sobre a Revelação) e Gaudium et Spes (Constituição sobre a Igreja no mundo moderno). A NE reconhece a prioridade da Palavra de Deus, o Verbo, escutada na fé, de que a Igreja é a expressão histórica, como dom para o mundo e chamada a evangelizar.
Vinte anos após o Concílio, João Paulo II intuiu a necessidade de reformular a evangelização a partir da Palavra, no Espírito. Dando continuidade a essa perceção, Bento XVI esforçou-se por a esclarecer e colocar em prática.
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Origens históricas
Eleito Papa com o nome de João XXIII, o Cardeal Ângelo Roncalli anunciou um Concílio Ecuménico para a renovação, aggiornamento, na Igreja, e inaugurou-o com um discurso em que interpreta positivamente a história, manifestação da ação de Deus, e afirma a perenidade da fé, apesar da relatividade das suas expressões nos mais variados tempos e culturas. Foi uma novidade, pois a Igreja, caraterizada desde a Idade Média pelo movimento de progressiva centralização e uniformidade (dogmática, litúrgica e moral), mostrava-se aberta às mudanças históricas e culturais. E João XXIII assemelhou o Concílio a um novo Pentecostes: o Espírito abria à Igreja um novo caminho de liberdade, que é fonte de renovação e de diversidade.
Na clausura do Vaticano II (8 de dezembro de 1965), conquistou-se o princípio da necessidade e da possibilidade de mudança e diversificação das formas religiosas em que se encarnava a vida de comunhão com Deus, oferecida a todos na Igreja. Todos os homens, de todas as épocas e culturas, têm acesso à salvação oferecida por Cristo a toda a humanidade. E a universalidade da salvação implica a grande diversidade nos modos de a viver.
Ora, escancarada a porta à diversidade, assistiu-se, no pós-Concílio, ao fervilhar de teologias e planos de pastoral nas mais diversas direções. Foi, assim, preciso o sucessor de João XXIII, em 1963, o Cardeal João Batista Montini, com o nome de Paulo VI, defender e exigir a fidelidade à Igreja, garantindo a unidade e evitando a prevalência da diversidade e apelando ao vínculo eclesial da unidade.
Nos fins dos anos 70, era necessário encontrar novos rumos, que unificassem em profundidade a ação da Igreja. O Cardeal Albino Luciani, eleito Papa com o nome de João Paulo I, sobreviveu apenas 33 dias. Foi, então, eleito para lhe suceder o Cardeal Karol Wojtyla, com o nome de João Paulo II, inaugurando-se, em 1978, um dos mais longos pontificados da história (26 anos e meio).
Não se duvidando da fidelidade deste Papa ao Vaticano II, tornou-se evidente uma certa desconfiança em relação às novidades teológicas e pastorais do pós-Concílio e uma certa inclinação a seguir a tradição milenar da Igreja, o que levou alguns a denunciar, na Igreja, uma alegada “volta à antiga disciplina”. Porém, ninguém contesta o carisma do Papa de 58 anos. Apesar de tudo, a sua atuação é decididamente voltada para o futuro. Convicto de que se deve empenhar na realização do projeto do Vaticano II em continuidade com a Tradição, enfrenta positivamente os problemas da Igreja e de todo o mundo coevo. Nessa ótica, propõe uma retoma da Igreja a partir das origens sobrenaturais, uma “nova evangelização”. Mencionou a expressão, pela primeira vez, na visita inicial à Polónia, em 1979, e universalizou-a no discurso proferido na assembleia do CELAM, em Porto-Príncipe, em 1983. Não era uma teoria ou visão clara do que fazer, mas uma direção a seguir pela Igreja e que precisava de determinar um rumo para dar impulso à missão evangelizadora por “um novo ardor, novos métodos e novas experiências”.  
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Sua índole
A XIII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, em outubro de 2012, sobre “A Nova Evangelização para a transmissão da fé cristã”, analisou o conceito de nova evangelização.
Tanto os Lineamenta como o Instrumentum Laboris tentam caraterizar o que entender por Nova Evangelização. E a resposta encontra-se nos primeiros 6 parágrafos da Mensagem ao povo de Deus, de 26 de outubro, e nas 9 Proposições (da 4.ª à 12.ª), que compõem o 1.º parágrafo do documento intitulado “Natureza da Nova Evangelização”.
Nestes termos, reconhece-se o ensinamento do Vaticano II “como instrumento vital para a transmissão da fé no contexto da Nova Evangelização”, ou seja, a NE está em continuidade com a renovação operada pelo Vaticano II. Este reconhecimento supõe “a interpretação de que o impulso renovador do Vaticano II tem a sua origem não na Igreja nem no mundo, mas no acolhimento da Palavra, no ato de crer” – interpretação já dada no Catecismo da Igreja Católica (CIC), determinado pela Assembleia Extraordinária do Sínodo de 1985.
O CIC, para ser fiel ao Vaticano II, expõe as verdades da fé não em si mesmas, em função unicamente do seu conteúdo, como fizera, em 1566, o Catecismo Tridentino, mas na dupla perspetiva do desígnio de Deus e do ato livre de crer. Por isso, cada uma das suas partes contém uma 1.ª secção, que perspetiva a transmissão das verdades da fé nas quatro partes clássicas do Catecismo: o Creio-Cremos, o ato de crer, na 1.ª parte; o mistério da economia sacramental, na 2.ª; a vida no Espírito, para a prática dos mandamentos, na 3.ª; e o sentido da oração na vida cristã, para a 4.ª e última parte.
Como o CIC, há 20 anos, a NE está em continuidade com o Vaticano II. O 1.º parágrafo das aludidas Proposições parte das origens trinitárias da Igreja, que é participação na vida da Trindade, “fonte da Nova Evangelização” (Proposição 4), tal como o proclamou o Concílio, ao reconhecer a Igreja como “sacramento da unidade de Deus e de toda a humanidade” (LG, 1), ou seja, “o povo unido pela unidade mesma do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (LGI, 4).
Ora, deste princípio decorrem duas consequências: o primado da graça de Deus; e a universalidade da salvação. Não sendo atividade de propagação da religião católica ou de proselitismo, a NE é vocacionada a estar presente em todas as culturas (Proposição 5) como “proclamação do Evangelho (Proposição 6), na linha do “caráter missionário permanente e universal” da Igreja (Proposição 7), consistindo, assim, em “testemunhar o Evangelho no mundo secularizado em que vivemos” (Proposição 8), a partir do “primeiro anúncio proeminente e explícito da salvação” (Proposição 9), como “obrigação de todo cristão e direito inalienável de cada pessoa de conhecer Jesus Cristo e o Evangelho” (Proposição 10), o que está inseparavelmente ligado com “a familiaridade com a Escritura, a Palavra de Deus” (Proposição 11).
E, na sua Mensagem ao mundo, os Padres sinodais partem do encontro pessoal com Jesus, vivido pela samaritana para o qual convidam “todos os homens e mulheres do nosso tempo”, já que este encontro constitui a experiência fundamental da vida cristã em Igreja, a ser alimentada pela leitura frequente das Escrituras. Somos assim levados a converter-nos, deixando-nos evangelizar, consolidando a nossa adesão a Deus, por Jesus Cristo e tornando-nos capazes de a transmitir em todas as circunstâncias e ocasiões de nossa vida.
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Fundamentos e prática
Mensagem e Proposições estendem-se numa série de considerações práticas e pastorais a ter em conta na aplicação concreta do projeto neoevangelizador. O trabalho de sistematização foi deixado ao Papa, que retomaria os elementos propostos na posterior Exortação Apostólica. Entretanto, como Bento XVI renunciou a 28 de fevereiro de 2013, esse documento já não é da sua lavra, mas da do sucessor, com quem se avistaram os membros do XIII Conselho Ordinário da Secretaria do Sínodo dos Bispos a 13 de junho do mesmo ano, chefiados por D. Nikola Eterović, Secretário-Geral. E a Evangelii gaudium retoma a doutrina do Sínodo e constitui-se em programa do novo pontificado.
Alguns dados relevantes foram levantados a partir de toda a literatura sobre a NE, a começar pelo que escreveu e disse Bento XVI, em particular na proclamação do Ano da Fé; no ciclo de catequeses sobre a fé; na sua 4.ª encíclica sobre a fé, anunciada para a Páscoa de 2013 e que foi seguida, assumida, completada e publicada pelo Papa Francisco sob o título “Lumen Fidei”; na Evangelii gaudium; no discurso ao XIII Conselho Ordinário da Secretaria do Sínodo; e nas muitas ocasiões que têm suscitado o aprofundamento da reflexão sobre o tema.
Na base da NE está o encontro pessoal com Cristo, como experiência fundamental, a marcar o quadro da nossa vida quotidiana. Como efeito, somos chamados a viver sempre e em todas as circunstâncias como amigos de Jesus e a fazer dessa amizade pessoal o clima da nossa vida.
Como o cristianismo não é apenas uma filosofia de vida nem uma pura moral, mas a amizade pessoal com Jesus e com cada uma das Pessoas da Trindade, a fé é, antes de mais, o laço pessoal de adesão a Deus e à sua Palavra, no Espírito. Assim, o ato de crer, porque dom pessoal de Deus e ato de liberdade, tem prioridade sobre o conteúdo da fé e é plasmado nas expressões referentes à vivência da relação pessoal que as sustenta. Lá refere o CIC (n.º 150):
A fé é antes de tudo adesão pessoal a Deus e, inseparavelmente, mas em segundo lugar, livre acolhimento da totalidade da verdade revelada por Deus”.
Promulgando o Ano da Fé pela Carta Apostólica Porta Fidei (PF), Bento XVI convidou-nos “a compreender de modo mais profundo os conteúdos da fé e, com eles, o ato pelo qual decidimos, com plena liberdade, entregar-nos totalmente a Deus” (PF, 10). É, assim, necessário distingui-los, mas para os unir. Na verdade, há “uma unidade profunda entre o ato com que se crê e os conteúdos a que damos o assentimento. O apóstolo Paulo permite adentrar esta realidade ao escrever: “Acredita-se com o coração e, com a boca, faz-se a profissão de fé” (Rm 10,10). De facto, “o coração indica que o primeiro ato, pelo qual se chega à fé, é dom de Deus, ação da graça que age e transforma a pessoa até ao mais íntimo dela mesma” (PF, 10).
Então a NE fundamenta-se no ato de crer, que é dom de Deus, despertado pelo encontro pessoal com Jesus, que os discípulos são chamados a preparar – como Filipe e André encaminharam os gregos de que fala João, que queriam ver Jesus (12, 22). Assim, a função do primeiro anúncio, que é facilitar esse encontro, não se cinge ao querigma inicial, que deixaria de ser ativo quando começasse a catequese ou formação sistemática. Ao invés, toda a formação cristã é animada permanentemente pelo despertar do ato de crer, sem o qual não se sustenta o conteúdo da fé – isto em razão da unidade profunda que existe na fé entre o ato de crer e o conteúdo das verdades reveladas. A NE não é, pois, uma tarefa específica, nem momento determinado da transmissão da fé, mas a alma que mantém viva a catequese, o espírito em que a Palavra é acolhida, o clima em que a Palavra é, na Igreja, proclamada e ensinada.
O plano pastoral de Bento XVI, reforçado por Francisco, que denominamos de “Nova Evangelização”, na linha o Vaticano II, assumido pela Igreja nos últimos 50 anos, é o que o Espírito diz à Igreja, para permanecer sua esposa fiel num mundo que tende a esquecer Deus.
(cf O que é a Nova Evangelização? https://pt.aleteia.org/2013/02/01/o-que-e-a-nova-evangelizacao-2/; Nova Evangelização: propor Cristo de novo: http://www.diocese-porto.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=2094:nova-evangelizacao-propor-cristo-de-novo-&catid=153:textos-e-apresentacoes&Itemid=242).
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O empenho do Papa Francisco na Nova Evangelização
O empenho do Papa Francisco para a “nova evangelização” é, como se disse, o centro da entrevista do Arcebispo Dom Rino Fisichella ao Vatican News, estando necessariamente na mesa do diálogo os temas da Misericórdia e dos Santuários, que o Pontífice confiou ao seu dicastério. A entrevista com Dom Fisichella faz parte de uma série de aprofundamentos sobre a reforma da Cúria Romana e a vida nos diversos dicastérios. A primeira entrevista da série, de 10 de março passado, foi realizada com o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Dom Luis Francisco Ladaria Ferrer.
A pedido do entrevistador, Dom Fisichella forneceu uma ideia da “rotina diária” no Pontifício Conselho para a Nova Evangelização, frisando que é “extremamente dinâmica”, pois, de manhã bem cedo começam “a ver todos os assuntos em pauta, a correspondência…”. Depois, passam a receber: recebem “muitos grupos de dioceses, bispos em visita ad Limina”. E também recebem “grupos de seminaristas, de jovens: todas as realidades desde movimentos a associações que, de facto, fazem uma obra de evangelização” e, mais recentemente, “também os grupos ligados à vida dos Santuários”. E reitera que “é uma vida bem dinâmica, mas a evangelização é dinâmica”, sendo que “temos que nos adaptar à missão de evangelização da Igreja”.
Sobre o significado da nova evangelização assumido no Pontificado de Papa Francisco, em particular por meio do serviço deste dicastério, o Presidente recorda que “o programa do Papa Francisco está no documento, Evangelium gaudium, que não devemos esquecer, foi feito logo depois do Sínodo sobre “A Nova Evangelização para a Transmissão da fé”. Assim o Arcebispo crê poder “dizer com convicção que o pontificado do Papa Francisco carateriza-se por este anseio da evangelização”. E menciona muitas expressões do Papa que comprovam isso: “uma Igreja ‘em saída’, uma Igreja que é ‘um hospital de campo’…” – “expressões que levam ao coração da sua mensagem fundamental: a Igreja vive para a evangelização”. Mais: “A Igreja foi desejada por Jesus e a missão que Jesus confiou à Igreja é a de evangelizar”.
Em relação ao facto de, na primavera de 2017, Francisco ter atribuído ao Pontifício Conselho para a Nova Evangelização competência sobre os Santuários, Dom Fisichella replicou:
“Estamos a organizar-nos e já encontrámos associações responsáveis por vários Santuários. Por exemplo, já recebemos todas as delegações dos Santuários da Itália e da França, em agosto irei ao Canadá e em setembro à América Latina. Há um grande movimento porque a intuição do Papa Francisco é positiva nesse ponto de vista: fazer dos santuários lugares especiais de evangelização! Temos Santuários nos Estados Unidos, na África, na Índia… São situações que permitem exprimir – mesmo na peculiaridade que cada Santuário exprime em ligação com a própria Igreja local – a capacidade de fazer destes lugares um espaço especial, peculiar da evangelização. E isso realiza-se através do acolhimento, da celebração dos Sacramentos, do anúncio da Palavra de Deus e do testemunho da caridade.”.
Recordo que Dom Fisichella presidiu à 4.ª peregrinação aniversária (de Agosto passado) no âmbito das celebrações centenárias de Fátima.
Quanto à atuação em primeira linha do Pontifício Conselho para a Nova Evangelização durante o Jubileu da Misericórdia e à continuidade do trabalho depois das sementes plantadas no ano jubilar, explicou que aquilo que o Papa lhes confiou é continuar a espiritualidade da misericórdia”. E, nesta perspetiva, foi-lhes “confiada durante o Jubileu a competência dos chamados Congressos da Divina Misericórdia”. E há já iniciativas a este propósito. Assim, a 8 de abril, II domingo de Páscoa, o Papa celebrará na Praça de São Pedro a Divina Misericórdia. Esperam-se “todos os grupos, todos os fiéis que vivem a espiritualidade da Misericórdia”. Depois, na segunda, terça e quarta-feira, “virão a Roma cerca de 600 missionários da Misericórdia”, que estarão com o Papa durante 3 dias. Será “um momento de encontro, um momento com o qual a reflexão e a oração ajudarão a realizar de maneira ainda mais rica o seu ministério”.
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 Assim, parece concluir-se que, embora na linha da continuidade dos últimos 50 anos, Francisco reforçou a dimensão espiritual da Nova Evangelização dando a este projeto pastoral a marca da misericórdia, da ternura e da proximidade com o outro, postulando a ida dinâmica e compassiva às periferias e integrando o projeto mais na índole evangelizadora e pastoral da Igreja, tentando pôr as estruturas e movimentos em sintonia evangélica e caminhada sinodal. É a articulação da alegria do Evangelho (Evangelii gaudium) com o anúncio do mesmo Evangelho (Evangelii nuntiandi).
 2018,03.24 – Louro de Carvalho

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