terça-feira, 6 de março de 2018

Não falta a doutrina sobre o matrimónio e a família à ‘Amoris Laetitia’


Bem pelo contrário. Quem diz que a exortação apostólica pós-sinodal ‘Amoris Laetitia’, do Papa Francisco, se situa “na novidade do mundo” é Padre Sérgio Leal, da Diocese do Porto, até há pouco pároco de Santa Maria de Arrifana (2013-2016), que afirma que o documento se situa “na novidade do mundo” onde a Igreja também está e traz o encontro com a novidade que “o Evangelho deve ter para cada tempo”.
Para este sacerdote que estuda Teologia Pastoral na Universidade Lateranense, em Roma, a novidade da exortação apostólica não está propriamente no capítulo VIII, o mais discutido, sobretudo porque não se leem todos os capítulos. Segundo este pastoralista, a “grande novidade” da ‘Amoris Laetitia’ situa-se sobretudo nos capítulos II e IV, onde o Papa faz a súmula da doutrina da Igreja.
À margem do encontro/peregrinação da Federação Portuguesa dos Centros de Preparação para o Matrimónio (CPM), em Fátima, o Padre Sérgio  Filipe Pinho Leal, frisa:
Tantas vezes ouvimos dizer que falta a doutrina sobre o matrimónio e a família à ‘Amoris Laetitia’, mas ela está muito presente e muito clara”.
O pastoralista explica que, no segundo capítulo do documento pós-sinodal, o Papa se refere à “realidade da família hoje” e aos “desafios e implicações pastorais” desta mesma realidade. Neste contexto, retém como ponto fundamental “uma salutar consciência autocrítica” por parte da Igreja Católica, que apresentou o ideal de matrimónio cristão “demasiado abstrato”, sendo, antes, necessária uma “atenção à realidade concreta”. E acrescenta:
Esta atenção traz como grande novidade palavras como acolher, acompanhar e, depois, o primado da graça, uma palavra repetida vezes sem conta ao longo da exortação”.
Para o Padre Leal, a novidade da ‘Amoris Laetitia’ não está “na nota 351 do capítulo VIII” mas em “dizer de um modo novo o que sempre foi dito” na linguagem de hoje e na insistência na necessidade de “caminhar juntos, acolher, acompanhar, integrar.”.
É óbvio, não configurando o documento um novo diploma normativo, o sacerdote considera, em relação à “integração plena” das pessoas que “se encontram em situações de fragilidade”, que o Papa se coloca “muito mais na ótica da questão”, para depois cada Conferência Episcopal, cada diocese encontrar o “modo de o fazer”. No entanto, assinala com toda a clareza:
A novidade do capítulo VIII tem sido muito mais proveitosa em reflexões de algumas conferências episcopais, dioceses, quer de Portugal quer de outras, onde temos encontrado propostas interessantes traduzidas na realidade concreta e que importa reter”.
Segundo o pastoralista, a exortação papal apresenta como “primeira grande implicação” para os CPM a necessidade de se conhecer a “realidade concreta” para que os noivos e esposos cristãos façam “uma experiência de encontro com Jesus Cristo”. Trata-se de “um grande desafio, quer de preparação imediata, como o percurso que o CPM propõe, mas sem esquecer uma preparação mais remota”.
O Padre Leal pensa necessário situar o matrimónio e a família no âmbito da evangelização, da cultura, e procurar habitar o sentido do humano, um terreno antropológico que permita dialogar “com crentes e não crentes” e dizer que “a proposta de matrimónio cristão é para todos os homens e mulheres”. E encontra outro “desafio muito grande para a Igreja contemporânea” na ‘Amoris Laetitia’ que é o de conseguir “percorrer um terreno antropológico” que permita ser escutado e compreendido, o que exige uma “mudança de linguagem”.
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Por seu turno, Dom Francisco Senra Coelho, vogal da CELF (Comissão Episcopal Laicado e Família), disse que as famílias cristãs devem apresentar-se como alternativa às “propostas opacas” da sociedade atual. Com efeito, na Eucaristia a que presidiu na Basílica da Santíssima Trindade, em Fátima, durante a peregrinação dos Centros de Preparação para o Matrimónio, este Bispo Auxiliar de Braga sustentou:
A experiência do encontro com a beleza do amor leva-nos a uma interioridade acompanhada e partilhada, respondendo às propostas opacas que a superficialidade do mundo propõe com a bela experiência do encontro interior que vivemos”.
O Bispo titular de Plestia alertou que, sem vida interior, “não haverá testemunho” e o Evangelho propõe que se arranquem “todas as máscaras” e se limpe “o santuário íntimo, a casa e a família, de tudo o que é fachada e mera aparência exterior”.
Neste encontro-peregrinação – em reflexão, partilha e oração – que congregou, nos dias 3 e 4 de março, a Federação Portuguesa dos Centros de Preparação para o Matrimónio para Fátima, em torno do tema ‘Amar e semear – Caminhada em Matrimónio’, o vogal da CELF frisou que o Matrimónio é “sacramento do amor de Deus à humanidade e à sua Igreja”, devendo os casais cristãos saber amar os irmãos com “o amor com que são amados por Deus”. E sublinhou:
A grande questão da Evangelização coloca-se na qualidade dos testemunhos de fé pessoais e comunitários”.
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Além da homilia em referência, Dom Francisco José Villas-Boas Senra de Faria Coelho também apresentou uma conferência sobre a missão evangelizadora das famílias cristãs, na 48.ª peregrinação e assembleia nacional da Federação Portuguesa dos CPM.
No Centro Pastoral Paulo VI, o prelado assinalou que “não se poderá fazer” a História da Família Cristã em Portugal, nos últimos 50 anos, “sem uma incontornável referência” ao serviço do CPM na preparação próxima dos noivos para o matrimónio. Neste contexto, destacou a importância da fidelidade dos CPM em Portugal ao “carisma fundacional” do movimento, “nomeadamente na vivência testemunhal”; e a “vitalidade” que demonstra ao “assumir a sua renovação”, “abrindo-se às oportunas e ricas sugestões do Magistério do Papa Francisco” e dos sinais dos tempos.
E, no final da sua preleção, relevou a importância de oferecer aos recém-casados “um acompanhamento na amizade da partilha”.
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Também o Presidente da Federação Portuguesa dos Centros de Preparação para o Matrimónio (CPM) sublinhou o trabalho de ajuda aos noivos a assumir um projeto sério de vida e o coletivo que lidera quer reforçar o seu trabalho junto dos noivos católicos, para “mostrar a felicidade de viver em casal”. A este respeito, Joaquim Valente declarou à agência Ecclesia, em Fátima:
A metodologia é pô-los a namorar sobre as coisas, refletir com orientação mínima, deixar que cresçam e caminhem a preparar bem o projeto de vida que estão a abraçar”.
O Presidente dos CPM frisou que “é frequente ouvir” as pessoas dizer que querem amar para toda a vida e que “acreditam que é importante”. Depois, constatou e exortou:
Podem viver há 10, 15 anos, têm filhos, mas agora resolveram casar pela Igreja, celebrar o sacramento do Matrimónio. Que o façam de forma a melhorar a sua relação e ter uma vida intima de entrega, de amor e doação, com respeito pelo outro e na família, para que possamos ter melhor sociedade.”.
Os responsáveis dos CPM dizem que, desde 2000, há menos casamentos religiosos, mas “mais sérios”, pois todos os anos têm quatro mil casais em formação e cerca de 1200 formadores.
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Por sua vez, Adelino Cunha proferiu uma substanciosa conferência com o mote ‘Comunicar em Casal/Comunicar com os noivos’. E este conferente disse à agência Ecclesia que “há muitas razões” para a falta de comunicação, por exemplo numa refeição, com cada um concentrado em si ou no smartphone/tablet. E desenvolveu:
Muitas vezes vemos pessoas deligadas, sem luz, apagadas, pode ter a ver com a preocupação que tem cada um. Hoje em muitos casais os dois trabalham e estão assoberbados, os seus emails, o que têm de tratar, podem estar chateados, ter de estar ali por uma questão social.”.
O consultor e formador especializado em PNL (programação neurolinguística), relacionada com treino mental (alguém que aprendeu com um dos fundadores da PNL - Dr. Richard Bandler), refere que é preciso conhecer os sistemas de comunicação da outra pessoa, que pode ser o “visual, auditivo e sinestésico, do sentir”. para se saber “qual é a forma que o cérebro tem de processar informação” e se é preciso “mudar o paradigma”.
Segundo este perito, é importante haver “liderança pelo exemplo”, para que as famílias não se tornem “hotéis com wifi – pai de um lado, mãe no telemóvel, filho na playstation e a filha na internet” – e se encontrem periodicamente para as refeições porque “têm uma cozinha comum”. Ao invés, sustenta que “uma família tem de estar junta, fazer atividades juntas; é como uma equipa que é um conjunto de pessoas com objetivo comum”.
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Por fim, convenhamos em atender ao brado do Cardeal Kasper, um dos teólogos purpurados de referência, bem elogiado pelo Papa Francisco: “Fiéis compreenderam Amoris laetitia, basta de acusações de heresia”!
Não se fez ouvir o purpurado em Fátima no encontro-peregrinação dos CPM, mas no Vaticano. Com efeito, hoje, na Rádio Vaticana, foi apresentado seu último livro intitulado “A Mensagem de ‘Amoris laetitia’: uma discussão fraterna”, vindo o cardeal a afirmar que a doutrina da indissolubilidade do matrimónio não foi colocada em discussão pelo Papa Francisco.
Por ocasião dos seus 85 anos de idade, celebrados ontem, dia 5 de março, o Cardeal Walter Kasper, Presidente emérito do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos apresentou hoje, nesta terça-feira dia 6, o predito livro.  
Frisando, nas primeiras páginas, que a ‘Amoris laetitia não é uma doutrina nova, mas uma renovação criativa da tradição, agora explica o significado das suas afirmações:
A tradição não é um lago estagnado, mas é como uma fonte, um rio, uma coisa viva. A Igreja é um Organismo vivo. Desta forma, deve-se inserir também a sempre válida tradição católica na atual situação. Eis o sentido da atualização sobre a qual havia falado o Papa João XXIII.”.
Quanto ao subtítulo do livro, “uma discussão fraterna”, diz que não se deve ter medo das discussões, porém, acrescenta que “também não deve haver sinais de heresia”. E, agora, ante as críticas de heresia vociferadas por alguns contra o Papa após a publicação do documento pós-sinodal 'Amoris laetitia', Walter Kasper esclarece, relevando a importância da discussão em Igreja, mas apela ao cuidado em relação à superficial acusação de heresia. Eis a sua resposta:   
 Primeiro que tudo, quero dizer que os debates na Igreja são necessários. Não devemos temer as discussões. Mas há um debate muito forte com a acusação de heresia. A heresia é um comportamento que nega um dogma proposto. A doutrina da indissolubilidade do matrimónio não foi colocada em discussão pelo Papa Francisco. Antes de afirmar que se trata de heresia, precisaria de perguntar-se sempre como o outro entende a nossa afirmação. Precisaria de pressupor-se que o outro seja católico e não ao contrário”.
Depois, vem a nota 351 deAmoris laetitia’. E a Rádio Vaticano pergunta:
Precisamente a respeito da ‘nota 351”, sobre a aproximação dos divorciados e recasados aos Sacramentos, o senhor afirma em sua obra que tal nota deveria ser vista à luz do Decreto sobre a Eucaristia do Concílio de Trento. Porquê?”.
E Kasper responde escudado na complexidade da noção de pecado e na distinção entre nível objetivo e nível subjetivo do ato de pecado, retirando Francisco de qualquer nuvem de heresia:
O Concílio de Trento diz que, se não houver pecado grave, mas de natureza venial, a Eucaristia o perdoa. Pecado é um termo complexo; não é apenas um conceito objetivo, mas subjetivo, ou seja, deve levar em consideração a intenção ou a consciência da pessoa:  a avaliação de um pecado grave ou venial deve ser feita no âmbito do Sacramento da Penitência. Se for somente um pecado venial, a pessoa pode ser absolvida e participar do Sacramento da Eucaristia. Logo, não vejo motivo de dizer que esta seja uma heresia por parte do Papa Francisco.”.
No atinente à sua opinião sobre o maior contributo que o documento ‘Amoris laetitiapode dar às famílias de hoje e como pode ser inserido na vida diária das famílias, o Cardeal é realista:
Conheço algumas paróquias, mesmo aqui em Roma, que organizam encontros com casais que se preparam para o matrimónio. Muitos deles leem alguns textos desta exortação pós-sinodal. A linguagem deste documento é bastante clara e todo cristão pode entendê-la. Muitos estão satisfeitos com este documento porque dá espaço à liberdade, mas também interpreta a substância da mensagem cristã em linguagem compreensível. Logo, o Povo de Deus entende e o Papa está em ótima sintonia com ele.”.
Finalmente, o entrevistador evocou a atitude de Francisco, o qual, da primeira vez que presidiu como Papa à recitação do Angelus na Praça de São Pedro, exprimiu apreço pelo livro de Kasper intitulado “Misericórdia”. Dessa breve alocação transcrevem-se alguns segmentos: 
Nestes dias, pude ler o livro de um Cardeal – o Cardeal Kasper, um teólogo estupendo, um bom teólogo – sobre a misericórdia. Aquele livro fez-me muito bem (Não julgueis que estou a fazer publicidade dos livros dos meus Cardeais, porque não é isso…!). É que [o livro] me fez mesmo bem, muito bem... O Cardeal Kasper dizia que a melhor sensação que podemos ter é sentir misericórdia: esta palavra muda tudo, muda o mundo. Um pouco de misericórdia torna o mundo menos frio e mais justo. Precisamos de compreender bem esta misericórdia de Deus, este Pai misericordioso que tem tanta paciência... Recordemos o profeta Isaías, quando afirma: mesmo que os nossos pecados fossem vermelhos escarlate, o amor de Deus torná-los-ia brancos como a neve. Como é bela a misericórdia! Não esqueçamos esta verdade: Deus nunca Se cansa de nos perdoar; nunca! […] O problema está em nós que nos cansamos e não queremos, cansamo-nos de pedir perdão. Ele nunca se cansa de perdoar, mas nós às vezes cansamo-nos de pedir perdão. Não nos cansemos jamais, nunca nos cansemos! Ele é o Pai amoroso que sempre perdoa, cujo coração é cheio de misericórdia por todos nós. E, por nossa vez, aprendamos também a ser misericordiosos para com todos. Invoquemos a intercessão de Nossa Senhora que teve nos seus braços a Misericórdia de Deus feita homem.”.
Sobre tudo isto, a Rádio Vaticano pergunta ao Cardeal porque é assim tão importante a misericórdia no Pontificado deste Papa, sobretudo em relação ao mundo das famílias.
E Walter Kasper discorre:
Hoje, vivemos em um período de violências inéditas no mundo. Muitas pessoas são feridas. Também na vida matrimonial há tantas feridas! As pessoas precisam de misericórdia, de empatia, da simpatia da Igreja. Acho que a misericórdia seja a resposta aos sinais dos tempos”.
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Enfim, em vez de estarmos predispostos a fazer juízos sobre os outros, designadamente sobre os casais, importa que os agentes da Pastoral em Igreja invistam cada vez mais na preparação formativa para o matrimónio e vida de família e no acompanhamento e apoio às famílias em crise e em dificuldade. Mais justiça que misericórdia derive da misericórdia. E que, mais do que uma atitude hipercrítica com base no que lemos ou ouvimos pela rama, nos habituemos a ler bem e a ouvir até ao fim. Quanto ao mais, que todos procurem e tenham a felicidade com base em ter cada um boa relação consigo, com Deus, com os outros e com o mundo.
2018.03.06 – Louro de Carvalho


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