quinta-feira, 15 de março de 2018

A Boa Nova da missão do verdadeiro Messias


Rumo à glorificação do Filho do homem
A Liturgia da Palavra do 5.º domingo da Quaresma, Ano B, evidencia a preocupação de Deus em facultar-nos o caminho da salvação. Para correspondermos a essa divina preocupação, temos de pautar a vida pela escuta da Palavra de Deus, perscrutando com atenção o projeto de Deus, e pela doação aos irmãos. A 1.ª leitura (Jr 31,31-34) mostra Jahwéh a propor a Israel uma nova Aliança pela qual Deus mude o coração do Povo, pois só com um coração transformado o homem será capaz de pensar, decidir e agir em consonância com as propostas de Deus. Por sua vez, a 2.ª leitura (Heb 5,7-9) apresenta Jesus, o sumo-sacerdote da nova Aliança, que Se solidariza com os homens e lhes aponta a rota da vida definitiva – a mesma que Jesus seguiu e que postula o diálogo com Deus, a descoberta dos seus desafios e propostas, a obediência radical ao seu projeto. E a perícopa do Evangelho proposta para esta Liturgia (Jo 12,20-33) – eco de Nm 21,9 e Jo 3,14-15 – convida-nos a olhar para Jesus, aprender com Ele e segui-Lo no rumo do amor radical, do dom da vida, da entrega total a Deus e aos irmãos. A via da cruz, aos olhos do mundo, é fracasso e morte, mas, de verdade, é desse caminho de amor e de doação que brota a vida verdadeira e eterna que Deus nos oferece.
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A promessa de uma Aliança nova
No texto de Jeremias acima referenciado, fica patente a promessa do Senhor de estabelecer com Israel uma nova Aliança. A aliança sinaítica impusera obrigações escritas em tábuas de pedra, obrigações sentidas como imposição vinda de fora, que tinha de ser recordada reiteradamente. Assim, a história de Israel era tendencialmente a história das infidelidades do povo ao pacto sinaítico. A aliança nova será diferente porque as suas cláusulas serão escritas no coração, vindo todos a conhecer as suas obrigações sem a necessidade de ensino ou lembrança. E, sem coação externa, todos serão interiormente movidos a pôr em prática os preceitos da Lei gravada no coração, que não pode empedernir-se. Esta promessa inteiramente gratuita atinge-nos mediante o Messias, por quem nós invocamos o perdão de Deus e a graça de um coração novo.   
Jeremias, profeta nascido em Anatot por volta de 650 a.C., exerceu a missão profética desde 627/626 a.C. até depois da destruição de Jerusalém pelos Babilónios (586 a.C.). O cenário da sua atividade é, em geral, o reino de Judá (mormente a cidade de Jerusalém). A 1.ª fase da pregação de Jeremias abrange parte do reinado de Josias, rei preocupado com a defesa da identidade política e religiosa do Povo de Deus, pelo que leva a cabo uma profunda reforma religiosa, destinada a banir do país o culto aos deuses estrangeiros. A mensagem de Jeremias, nesta fase, sintetiza-se no constante apelo à conversão, à fidelidade a Jahwéh e à Aliança. No entanto, em 609 a.C., Josias é morto em combate contra os egípcios, sucedendo-lhe Joaquim no trono, pelo que a 2.ª fase da atividade profética de Jeremias abrange o tempo do reinado de Joaquim (609-597 a.C.), o qual, sendo um tempo de desgraça e de pecado, constitui uma fase de incompreensão e sofrimento para Jeremias. E o profeta ergue-se a criticar as injustiças sociais (algumas fomentadas pelo próprio rei) e a infidelidade religiosa (concretizada, sobretudo, na busca das alianças políticas: por exemplo, na procura da ajuda dos egípcios, que significava não confiar em Deus e, em contrapartida, colocar a esperança do Povo em exércitos estrangeiros). Jeremias está convicto de que Judá ultrapassou todas as medidas e que está iminente uma invasão babilónica que castigará os pecados do Povo de Deus. É, sobretudo, isso que ele diz aos habitantes de Jerusalém. E as suas previsões funestas concretizam-se: em 597 a.C., Nabucodonosor invade Judá e deporta para a Babilónia parte da população de Jerusalém. E, no trono de Judá, senta-se Sedecias (597-586 a.C.), sendo este reinado o tempo em que se desenrola a 3.ª fase da missão de Jeremias. Após anos de submissão à Babilónia, Sedecias experimenta a política de alianças com o Egito. E Jeremias discorda de que se confie em exércitos estrangeiros mais do que em Jahwéh. Mas nem o rei, nem os notáveis prestam atenção às advertências do profeta.
Em 587 a.C., Nabucodonosor cerca Jerusalém. Porém, um exército egípcio, vindo em socorro de Judá, faz retirar os babilónios. Face à euforia nacional, Jeremias anuncia o recomeço do cerco e a destruição de Jerusalém (cf Jr 32,2-5). Acusado de traição, o profeta é preso (cf Jr 37,11-16) e corre perigo de vida (cf Jr 38,11-13). E, enquanto ele prega a rendição, Nabucodonosor apossa-se de Jerusalém, destrói a cidade e deporta a sua população para a Babilónia (586 a.C.).
Embora seja impossível dizer com segurança o contexto em que surgiu essa mensagem que o trecho proposto para hoje apresenta, alguns comentadores dizem tratar-se dum oráculo situável na 1.ª fase da atividade profética de Jeremias (reinado de Josias) e dirigido aos israelitas do Reino do Norte. Seria a mensagem de esperança a animar esse povo que, há cerca de cem anos, tinha perdido a independência e estava sob o domínio assírio. Para outros, contudo, o texto será da época de Sedecias, entre a primeira e a segunda deportação do Povo para a Babilónia (597-586 a.C.) – época em que Jeremias descobre perspetivas teológicas novas e passa a refletir sobre um tempo novo que Deus oferecerá ao seu Povo: após a catástrofe, é possível recomeçar, pois Deus tenciona fazer uma nova Aliança com Judá. É pois, verdade que Deus está disposto a firmar nova Aliança com o seu Povo, mas diferente da sinaítica. Esta foi uma Aliança externa, gravada em pedra e que o Povo nunca interiorizou. Apresentava leis que o Povo devia cumprir; mas eram leis externas, que não atingiram o coração do Povo nem lhe mudaram substancialmente o estilo de vida. Por isso, o Povo de Deus continuou em trilhos de infidelidade a Deus, injustiça, autossuficiência, pecado. O Povo aderiu à Aliança mais com a boca do que com o coração.
Sem a adesão efetiva do coração, era impossível manter a fidelidade aos preceitos e exigências da Aliança. Ora, verificada a falência daquela Aliança, Deus seguirá outro caminho e proporá a nova Aliança (em todo o AT, esta expressão, familiar aos cristãos só surge aqui) que se estribe noutras bases. Em concreto, Deus intervirá para gravar as suas leis e preceitos no coração, no íntimo de cada membro do Povo. É o anúncio duma nova etapa totalmente decisiva que inaugurará os últimos tempos. É uma novidade essencial à eficácia da economia da Salvação.
Na antropologia semita, o coração é, a par da sede dos sentimentos, a sede dos pensamentos, projetos, decisões e ações do homem. É o centro do ser, é a consciência onde o homem dialoga consigo mesmo, toma as suas decisões, assume as suas responsabilidades. Portanto, a iniciativa de Deus possibilitará que as exigências da Aliança sejam interiorizadas por cada membro do Povo de Deus e que estejam presentes nessa sede onde nascem os pensamentos, se definem os valores, se decidem as ações. Com um “coração” assim transformado (que pensa, decide e age segundo os esquemas e a lógica de Deus), cada crente viverá na fidelidade à Aliança, na obediência aos mandamentos, no respeito pelas leis, no amor a Jahwéh. E Jahwéh será, efetivamente, o Deus de Israel; Israel será, verdadeiramente, o Povo que vive de acordo com as propostas de Deus e que testemunha Deus no meio do mundo. Com este género de relação, Jahwéh jamais será um “desconhecido” para o seu Povo. Então, Entre Deus e Israel será possível o estabelecimento de uma relação pessoal (e não apenas de grupo, de povo) de proximidade, intimidade, familiaridade. A comunhão com Jahwéh não será uma lição dificilmente aprendida, mas algo de inato e natural, que brota dum coração de pessoa em permanente diálogo com Deus.
Na última frase do texto, Deus anuncia o perdão para as faltas do seu Povo: um perdão total e sem reservas, que é o primeiro resultado desta nova relação que se estabelece entre Deus e o seu Povo. Também aqui se manifesta o “amor eterno” e pessoal de Deus.
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“No sofrimento aprendeu a obediência”
A perícopa de hoje da Carta aos Hebreus evoca a oração do Getsémani (cf Mc 14,36) e o brado do abandono no Calvário (cf Mc 15,34). Jesus, o Filho de Deus, partilhou connosco a angústia da morte revelando-nos a compaixão divina. O grito angustiado de Jesus nasce da fé “naquele que o podia livrar da morte”. “E foi atendido”, mas não como o esperaríamos. Deus não o poupou ao sofrimento nem o preservou da morte. O modo como o Pai atendeu estas preces foi a glorificação do Filho mediante o amor total e incondicionado mostrado na prova suprema da Paixão e da Morte. Então, Jesus atingiu a plenitude da capacidade de mediação sacerdotal.
A Carta aos Hebreus é um sermão escrito de autor anónimo cujo destinatário se desconhece (o título provém das referências veterotestamentárias e ao ritual dos “sacrifícios” apresentados). Terá sido dirigida a uma comunidade cristã constituída maioritariamente por cristãos vindos do judaísmo, o que não é totalmente seguro, pois o Antigo Testamento era património comum, assumido por todos os cristãos (tanto os vindos do judaísmo como os vindos do paganismo). Trata-se, porém, de cristãos em situação difícil, expostos a perseguições por viverem em ambiente hostil à fé. E são cristãos que se deixam vencer pelo desalento: perdido o fervor inicial, cedem às seduções de doutrinas não coerentes com a fé recebida dos apóstolos. Assim, o escopo do autor é incitar a vivência do compromisso cristão e levar os crentes a crescer na fé. Para tal, expõe o mistério de Cristo do ângulo do sacerdote da Nova Aliança, a linha de rumo do Tempo Novo, e recorda a fé da Igreja.
O trecho proposto para hoje integra uma longa reflexão (cf Heb 3,1-9,28) sobre o sacerdócio de Cristo. Em concreto, a perícopa de Heb 5,1-10 aborda o sacerdócio de Cristo por comparação com o sumo-sacerdote do Antigo Testamento, elencando uma série de aspetos semelhantes e de opostos. Na perspetiva do autor, o sumo-sacerdote é um homem que, pela sua humanidade e fragilidade, é capaz de entender os pecados dos seus irmãos (“pode compadecer-se dos ignorantes e dos que erram, pois também ele está cercado de fraqueza” – Heb 5,2); oferece sacrifícios, “tanto pelos seus pecados, como pelos do povo”, para refazer a comunhão entre Deus e o homem (Heb 5,3); e é chamado por Deus a desempenhar esta missão, tal como sucedeu com o sacerdote Aarão (Heb 5,4). São três elementos bem patentes em Cristo, o sumo-sacerdote da nova Aliança.
Cristo, apesar de Filho de Deus, foi o homem que viveu entre os homens e experimentou a fragilidade e a debilidade deles. Chorou, sofreu, sentiu amargura, angústia e medo ante a morte, como qualquer homem. Por isso, é o sumo-sacerdote, capaz de compreender as fraquezas e as fragilidades dos homens. A partir dessa compreensão, será também capaz de dar-lhes remédio.
O seu sacerdócio realizou-se no constante diálogo com o Pai. Pela oração intensa, Ele procurou sempre, discernir e cumprir a vontade do Pai. Mesmo nos momentos mais duros e difíceis, escutou o Pai, manteve a adesão incondicional ao Pai, manifestou total disponibilidade para cumprir o projeto salvífico que o Pai queria, por Ele, oferecer aos homens. Deste modo, Jesus, na oração e pela oração, converteu toda a sua vida numa oferenda ao Pai, num “sacrifício” de doação ao Pai. Ao fazer da sua vida um dom, entrega total, “sacrifício”, Ele realizou o projeto de refazer a comunhão entre Deus e os homens. Pela obediência, ensinou os homens a viver em comunhão total com Deus, a cumprir o projeto de Deus e a amar os irmãos até ao dom total da vida. Pela obediência, eliminou o egoísmo e o pecado que afastavam os homens de Deus. Sendo, pela comunhão total com o Pai e com os homens, o modelo de Homem Novo, torna-se para quantos escutam a sua mensagem e O seguem “fonte de salvação eterna” (v. 9).
Jesus Cristo é, portanto, o sumo-sacerdote da nova Aliança. Conhece e entende as fragilidades dos homens e está apto a oferecer-lhes a ajuda necessária para que possam alcançar a salvação. Cumprindo integralmente o projeto do Pai, mostra aos homens que a via da salvação está na comunhão com Deus, na obediência radical ao projeto de Deus e no dom da vida aos irmãos. Jesus é, pois, um sumo-sacerdote que proporciona eficazmente aos homens a salvação, levando-os ao encontro de Deus e da vida plena.
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“E, quando Eu for elevado da terra, atrairei todos a Mim”
Este episódio em que Jesus anuncia a sua hora da Paixão e a glória da cruz – a Páscoa do Senhor, apenas relatado no Evangelho de João (como chave de interpretação da missão do Salvador), identifica-nos com os “gregos” que queriam ver Jesus. Todos buscamos na vida a felicidade, o amor, a esperança, as respostas às nossas questões, a verdade, a beleza. Buscamos a referência que sirva de orientação para a nossa vida, que aclare o seu horizonte, que estabeleça o rumo certo para a felicidade. Ora, essa referência é Jesus, que nos mostra o caminho da verdadeira felicidade. Este episódio lança-nos o desafio: se alguém nos pede o que os “gregos” pediram a Filipe (“Queremos ver Jesus”), temos de saber satisfazer-lhe esse pedido. Dito de outro modo: as nossas palavras, atitudes e vida têm de suscitar nos outros o desejo de conhecer Jesus. Porém, ter a capacidade para levar outros a ver Jesus exige uma vida vivida, em todos os momentos e circunstâncias, com a coerência com que Jesus viveu.  
O trecho evangélico apresenta um aparente paradoxo: perder a vida por amor é o modo de a ganhar para os valores fundamentais e definitivos; dar a vida é o melhor modo de a receber. Ora, captar e entender esta aparente contradição (perder-ganhar, morrer-viver, dar-receber) é descobrir a Boa Nova do verdadeiro Messias. A morte de Jesus é a nossa vida, é um convite a vivermos dum modo novo, sem egoísmo, ajudando a pôr fim a todas as mortes gratuitas. Se vivermos com a coerência de Jesus, seremos luz que não se apaga, Páscoa que não passa, meta de todos os caminhos, Ressurreição. A morte de Jesus na cruz é o resultado da sua coerência de vida. A morte é para Ele e para nós a chave da verdadeira vida. A glória não está na morte, mas na vida que nasce da morte, como Lázaro cuja morte foi ensejo de glorificação para o Filho de Deus. A morte é aceite na linha da metáfora do grão de trigo cuja morte é condição da frutificação.
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A ação referida nesta perícopa evangélica situa-nos em Jerusalém, provavelmente no próprio dia da entrada solene de Jesus na cidade santa (cf Jo 12,12-19). As multidões “que tinham chegado para a Festa” haviam aclamado Jesus como o rei/messias, encenando um rito de entronização e ovacionando Jesus como “o que vem em nome do Senhor, o rei de Israel” (Jo 12,12-13). Segundo João, as pessoas colheram ramos de palma e saíram ao encontro dele – gesto ligado, no folclore religioso judaico, à Festa das dos Tabernáculos ou das Tendas, a festa que celebrava o tempo em que os israelitas viveram em tendas, pela caminhada pelo deserto, após a libertação do Egito. O autor sugere, assim, que está iminente o processo de libertação definitiva do Povo de Deus, apresentando uma chave de leitura para entender a morte próxima de Jesus. No quadro entram alguns gregos que tinham subido a Jerusalém para adorar e queriam ver Jesus. Aqui, “gregos” significará “não judeus”. Serão prosélitos (estrangeiros convertidos ao judaísmo) ou simpatizantes do judaísmo. Aqueles “gregos” dirigem-se a Filipe, de Betsaida, cidade situada na tetrarquia de Herodes Filipe e que já fora do território judeu propriamente dito. Registe-se que “Betsaida” significa “lugar de pesca” (alusão à missão dos discípulos de “pescadores de homens” – Mc 1,17). Filipe vai falar com André a propósito do pedido e os dois apresentam o caso a Jesus.
A história dos “gregos” que querem “ver Jesus” serve de pretexto a João para uma oportuna catequese sobre o que significa “ver Jesus”. Trespassado na cruz é causa de Salvação!
Os “gregos”, que vieram a Jerusalém para “adorar” a Deus no Templo, quiseram encontrar-se com Jesus, conhecer Jesus e o seu projeto. Com isto, sugere-se que o Templo e o culto antigo já não são os lugares onde o homem encontra Deus e a salvação; agora, quem está interessado em encontrar a verdadeira libertação deve dirigir-se a Jesus. Por outro lado, a salvação/libertação que Jesus trouxe tem um alcance universal e destina-se a todos os homens – mesmo aos que vivem fora das fronteiras físicas de Israel. Aqueles “gregos” não se dirigem diretamente a Jesus, mas aos discípulos, o que pode configurar um aceno à responsabilidade missionária da comunidade, encarregada da missão de levar Jesus a todos os povos da terra. O facto de Filipe falar primeiro com André e só depois irem os dois contar a Jesus o que se passa releva a dificuldade das primeiras comunidades cristãs em darem o passo para a evangelização dos pagãos. João sugere que a decisão de integrar os pagãos na comunidade não é uma decisão individual, mas decisão que a comunidade tomou após consulta ao Senhor.
Mais: quem vai ao encontro de Jesus não encontrará o messias aclamado pelas multidões, com a preocupação de gerir a carreira, manter a todo o custo o seu clube de fãs, fazer prodígios de equilíbrio para não desagradar às autoridades e não arruinar as hipóteses de êxito. No horizonte próximo de Jesus, está a cruz (a “hora”). Está cônscio de que vai sofrer morte violenta e maldita, e de que todos o abandonarão como um fracassado, mas entrega-se voluntariamente. Paradoxalmente, está cônscio de que nessa cruz se manifestará a glória do Filho do Homem. A sua morte não é um momento isolado, mas o culminar dum processo de doação total de Si, que se iniciou quando “o Verbo Se fez carne e montou a sua tenda no meio dos homens” (Jo 1,14); é o último ato duma vida de entrega total ao projeto de Deus, feita amor até ao extremo. Durante a sua existência terrena, Jesus procurou, em cada palavra e gesto, tornar o homem livre de todas as opressões, dotá-lo de dignidade, dar-lhe a vida em plenitude. Assim, suscitou o ódio do sistema opressor, interessado em manter o homem escravo. Sem se assustar com a via da morte, cumprindo até ao fim o projeto libertador de Deus em prol do homem, Jesus levou avante a luta pela libertação da humanidade. A sua morte é a consequência do seu confronto com as forças da morte que dominavam o mundo. Por outro lado, dando a vida por amor, deixa aos discípulos a última e suprema lição, a lição que eles devem aprender. Com a morte de Jesus na cruz, os discípulos aprendem o amor até ao extremo, o dom total da vida, a entrega radical ao projeto de Deus e à libertação dos irmãos.
Deste “dom” de Jesus nasce uma nova humanidade, uma humanidade que Jesus libertou da opressão, da injustiça, dos mecanismos que geram sofrimento e medo, uma humanidade que venceu o egoísmo e aprendeu que a vida é para ser dada, sem limites, por amor. Não há dúvida de que o dom da vida dá abundantes frutos de vida. Na cruz de Jesus manifesta-se, portanto, o projeto libertador de Deus para os homens. E quem quiser conhecer Jesus deve olhar para esse Homem que põe totalmente a sua vida ao serviço do projeto de Deus e que morre na cruz para ensinar aos homens o amor sem limites. Deve aprender a verdade que, para Jesus, é evidente: não se pode gerar vida sem entregar a própria vida. A vida nasce do amor que se dá até às últimas consequências. Só o amor como dom total é fecundo e gerador de vida (“se o grão de trigo caído na terra não morrer, permanece só; se morrer, produz muito fruto” – v. 24). Dizia Santo Agostinho: “Semeava Cristo e germinava a Igreja. Caiu o grão, ressuscitou o grão e o grão subiu ao céu, onde está a multidão dos grãos.” (S. Agostinho, Sermão 335 E [= LAMBOT 7], 2). Quem se ama a si mesmo e se fecha no egoísmo, quem apenas aposta em defender os seus interesses e perspetivas, perde a oportunidade de chegar à vida verdadeira, à salvação. O apego egoísta à própria vida levará ao medo de agir, à dificuldade em comprometer-se, ao silêncio face à injustiça – a uma vida de medo e de opressão, infecunda e que não vale a pena ser vivida. Ao invés, quem é livre do medo, se esquece dos seus próprios interesses e seguranças e se compromete com a luta pela justiça, pelos direitos, pela dignidade e liberdade do homem, quem ama tanto os outros que entrega a sua vida por eles, dará frutos de vida e viverá uma vida plena, que nem a morte calará.
Jesus viveu esta dinâmica da vida dada por amor, sem medo de enfrentar esse sistema de opressão e de injustiça que pensava poder manter os homens escravos através do medo da morte. Jesus está livre desse medo e, portanto, está livre para amar totalmente. Àqueles que querem “ver Jesus”, Ele propõe o mesmo caminho – o caminho do amor e da entrega total. Ser discípulo é colaborar com Jesus na libertação dos homens que ainda são escravos, mesmo que isso signifique enfrentar as forças de opressão do mundo e enfrentar a própria morte (“se alguém Me quer servir, siga-Me” – v. 26a). Quem aceitar esta proposta permanece em Jesus, entra na comunidade de Deus (v. 26b). Pode ser desprezado pelo mundo, mas será honrado por Deus e acolhido como seu filho (v. 26c).
E o texto termina com a voz do céu que glorifica Jesus (v. 28-32). É o modo de mostrar que a via da cruz, assumida por Jesus tem o selo de Deus. A “voz do céu” sela a verdade do estilo de vida proposto por Jesus é verdadeiro e assegura que Deus lhe garante a autenticidade. Confirma, assim, aos discípulos que dar a vida por amor não é via de fracasso e morte, mas de glorificação e vida, liberdade e vitória. Pela verdade, tornamo-nos livres e pelo sinal da cruz venceremos!
2018.03.15 – Louro de Carvalho

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