Rumo
à glorificação do Filho do homem
A Liturgia da Palavra do 5.º
domingo da Quaresma, Ano B, evidencia a preocupação de Deus em facultar-nos o
caminho da salvação. Para correspondermos a essa divina preocupação, temos de
pautar a vida pela escuta da Palavra de Deus, perscrutando com atenção o
projeto de Deus, e pela doação aos irmãos. A 1.ª leitura (Jr 31,31-34) mostra Jahwéh a propor a Israel
uma nova Aliança pela qual Deus mude o coração do Povo, pois só com um coração
transformado o homem será capaz de pensar, decidir e agir em consonância com as
propostas de Deus. Por sua vez, a 2.ª leitura (Heb
5,7-9) apresenta
Jesus, o sumo-sacerdote da nova Aliança, que Se solidariza com os homens e lhes
aponta a rota da vida definitiva – a mesma que Jesus seguiu e que postula o
diálogo com Deus, a descoberta dos seus desafios e propostas, a obediência
radical ao seu projeto. E a perícopa do Evangelho proposta para esta Liturgia (Jo 12,20-33) – eco de Nm 21,9 e Jo 3,14-15 –
convida-nos a olhar para Jesus, aprender com Ele e segui-Lo no rumo do amor
radical, do dom da vida, da entrega total a Deus e aos irmãos. A via da cruz,
aos olhos do mundo, é fracasso e morte, mas, de verdade, é desse caminho de
amor e de doação que brota a vida verdadeira e eterna que Deus nos oferece.
***
A promessa de uma Aliança nova
No texto de Jeremias acima
referenciado, fica patente a promessa do Senhor de estabelecer com Israel uma
nova Aliança. A aliança sinaítica impusera obrigações escritas em tábuas de pedra,
obrigações sentidas como imposição vinda de fora, que tinha de ser recordada reiteradamente.
Assim, a história de Israel era tendencialmente a história das infidelidades do
povo ao pacto sinaítico. A aliança nova será diferente porque as suas cláusulas
serão escritas no coração, vindo todos a conhecer as suas obrigações sem a
necessidade de ensino ou lembrança. E, sem coação externa, todos serão interiormente
movidos a pôr em prática os preceitos da Lei gravada no coração, que não pode
empedernir-se. Esta promessa inteiramente gratuita atinge-nos mediante o
Messias, por quem nós invocamos o perdão de Deus e a graça de um coração novo.
Jeremias, profeta nascido em Anatot por volta de 650 a.C.,
exerceu a missão profética desde 627/626 a.C. até depois da destruição de
Jerusalém pelos Babilónios (586 a.C.). O
cenário da sua atividade é, em geral, o reino de Judá (mormente a cidade de Jerusalém). A 1.ª fase da pregação de Jeremias
abrange parte do reinado de Josias, rei preocupado com a defesa da identidade
política e religiosa do Povo de Deus, pelo que leva a cabo uma profunda reforma
religiosa, destinada a banir do país o culto aos deuses estrangeiros. A mensagem
de Jeremias, nesta fase, sintetiza-se no constante apelo à conversão, à
fidelidade a Jahwéh e à Aliança. No entanto, em 609 a.C., Josias é morto em
combate contra os egípcios, sucedendo-lhe Joaquim no trono, pelo que a 2.ª fase
da atividade profética de Jeremias abrange o tempo do reinado de Joaquim (609-597 a.C.), o qual, sendo um tempo de desgraça
e de pecado, constitui uma fase de incompreensão e sofrimento para Jeremias. E
o profeta ergue-se a criticar as injustiças sociais (algumas fomentadas pelo próprio rei) e a infidelidade religiosa (concretizada, sobretudo, na busca das
alianças políticas: por exemplo, na procura da ajuda dos egípcios, que
significava não confiar em Deus e, em contrapartida, colocar a esperança do
Povo em exércitos estrangeiros). Jeremias está convicto de que Judá ultrapassou todas as medidas e que
está iminente uma invasão babilónica que castigará os pecados do Povo de Deus.
É, sobretudo, isso que ele diz aos habitantes de Jerusalém. E as suas previsões
funestas concretizam-se: em 597 a.C., Nabucodonosor invade Judá e deporta para
a Babilónia parte da população de Jerusalém. E, no trono de Judá, senta-se Sedecias
(597-586 a.C.), sendo este reinado o tempo em que
se desenrola a 3.ª fase da missão de Jeremias. Após anos de submissão à
Babilónia, Sedecias experimenta a política de alianças com o Egito. E Jeremias
discorda de que se confie em exércitos estrangeiros mais do que em Jahwéh. Mas
nem o rei, nem os notáveis prestam atenção às advertências do profeta.
Em 587 a.C., Nabucodonosor cerca Jerusalém. Porém, um
exército egípcio, vindo em socorro de Judá, faz retirar os babilónios. Face à
euforia nacional, Jeremias anuncia o recomeço do cerco e a destruição de
Jerusalém (cf Jr 32,2-5). Acusado de traição, o profeta é
preso (cf Jr 37,11-16) e corre perigo de vida (cf Jr 38,11-13). E, enquanto ele prega a rendição,
Nabucodonosor apossa-se de Jerusalém, destrói a cidade e deporta a sua
população para a Babilónia (586 a.C.).
Embora seja impossível dizer com segurança o contexto em que
surgiu essa mensagem que o trecho proposto para hoje apresenta, alguns
comentadores dizem tratar-se dum oráculo situável na 1.ª fase da atividade
profética de Jeremias (reinado
de Josias) e dirigido
aos israelitas do Reino do Norte. Seria a mensagem de esperança a animar esse
povo que, há cerca de cem anos, tinha perdido a independência e estava sob o
domínio assírio. Para outros, contudo, o texto será da época de Sedecias, entre
a primeira e a segunda deportação do Povo para a Babilónia (597-586 a.C.) – época em que Jeremias descobre
perspetivas teológicas novas e passa a refletir sobre um tempo novo que Deus
oferecerá ao seu Povo: após a catástrofe, é possível recomeçar, pois Deus
tenciona fazer uma nova Aliança com Judá. É pois, verdade que Deus está
disposto a firmar nova Aliança com o seu Povo, mas diferente da sinaítica. Esta
foi uma Aliança externa, gravada em pedra e que o Povo nunca interiorizou.
Apresentava leis que o Povo devia cumprir; mas eram leis externas, que não
atingiram o coração do Povo nem lhe mudaram substancialmente o estilo de vida.
Por isso, o Povo de Deus continuou em trilhos de infidelidade a Deus,
injustiça, autossuficiência, pecado. O Povo aderiu à Aliança mais com a boca do
que com o coração.
Sem a adesão efetiva do coração, era impossível manter a
fidelidade aos preceitos e exigências da Aliança. Ora, verificada a falência
daquela Aliança, Deus seguirá outro caminho e proporá a nova Aliança (em
todo o AT, esta expressão, familiar aos cristãos só surge aqui) que se estribe noutras bases. Em
concreto, Deus intervirá para gravar as suas leis e preceitos no coração, no
íntimo de cada membro do Povo. É o anúncio duma nova etapa totalmente decisiva
que inaugurará os últimos tempos. É uma novidade essencial à eficácia da
economia da Salvação.
Na antropologia semita, o coração é, a par da sede dos
sentimentos, a sede dos pensamentos, projetos, decisões e ações do homem. É o
centro do ser, é a consciência onde o homem dialoga consigo mesmo, toma as suas
decisões, assume as suas responsabilidades. Portanto, a iniciativa de Deus possibilitará
que as exigências da Aliança sejam interiorizadas por cada membro do Povo de Deus
e que estejam presentes nessa sede onde nascem os pensamentos, se definem os
valores, se decidem as ações. Com um “coração” assim transformado (que pensa, decide e age segundo os
esquemas e a lógica de Deus), cada crente viverá na fidelidade à Aliança, na obediência aos
mandamentos, no respeito pelas leis, no amor a Jahwéh. E Jahwéh será,
efetivamente, o Deus de Israel; Israel será, verdadeiramente, o Povo que vive
de acordo com as propostas de Deus e que testemunha Deus no meio do mundo. Com
este género de relação, Jahwéh jamais será um “desconhecido” para o seu Povo. Então,
Entre Deus e Israel será possível o estabelecimento de uma relação pessoal (e não apenas de grupo, de povo) de proximidade, intimidade, familiaridade.
A comunhão com Jahwéh não será uma lição dificilmente aprendida, mas algo de
inato e natural, que brota dum coração de pessoa em permanente diálogo com
Deus.
Na última frase do texto, Deus anuncia o perdão para as
faltas do seu Povo: um perdão total e sem reservas, que é o primeiro resultado
desta nova relação que se estabelece entre Deus e o seu Povo. Também aqui se
manifesta o “amor eterno” e pessoal de Deus.
***
“No sofrimento aprendeu a
obediência”
A perícopa de hoje da Carta aos
Hebreus evoca a oração do Getsémani (cf Mc 14,36) e o brado do abandono no
Calvário (cf Mc 15,34).
Jesus, o Filho de Deus, partilhou connosco a angústia da morte revelando-nos a
compaixão divina. O grito angustiado de Jesus nasce da fé “naquele que o podia
livrar da morte”. “E foi atendido”, mas não como o esperaríamos. Deus não o
poupou ao sofrimento nem o preservou da morte. O modo como o Pai atendeu estas
preces foi a glorificação do Filho mediante o amor total e incondicionado mostrado
na prova suprema da Paixão e da Morte. Então, Jesus atingiu a plenitude da
capacidade de mediação sacerdotal.
A Carta aos Hebreus é um sermão escrito de autor anónimo cujo
destinatário se desconhece (o título provém das referências veterotestamentárias e ao ritual dos
“sacrifícios” apresentados). Terá sido dirigida a uma comunidade cristã constituída
maioritariamente por cristãos vindos do judaísmo, o que não é totalmente
seguro, pois o Antigo Testamento era património comum, assumido por todos os
cristãos (tanto os vindos
do judaísmo como os vindos do paganismo). Trata-se, porém, de cristãos em situação difícil, expostos
a perseguições por viverem em ambiente hostil à fé. E são cristãos que se
deixam vencer pelo desalento: perdido o fervor inicial, cedem às seduções de
doutrinas não coerentes com a fé recebida dos apóstolos. Assim, o escopo do
autor é incitar a vivência do compromisso cristão e levar os crentes a crescer
na fé. Para tal, expõe o mistério de Cristo do ângulo do sacerdote da Nova
Aliança, a linha de rumo do Tempo Novo, e recorda a fé da Igreja.
O trecho proposto para hoje integra uma longa reflexão (cf Heb 3,1-9,28) sobre o sacerdócio de Cristo. Em
concreto, a perícopa de Heb 5,1-10 aborda o sacerdócio de Cristo por comparação
com o sumo-sacerdote do Antigo Testamento, elencando uma série de aspetos semelhantes
e de opostos. Na perspetiva do autor, o sumo-sacerdote é um homem que, pela sua
humanidade e fragilidade, é capaz de entender os pecados dos seus irmãos (“pode compadecer-se dos ignorantes e
dos que erram, pois também ele está cercado de fraqueza” – Heb 5,2); oferece sacrifícios, “tanto pelos
seus pecados, como pelos do povo”, para refazer a comunhão entre Deus e o homem
(Heb 5,3); e é chamado por Deus a desempenhar
esta missão, tal como sucedeu com o sacerdote Aarão (Heb 5,4). São três elementos bem patentes em Cristo, o
sumo-sacerdote da nova Aliança.
Cristo, apesar de Filho de Deus, foi o homem que viveu entre
os homens e experimentou a fragilidade e a debilidade deles. Chorou, sofreu,
sentiu amargura, angústia e medo ante a morte, como qualquer homem. Por isso, é
o sumo-sacerdote, capaz de compreender as fraquezas e as fragilidades dos
homens. A partir dessa compreensão, será também capaz de dar-lhes remédio.
O seu sacerdócio realizou-se no constante diálogo com o Pai.
Pela oração intensa, Ele procurou sempre, discernir e cumprir a vontade do Pai.
Mesmo nos momentos mais duros e difíceis, escutou o Pai, manteve a adesão incondicional
ao Pai, manifestou total disponibilidade para cumprir o projeto salvífico que o
Pai queria, por Ele, oferecer aos homens. Deste modo, Jesus, na oração e pela
oração, converteu toda a sua vida numa oferenda ao Pai, num “sacrifício” de
doação ao Pai. Ao fazer da sua vida um dom, entrega total, “sacrifício”, Ele
realizou o projeto de refazer a comunhão entre Deus e os homens. Pela
obediência, ensinou os homens a viver em comunhão total com Deus, a cumprir o
projeto de Deus e a amar os irmãos até ao dom total da vida. Pela obediência, eliminou
o egoísmo e o pecado que afastavam os homens de Deus. Sendo, pela comunhão
total com o Pai e com os homens, o modelo de Homem Novo, torna-se para quantos
escutam a sua mensagem e O seguem “fonte de salvação eterna” (v. 9).
Jesus Cristo é, portanto, o sumo-sacerdote da nova Aliança. Conhece
e entende as fragilidades dos homens e está apto a oferecer-lhes a ajuda
necessária para que possam alcançar a salvação. Cumprindo integralmente o
projeto do Pai, mostra aos homens que a via da salvação está na comunhão com
Deus, na obediência radical ao projeto de Deus e no dom da vida aos irmãos.
Jesus é, pois, um sumo-sacerdote que proporciona eficazmente aos homens a
salvação, levando-os ao encontro de Deus e da vida plena.
***
“E, quando Eu for elevado da
terra, atrairei todos a Mim”
Este episódio em que Jesus
anuncia a sua hora da Paixão e a glória da cruz – a Páscoa do Senhor, apenas
relatado no Evangelho de João (como chave de interpretação da
missão do Salvador),
identifica-nos com os “gregos” que queriam ver Jesus. Todos buscamos na vida a felicidade,
o amor, a esperança, as respostas às nossas questões, a verdade, a beleza. Buscamos
a referência que sirva de orientação para a nossa vida, que aclare o seu
horizonte, que estabeleça o rumo certo para a felicidade. Ora, essa referência
é Jesus, que nos mostra o caminho da verdadeira felicidade. Este episódio
lança-nos o desafio: se alguém nos pede o que os “gregos” pediram a Filipe (“Queremos
ver Jesus”), temos
de saber satisfazer-lhe esse pedido. Dito de outro modo: as nossas palavras,
atitudes e vida têm de suscitar nos outros o desejo de conhecer Jesus. Porém, ter
a capacidade para levar outros a ver Jesus exige uma vida vivida, em todos os
momentos e circunstâncias, com a coerência com que Jesus viveu.
O trecho evangélico apresenta um
aparente paradoxo: perder a vida por amor é o modo de a ganhar para os valores
fundamentais e definitivos; dar a vida é o melhor modo de a receber. Ora, captar
e entender esta aparente contradição (perder-ganhar,
morrer-viver, dar-receber)
é descobrir a Boa Nova do verdadeiro Messias. A morte de Jesus é a nossa vida, é
um convite a vivermos dum modo novo, sem egoísmo, ajudando a pôr fim a todas as
mortes gratuitas. Se vivermos com a coerência de Jesus, seremos luz que não se
apaga, Páscoa que não passa, meta de todos os caminhos, Ressurreição. A morte
de Jesus na cruz é o resultado da sua coerência de vida. A morte é para Ele e
para nós a chave da verdadeira vida. A glória não está na morte, mas na vida
que nasce da morte, como Lázaro cuja morte foi ensejo de glorificação para o
Filho de Deus. A morte é aceite na linha da metáfora do grão de trigo cuja
morte é condição da frutificação.
***
A ação referida nesta perícopa evangélica situa-nos em
Jerusalém, provavelmente no próprio dia da entrada solene de Jesus na cidade
santa (cf Jo 12,12-19). As multidões “que tinham chegado
para a Festa” haviam aclamado Jesus como o rei/messias, encenando um rito de
entronização e ovacionando Jesus como “o que vem em nome do Senhor, o rei de
Israel” (Jo 12,12-13). Segundo João, as pessoas colheram
ramos de palma e saíram ao encontro dele – gesto ligado, no folclore religioso
judaico, à Festa das dos Tabernáculos ou das Tendas, a festa que celebrava o
tempo em que os israelitas viveram em tendas, pela caminhada pelo deserto, após
a libertação do Egito. O autor sugere, assim, que está iminente o processo de
libertação definitiva do Povo de Deus, apresentando uma chave de leitura para
entender a morte próxima de Jesus. No quadro entram alguns gregos que tinham
subido a Jerusalém para adorar e queriam ver Jesus. Aqui, “gregos” significará
“não judeus”. Serão prosélitos (estrangeiros convertidos ao judaísmo) ou simpatizantes do judaísmo. Aqueles “gregos” dirigem-se a
Filipe, de Betsaida, cidade situada na tetrarquia de Herodes Filipe e que já
fora do território judeu propriamente dito. Registe-se que “Betsaida” significa
“lugar de pesca” (alusão
à missão dos discípulos de “pescadores de homens” – Mc 1,17). Filipe vai falar com André a
propósito do pedido e os dois apresentam o caso a Jesus.
A história dos “gregos” que querem “ver Jesus” serve de pretexto
a João para uma oportuna catequese sobre o que significa “ver Jesus”. Trespassado
na cruz é causa de Salvação!
Os “gregos”, que vieram a Jerusalém para “adorar” a Deus no
Templo, quiseram encontrar-se com Jesus, conhecer Jesus e o seu projeto. Com
isto, sugere-se que o Templo e o culto antigo já não são os lugares onde o
homem encontra Deus e a salvação; agora, quem está interessado em encontrar a
verdadeira libertação deve dirigir-se a Jesus. Por outro lado, a salvação/libertação
que Jesus trouxe tem um alcance universal e destina-se a todos os homens –
mesmo aos que vivem fora das fronteiras físicas de Israel. Aqueles “gregos” não
se dirigem diretamente a Jesus, mas aos discípulos, o que pode configurar um
aceno à responsabilidade missionária da comunidade, encarregada da missão de
levar Jesus a todos os povos da terra. O facto de Filipe falar primeiro com
André e só depois irem os dois contar a Jesus o que se passa releva a
dificuldade das primeiras comunidades cristãs em darem o passo para a
evangelização dos pagãos. João sugere que a decisão de integrar os pagãos na
comunidade não é uma decisão individual, mas decisão que a comunidade tomou
após consulta ao Senhor.
Mais: quem vai ao encontro de Jesus não encontrará o messias
aclamado pelas multidões, com a preocupação de gerir a carreira, manter a todo
o custo o seu clube de fãs, fazer prodígios de equilíbrio para não desagradar
às autoridades e não arruinar as hipóteses de êxito. No horizonte próximo de
Jesus, está a cruz (a
“hora”). Está cônscio de
que vai sofrer morte violenta e maldita, e de que todos o abandonarão como um
fracassado, mas entrega-se voluntariamente. Paradoxalmente, está cônscio de que
nessa cruz se manifestará a glória do Filho do Homem. A sua morte não é um momento
isolado, mas o culminar dum processo de doação total de Si, que se iniciou
quando “o Verbo Se fez carne e montou a
sua tenda no meio dos homens” (Jo 1,14);
é o último ato duma vida de entrega total ao projeto de Deus, feita amor até ao
extremo. Durante a sua existência terrena, Jesus procurou, em cada palavra e
gesto, tornar o homem livre de todas as opressões, dotá-lo de dignidade, dar-lhe
a vida em plenitude. Assim, suscitou o ódio do sistema opressor, interessado em
manter o homem escravo. Sem se assustar com a via da morte, cumprindo até ao
fim o projeto libertador de Deus em prol do homem, Jesus levou avante a luta
pela libertação da humanidade. A sua morte é a consequência do seu confronto
com as forças da morte que dominavam o mundo. Por outro lado, dando a vida por
amor, deixa aos discípulos a última e suprema lição, a lição que eles devem
aprender. Com a morte de Jesus na cruz, os discípulos aprendem o amor até ao
extremo, o dom total da vida, a entrega radical ao projeto de Deus e à
libertação dos irmãos.
Deste “dom” de Jesus nasce uma nova humanidade, uma
humanidade que Jesus libertou da opressão, da injustiça, dos mecanismos que
geram sofrimento e medo, uma humanidade que venceu o egoísmo e aprendeu que a
vida é para ser dada, sem limites, por amor. Não há dúvida de que o dom da vida
dá abundantes frutos de vida. Na cruz de Jesus manifesta-se, portanto, o
projeto libertador de Deus para os homens. E quem quiser conhecer Jesus deve
olhar para esse Homem que põe totalmente a sua vida ao serviço do projeto de
Deus e que morre na cruz para ensinar aos homens o amor sem limites. Deve
aprender a verdade que, para Jesus, é evidente: não se pode gerar vida sem
entregar a própria vida. A vida nasce do amor que se dá até às últimas
consequências. Só o amor como dom total é fecundo e gerador de vida (“se o grão de trigo caído na terra
não morrer, permanece só; se morrer, produz muito fruto” – v. 24). Dizia Santo Agostinho: “Semeava Cristo e germinava a Igreja. Caiu o
grão, ressuscitou o grão e o grão subiu ao céu, onde está a multidão dos grãos.”
(S. Agostinho, Sermão 335
E [= LAMBOT 7], 2).
Quem se ama a si mesmo e se
fecha no egoísmo, quem apenas aposta em defender os seus interesses e perspetivas,
perde a oportunidade de chegar à vida verdadeira, à salvação. O apego egoísta à
própria vida levará ao medo de agir, à dificuldade em comprometer-se, ao
silêncio face à injustiça – a uma vida de medo e de opressão, infecunda e que não
vale a pena ser vivida. Ao invés, quem é livre do medo, se esquece dos seus
próprios interesses e seguranças e se compromete com a luta pela justiça, pelos
direitos, pela dignidade e liberdade do homem, quem ama tanto os outros que
entrega a sua vida por eles, dará frutos de vida e viverá uma vida plena, que
nem a morte calará.
Jesus viveu esta dinâmica da vida dada por amor, sem medo de
enfrentar esse sistema de opressão e de injustiça que pensava poder manter os
homens escravos através do medo da morte. Jesus está livre desse medo e,
portanto, está livre para amar totalmente. Àqueles que querem “ver Jesus”, Ele
propõe o mesmo caminho – o caminho do amor e da entrega total. Ser discípulo é
colaborar com Jesus na libertação dos homens que ainda são escravos, mesmo que
isso signifique enfrentar as forças de opressão do mundo e enfrentar a própria
morte (“se alguém Me quer
servir, siga-Me” – v. 26a).
Quem aceitar esta proposta permanece em Jesus, entra na comunidade de Deus (v. 26b). Pode ser desprezado pelo mundo, mas será honrado
por Deus e acolhido como seu filho (v. 26c).
E o texto termina com a voz
do céu que glorifica Jesus (v. 28-32). É o
modo de mostrar que a via da cruz, assumida por Jesus tem o selo de Deus. A
“voz do céu” sela a verdade do estilo de vida proposto por Jesus é verdadeiro e
assegura que Deus lhe garante a autenticidade. Confirma, assim, aos discípulos
que dar a vida por amor não é via de fracasso e morte, mas de glorificação e
vida, liberdade e vitória. Pela verdade, tornamo-nos livres e pelo sinal da
cruz venceremos!
2018.03.15
– Louro de Carvalho
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