quinta-feira, 1 de março de 2018

Carta Placuit Deo sobre alguns aspetos da salvação cristã


Foi publicada hoje, dia 1 de março, a Carta Apostólica da Congregação para a Doutrina da Fé Placuit Deo, datada de 22 de fevereiro, dirigida aos Bispos da Igreja Católica sobre alguns aspectos da salvação cristã. O documento, assinado por Dom Luis Francisco Ladaria Ferrer e por Dom Giacomo Morandi, respetivamente prefeito e secretário do Dicastério, foi decidido na sua sessão plenária de 14 de janeiro e o Papa Francisco aprovou-o e ordenou a sua publicação.
A Carta destaca, na linha da grande tradição da fé e com especial referência ao ensinamento de Francisco, alguns aspetos da salvação cristã, hoje difíceis de compreender em razão das recentes transformações culturais.
O Texto, estruturado em 15 números, é distribuído por 4 capítulos, antecedidos da introdução e seguidos da conclusão.
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Na “Introdução”, releva-se o sábio beneplácito de Deus em Se revelar e comunicar o segredo da sua vontade, constituindo Cristo como o mediador e expoente desta revelação, sendo por Ele que os homens, acedendo ao Pai no Espírito, se tornam partícipes da vida divina. É nesta linha, que olhando para Cristo, a Igreja se dirige maternalmente aos homens e lhes anuncia esta Aliança do Pai com todos nós pelo e no Filho.
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O primeiro capítulo, “O impacto das transformações culturais de hoje sobre o significado da salvação cristã”, denuncia o individualismo autossuficiente para o qual Jesus apenas inspira ações generosas, não chegando a transformar a condição humana. Além disso, constata que se difunde a visão duma salvação meramente interior, que talvez suscite forte convicção pessoal ou intenso sentimento de união a Deus, mas “sem assumir, curar e renovar as nossas relações com os outros e com o mundo criado”, não se chegando a compreender o significado da Encarnação do Verbo. Na verdade, Francisco referiu, muitas vezes (vd discurso de novembro, em Florença, 2015), as tendências que representam os dois desvios ora mencionados e similares de duas antigas heresias: o pelagianismo e o gnosticismo. Assim, o radicalismo autónomo do homem, hoje proliferante, configura um neopelagianismo que faz crer que o homem se salva a si mesmo sem reconhecer que “depende, no mais profundo do seu ser, de Deus e dos outros”. E ressalta um neognosticismo a apresentar uma salvação meramente interior, enredada no subjetivismo. Pretende-se “libertar a pessoa do corpo e do mundo material”, em que não se descobrem os sinais da Providência, fixando-se numa realidade “estranha à identidade última da pessoa e manipulável segundo os interesses do homem”. Obviamente, os fenómenos atuais são diferentes dos surgidos nos alvores do cristianismo, mas são tão perigosos como eles nos perigos que representam para a fé. Assim, é de perguntar como pode Cristo mediar a Aliança de toda a família humana, se “o homem for um indivíduo isolado, que se autorrealiza somente com as suas forças”; e como pode chegar a nós a salvação mediante a Encarnação de Jesus, a sua vida, morte e ressurreição no seu verdadeiro corpo, se o que conta for apenas “libertar a interioridade do homem dos limites do corpo e da matéria”.
Face a estas tendências, a Carta reafirma “que a salvação consiste na nossa união com Cristo, que, pela sua Encarnação, vida, morte e ressurreição, gerou uma nova ordem de relações com o Pai e entre os homens e nos introduziu nesta ordem graças ao dom do seu Espírito, para que possamos unir-nos ao Pai como filhos no Filho, e formar um só corpo no primogénito de muitos irmãos” (Rm 8,29).
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O segundo capítulo, O desejo humano de salvação”, levanta a dupla questão que o homem se coloca a si próprio, nem sempre de forma clara: “Eu existo, mas quem sou eu? Tenho em mim o princípio da minha existência?”. E este é o enigma do homem, que se corporiza no desejo oculto da felicidade, revelável em situações específicas: saúde física, bem-estar económico, paz interior, convivência pacífica com o próximo. Porém, o desejo explícito da salvação ultrapassa a capacidade de resistência e de superação da dor para se apresentar como “um compromisso na direção dum bem maior”. E, a par da conquista do bem, posiciona-se a luta da superação do mal: ignorância e erro, fragilidade e fraqueza, doença e da morte. Ora, face a estas aspirações, a fé em Cristo ensina que elas apenas podem realizar-se plenamente se Deus as torna possíveis, atraindo-nos a Ele. Ou seja, a salvação plena da pessoa não consiste nas coisas que o homem poderia obter por si (o ter ou o bem-estar material, a ciência ou a técnica, o poder ou a influência sobre os outros, a boa fama ou a autorrealização), visto que Deus nos destinou à comunhão com Ele e o nosso coração permanecerá inquieto até que repouse Nele. Assim, a Carta reitera que “a vocação última de todos os homens é realmente uma só, a divina”. Mais: a revelação não reduz a salvação à resposta à expectativa das necessidades contemporâneas, pois, se a redenção devesse ser julgada pela necessidade existencial dos seres humanos, como evitaríamos a suspeita de termos criado um Deus-Redentor à imagem de nossas necessidades?
Depois, é preciso afirmar que a origem do mal não está no mundo material e corpóreo. Ao invés, a fé proclama que o mundo inteiro é bom, enquanto criado por Deus (cf Gn 1,31; Sb 1,13-14; 1Tm 4,4), e que o mal que mais prejudica o homem é o que provém do coração (cf Mt 15,18-19; Gn 3,1-19). Consequentemente, a salvação que a fé nos anuncia não diz unicamente respeito à nossa interioridade, mas ao nosso ser integral. “É a pessoa inteira, em corpo e alma, criada pelo amor de Deus à sua imagem e semelhança, que é chamada a viver em comunhão com Ele”.
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O terceiro capítulo, “Cristo, Salvador e Salvação”, assinala a convergência da História da Salvação para Jesus. Na verdade, em todos os tempos da caminhada do homem, Deus vem oferecer a salvação. Fê-lo a Adão e filhos, a Noé e a Abraão com sua descendência. Assim, a salvação assume a ordem da criação compartilhada por todos os homens e percorre os seus caminhos concretos na história. Escolhendo para Si um povo, Deus preparou a vinda de “um poderoso Salvador, na casa de David, seu servo” (Lc 1,69). E, na plenitude dos tempos, o Pai enviou ao mundo o seu Filho, que anunciou o reino de Deus, curando todo tipo de doenças (cf Mt 4,23). Segundo o Evangelho, a salvação para todos os povos começa pelo acolhimento de Jesus: “Hoje veio a salvação a esta casa” (Lc 19,9). E a Boa Nova da salvação tem um nome e um rosto: Jesus Cristo, Filho de Deus Salvador. O ser cristão não parte duma decisão ética ou duma grande ideia, mas do “encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo”.
Ao longo da História, a fé tornou presente, através de muitas figuras, a obra salvífica do Filho encarnado. Fê-lo sem separar o aspeto regenerador da salvação, em que Jesus nos resgata do pecado, do aspeto da elevação, pelo qual nos faz filhos de Deus, participantes da sua natureza divina (cf 2Pe 1,4). Considerando a perspetiva salvífica a partir de Deus (via descendente) que vem resgatar os homens, Jesus é iluminador e revelador, redentor e libertador, Aquele que diviniza o homem e o justifica. E, assumindo a perspetiva a partir dos homens que se dirigem a Deus (via ascendente), Jesus é o Sumo Sacerdote da Nova Aliança que oferece ao Pai o culto perfeito em nome dos homens. Assim, verifica-se na vida de Jesus a sinergia maravilhosa do agir divino com o agir humano, que descalça a visão individualista. Dum lado, a via descendente testemunha a primazia da ação gratuita de Deus; do outro, a via ascendente faz-nos ver que, pelo agir plenamente humano do Filho, o Pai regenera o nosso agir, para, assemelhados a Cristo, realizarmos “as boas obras que Deus de antemão preparou para nelas caminharmos” (Ef 2,10).
E é claro que a salvação que Jesus trouxe na sua própria pessoa não se realiza só de modo interior. De facto, para comunicar a cada pessoa a comunhão salvífica com Deus, o Filho fez-se carne (cf Jo 1,14). É assumindo a carne (cf Rm 8,3; Heb 2,14; 1 Jo 4,2) e nascendo duma mulher (cf Gl 4,4) que “o Filho de Deus se fez filho do homem” e nosso irmão (cf Heb 2,14). E, fazendo parte da família humana, “uniu-se de certo modo a cada homem” e estabeleceu nova ordem nas relações com Deus, seu Pai, e com todos os homens, na qual podemos ser incorporados para participar na sua vida. Por isso, assumir a carne humana, longe de limitar a ação salvífica de Cristo, permite-Lhe mediar em concreto a salvação de Deus com todos os filhos de Adão.
Concluindo, importa reiterar que Jesus não se limitou a mostrar-nos o caminho para Deus, um caminho que pudéssemos percorrer por nós mesmos, obedecendo às suas palavras e imitando-lhe o exemplo. Para nos abrir a porta da libertação, tornou-se Ele mesmo o caminho: “Eu sou o caminho” (Jo 14,6). E esse caminho não é um percurso meramente interior, à margem das nossas relações com os outros e com o mundo criado. Ao invés, Jesus ofereceu-nos um “caminho novo e vivo que Ele abriu para nós através [...] da sua carne” (Heb 10,20). Enfim, Cristo é Salvador porque assumiu integralidade da humanidade e viveu plenamente a vida humana, em comunhão com o Pai e os irmãos. E a salvação consiste em incorporar-se na vida de Cristo, recebendo o seu Espírito (cf 1Jo 4,13). Assim, Ele é “em certo modo, o princípio de toda graça segundo a humanidade”: Ele é o Salvador e a Salvação.
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O quarto capítulo, “A Salvação na Igreja, corpo de Cristo”, fala-nos da Igreja, comunidade dos que, incorporados à nova ordem de relações inaugurada por Cristo, podem receber a plenitude do Espírito de Cristo (cf Rm 8,9). Compreender a mediação salvífica da Igreja ajuda a superação de qualquer tendência reducionista. Na verdade, a salvação não é obtida apenas pelas forças individuais, como apregoa o neopelagianismo, mas pelas relações nascidas do Filho de Deus encarnado e geradoras da comunhão da Igreja. E, como a graça de Cristo não é, como quer o neognosticismo, salvação apenas interior, mas nos introduz nas relações que Ele viveu, a Igreja é comunidade visível. Por ela, tocamos a carne de Jesus, de modo singular nos irmãos mais pobres e sofredores. Enfim, a mediação salvífica da Igreja, “sacramento universal de salvação”, assegura que a salvação não está na autorrealização do indivíduo isolado ou na sua fusão interior com o divino, mas na incorporação na comunhão de pessoas, que participa na comunhão da Trindade.
Tanto o neopelagianismo como o neognosticismo contradizem a economia sacramental, por que Deus quis salvar a pessoa humana. A participação, pela Igreja, na ordem de relações inauguradas por Jesus realiza-se pelos sacramentos, entre eles, o Batismo, que é a porta, e a Eucaristia, que é fonte e cume. Assim, a fé confessa que somos salvos por meio do Batismo, que imprime o caráter indelével de pertença a Cristo e à Igreja, do qual deriva a transformação do nosso modo de viver as relações com Deus, com os homens e com a criação (cf Mt 28,19). Chamados à nova vida em conformidade com Cristo (cf Rm 6,4), pela graça dos sete sacramentos, os crentes crescem e regeneram-se, sobretudo quando o caminho se torna difícil e as quedas se multiplicam. E, se, pecando, abandonam o amor por Cristo, podem ser reintroduzidos, por meio do sacramento da Penitência, na ordem das relações inaugurada por Jesus para retomar a caminhada d’Ele (cf 1Jo 2,6). Deste modo, olhamos com esperança para o juízo final, em que o critério de julgamento de cada pessoa é o amor (cf Rm 13,8-10), em especial pelos mais fracos (cf Mt 25,31-46). Por seu turno, o neognosticismo olha negativamente a criação e configura uma limitação da liberdade absoluta do espírito humano. Assim, vê a salvação como libertação do corpo e das relações que a pessoa vive. Ao invés, como somos salvos “por meio da oferta do corpo de Jesus Cristo” (Heb 10,10; cf Cl 1,22), a salvação, longe de ser libertação do corpo, abrange a sua santificação (cf Rm 12,1). Com efeito, o corpo humano, modelado por Deus, tem inscrita em si uma linguagem que convida a pessoa a reconhecer os dons do Criador e a viver em comunhão com os irmãos.
O Salvador restabeleceu e renovou, na encarnação e no mistério pascal, esta linguagem originária e comunicou-a na economia corporal dos sacramentos. Graças a eles, os cristãos podem viver fiéis à carne de Cristo e em fidelidade à ordem concreta das relações que Ele nos deu. Esta ordem de relações requer, de modo especial, o cuidado pela humanidade sofredora de todos os homens, pelas obras de misericórdia corporais e espirituais.
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A “Conclusão: comunicar a fé, esperando o Salvador” mostra que “a consciência da vida plena, em que Jesus Salvador nos introduz, impulsiona os cristãos à missão de proclamar a todos os homens a alegria e a luz do Evangelho”. Esta é a nossa missão. Mas ela postula a predisposição para o “diálogo sincero e construtivo com os crentes de outras religiões, na confiança que Deus pode conduzir à salvação em Cristo todos os homens de boa vontade, em cujos corações a graça opera ocultamente”. Dedicando-se com todas as forças à evangelização, a Igreja invoca a vinda definitiva do Salvador, porque “na esperança fomos salvos” (Rm 8,24). A salvação do homem será plena quando, após vencer o último inimigo, a morte (cf 1Cor 15,26), participarmos plenamente da glória de Cristo ressuscitado, que leva à plenitude a nossa relação com Deus, com os irmãos e com toda a criação.
Em suma, “a salvação integral, da alma e do corpo, é o destino final ao qual Deus chama todos os homens”.
Por isso, a Carta, com olhos postos no caráter exemplar da Mãe de Jesus, exorta:
Fundamentados na fé, sustentados pela esperança, operantes na caridade, seguindo o exemplo de Maria, a Mãe do Salvador e a primeira dos que foram salvos, estamos certos de que nossa cidadania “está nos céus, donde certamente esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo. Ele transfigurará o nosso pobre corpo, conformando-o ao seu corpo glorioso, com aquela energia que o torna capaz de a si mesmo sujeitar todas as coisas.” (Fl 3,20-21).
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Eis uma bela pérola de síntese doutrinal da Soteriologia ao dispor de quem dela queira usufruir. É a seta do antídoto virada ao angelismo desencarnado e à autossuficiência obsessiva pelas obras. É o recentramento da oração/ação/reflexão em Cristo, pela Igreja, iluminada pela Graça.
2018.03.01 – Louro de Carvalho

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