Foi
publicada hoje, dia 1 de março, a Carta Apostólica da Congregação para a Doutrina da Fé Placuit Deo, datada de 22 de fevereiro, dirigida
aos Bispos da Igreja Católica sobre alguns aspectos da salvação cristã. O
documento, assinado por Dom Luis Francisco Ladaria Ferrer e por Dom Giacomo
Morandi, respetivamente prefeito e secretário do Dicastério, foi decidido na
sua sessão plenária de 14 de janeiro e o Papa Francisco aprovou-o e ordenou a
sua publicação.
A Carta
destaca, na linha da grande tradição da fé e com especial referência ao
ensinamento de Francisco, alguns
aspetos da salvação cristã, hoje difíceis de compreender em razão das recentes
transformações culturais.
O Texto,
estruturado em 15 números, é distribuído por 4 capítulos, antecedidos da introdução e seguidos da conclusão.
***
Na “Introdução”,
releva-se o sábio beneplácito de Deus em Se revelar e comunicar o segredo da
sua vontade, constituindo Cristo como o mediador e expoente desta revelação,
sendo por Ele que os homens, acedendo ao Pai no Espírito, se tornam partícipes
da vida divina. É nesta linha, que olhando para Cristo, a Igreja se dirige
maternalmente aos homens e lhes anuncia esta Aliança do Pai com todos nós pelo
e no Filho.
***
O primeiro
capítulo, “O impacto das transformações
culturais de hoje sobre o significado da salvação cristã”,
denuncia o individualismo autossuficiente para o qual Jesus apenas inspira
ações generosas, não chegando a transformar a condição humana. Além disso, constata
que se difunde a visão duma
salvação meramente interior, que talvez suscite forte convicção pessoal ou intenso
sentimento de união a Deus, mas “sem assumir, curar e renovar as nossas
relações com os outros e com o mundo criado”, não se chegando a compreender o
significado da Encarnação do Verbo. Na verdade, Francisco referiu, muitas vezes
(vd
discurso de novembro, em Florença, 2015),
as tendências que representam os dois desvios ora mencionados e similares de
duas antigas heresias: o pelagianismo
e o gnosticismo. Assim, o radicalismo
autónomo do homem, hoje proliferante, configura um neopelagianismo que faz crer
que o homem se salva a si mesmo sem reconhecer que “depende, no mais profundo
do seu ser, de Deus e dos outros”. E ressalta um neognosticismo a apresentar
uma salvação meramente interior, enredada no subjetivismo. Pretende-se “libertar
a pessoa do corpo e do mundo material”, em que não se descobrem os sinais da
Providência, fixando-se numa realidade “estranha à identidade última da pessoa
e manipulável segundo os interesses do homem”. Obviamente, os fenómenos atuais
são diferentes dos surgidos nos alvores do cristianismo, mas são tão perigosos
como eles nos perigos que representam para a fé. Assim, é de perguntar como
pode Cristo mediar a Aliança de toda a família humana, se “o homem for um
indivíduo isolado, que se autorrealiza somente com as suas forças”; e como pode
chegar a nós a salvação mediante a Encarnação de Jesus, a sua vida, morte e
ressurreição no seu verdadeiro corpo, se o que conta for apenas “libertar a
interioridade do homem dos limites do corpo e da matéria”.
Face a estas
tendências, a Carta reafirma “que a
salvação consiste na nossa união com Cristo, que, pela sua Encarnação, vida,
morte e ressurreição, gerou uma nova ordem de relações com o Pai e entre os
homens e nos introduziu nesta ordem graças ao dom do seu Espírito, para que
possamos unir-nos ao Pai como filhos no Filho, e formar um só corpo no primogénito de muitos irmãos” (Rm 8,29).
***
O segundo
capítulo, “O desejo humano de salvação”,
levanta a dupla questão que o homem se coloca a si próprio, nem sempre de forma
clara: “Eu existo, mas quem sou
eu? Tenho em mim o princípio da minha existência?”. E este é o enigma do
homem, que se corporiza no desejo oculto da felicidade, revelável em situações
específicas: saúde física, bem-estar económico, paz interior, convivência
pacífica com o próximo. Porém, o desejo explícito da salvação ultrapassa a
capacidade de resistência e de superação da dor para se apresentar como “um
compromisso na direção dum bem maior”. E, a par da conquista do bem,
posiciona-se a luta da superação do mal: ignorância e erro, fragilidade e
fraqueza, doença e da morte. Ora, face a estas aspirações, a fé em Cristo
ensina que elas apenas podem realizar-se plenamente se Deus as torna possíveis,
atraindo-nos a Ele. Ou seja, a salvação plena da pessoa não consiste nas coisas
que o homem poderia obter por si (o ter ou o bem-estar material, a ciência ou a técnica, o
poder ou a influência sobre os outros, a boa fama ou a autorrealização), visto que Deus nos destinou à
comunhão com Ele e o nosso coração permanecerá inquieto até que repouse Nele. Assim,
a Carta reitera que “a vocação última de
todos os homens é realmente uma só, a divina”. Mais: a revelação não reduz
a salvação à resposta à expectativa das necessidades contemporâneas, pois, se a
redenção devesse ser julgada pela necessidade existencial dos
seres humanos, como evitaríamos a suspeita de termos criado um Deus-Redentor à
imagem de nossas necessidades?
Depois, é
preciso afirmar que a origem do mal não está no mundo material e corpóreo. Ao
invés, a fé proclama que o mundo inteiro é bom, enquanto criado por Deus (cf Gn 1,31; Sb 1,13-14; 1Tm 4,4), e que o mal que mais prejudica o
homem é o que provém do coração (cf Mt 15,18-19; Gn 3,1-19). Consequentemente, a salvação que a fé nos anuncia não diz
unicamente respeito à nossa interioridade, mas ao nosso ser integral. “É a pessoa inteira, em corpo e alma, criada
pelo amor de Deus à sua imagem e semelhança, que é chamada a viver em comunhão
com Ele”.
***
O terceiro capítulo, “Cristo,
Salvador e Salvação”, assinala a convergência da História da Salvação
para Jesus. Na verdade, em todos os tempos da caminhada do homem, Deus vem oferecer a salvação. Fê-lo a
Adão e filhos, a Noé e a Abraão com sua descendência. Assim, a salvação assume
a ordem da criação compartilhada por todos os homens e percorre os seus
caminhos concretos na história. Escolhendo para Si um povo, Deus preparou a
vinda de “um poderoso Salvador, na casa de David, seu servo” (Lc 1,69). E, na plenitude dos tempos, o Pai enviou ao mundo o
seu Filho, que anunciou o reino de Deus, curando todo tipo de doenças (cf Mt 4,23). Segundo o Evangelho, a salvação
para todos os povos começa pelo acolhimento de Jesus: “Hoje veio a salvação a esta casa” (Lc 19,9). E a Boa Nova da salvação tem um nome e um rosto: Jesus Cristo, Filho de Deus Salvador. O ser cristão não parte duma
decisão ética ou duma grande ideia, mas do “encontro com um acontecimento, com
uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo”.
Ao longo da
História, a fé tornou presente, através de muitas figuras, a obra salvífica do
Filho encarnado. Fê-lo sem separar o aspeto regenerador da salvação, em que
Jesus nos resgata do pecado, do aspeto da elevação, pelo qual nos faz filhos de
Deus, participantes da sua natureza divina (cf 2Pe 1,4). Considerando a perspetiva salvífica a partir de Deus (via descendente) que vem resgatar os homens, Jesus é
iluminador e revelador, redentor e libertador, Aquele que diviniza o homem e o
justifica. E, assumindo a perspetiva a partir dos homens que se dirigem a Deus
(via ascendente), Jesus é o Sumo Sacerdote da Nova
Aliança que oferece ao Pai o culto perfeito em nome dos homens. Assim,
verifica-se na vida de Jesus a sinergia maravilhosa do agir divino com o agir
humano, que descalça a visão individualista. Dum lado, a via descendente testemunha
a primazia da ação gratuita de Deus; do outro, a via ascendente faz-nos ver
que, pelo agir plenamente humano do Filho, o Pai regenera o nosso agir, para,
assemelhados a Cristo, realizarmos “as boas obras que Deus de antemão preparou
para nelas caminharmos” (Ef
2,10).
E é claro que
a salvação que Jesus trouxe na sua própria pessoa não se realiza só de modo
interior. De facto, para comunicar a cada pessoa a comunhão salvífica com Deus,
o Filho fez-se carne (cf
Jo 1,14). É assumindo a
carne (cf Rm 8,3; Heb
2,14; 1 Jo 4,2) e
nascendo duma mulher (cf
Gl 4,4) que “o Filho de Deus se fez filho do homem” e nosso irmão (cf Heb 2,14). E, fazendo parte da família
humana, “uniu-se de certo modo a cada homem” e
estabeleceu nova ordem nas relações com Deus, seu Pai, e com todos os homens,
na qual podemos ser incorporados para participar na sua vida. Por isso, assumir
a carne humana, longe de limitar a ação salvífica de Cristo, permite-Lhe mediar
em concreto a salvação de Deus com todos os filhos de Adão.
Concluindo,
importa reiterar que Jesus não se limitou a mostrar-nos o caminho para Deus, um
caminho que pudéssemos percorrer por nós mesmos, obedecendo às suas palavras e
imitando-lhe o exemplo. Para nos abrir a porta da libertação, tornou-se Ele
mesmo o caminho: “Eu sou o caminho” (Jo 14,6). E esse caminho não é um percurso meramente
interior, à margem das nossas relações com os outros e com o mundo criado. Ao
invés, Jesus ofereceu-nos um “caminho novo e vivo que Ele abriu para nós
através [...] da sua carne” (Heb 10,20). Enfim,
Cristo é Salvador porque assumiu integralidade da humanidade e viveu plenamente
a vida humana, em comunhão com o Pai e os irmãos. E a salvação consiste em
incorporar-se na vida de Cristo, recebendo o seu Espírito (cf 1Jo 4,13). Assim, Ele é “em certo modo, o
princípio de toda graça segundo a humanidade”: Ele é o Salvador e a Salvação.
***
O quarto capítulo, “A Salvação
na Igreja, corpo de Cristo”, fala-nos da Igreja, comunidade dos que,
incorporados à nova ordem de relações inaugurada por Cristo, podem receber a
plenitude do Espírito de Cristo (cf Rm 8,9). Compreender a mediação salvífica da Igreja ajuda a superação de qualquer
tendência reducionista. Na verdade, a salvação não é obtida apenas pelas forças
individuais, como apregoa o neopelagianismo, mas pelas relações nascidas do
Filho de Deus encarnado e geradoras da comunhão da Igreja. E, como a graça de
Cristo não é, como quer o neognosticismo, salvação apenas interior, mas nos
introduz nas relações que Ele viveu, a Igreja é comunidade visível. Por ela,
tocamos a carne de Jesus, de modo singular nos irmãos mais pobres e sofredores.
Enfim, a mediação salvífica da Igreja, “sacramento universal de salvação”, assegura
que a salvação não está na autorrealização do indivíduo isolado ou na sua fusão
interior com o divino, mas na incorporação na comunhão de pessoas, que
participa na comunhão da Trindade.
Tanto o
neopelagianismo como o neognosticismo contradizem a economia sacramental, por
que Deus quis salvar a pessoa humana. A participação, pela Igreja, na ordem de
relações inauguradas por Jesus realiza-se pelos sacramentos, entre eles, o Batismo,
que é a porta, e a Eucaristia, que é fonte e cume. Assim, a fé confessa que
somos salvos por meio do Batismo, que imprime o caráter indelével de pertença a
Cristo e à Igreja, do qual deriva a transformação do nosso modo de viver as
relações com Deus, com os homens e com a criação (cf Mt 28,19). Chamados à nova vida em
conformidade com Cristo (cf
Rm 6,4), pela graça dos sete
sacramentos, os crentes crescem e regeneram-se, sobretudo quando o caminho se
torna difícil e as quedas se multiplicam. E, se, pecando, abandonam o amor por
Cristo, podem ser reintroduzidos, por meio do sacramento da Penitência, na
ordem das relações inaugurada por Jesus para retomar a caminhada d’Ele (cf 1Jo 2,6). Deste modo, olhamos com esperança
para o juízo final, em que o critério de julgamento de cada pessoa é o amor (cf Rm 13,8-10), em especial pelos mais fracos (cf Mt 25,31-46). Por seu turno, o neognosticismo
olha negativamente a criação e configura uma limitação da liberdade absoluta do
espírito humano. Assim, vê a salvação como libertação do corpo e das relações que
a pessoa vive. Ao invés, como somos salvos “por meio da oferta do corpo de
Jesus Cristo” (Heb 10,10;
cf Cl 1,22), a salvação,
longe de ser libertação do corpo, abrange a sua santificação (cf Rm 12,1). Com efeito, o corpo humano, modelado
por Deus, tem inscrita em si uma linguagem que convida a pessoa a reconhecer os
dons do Criador e a viver em comunhão com os irmãos.
O Salvador restabeleceu
e renovou, na encarnação e no mistério pascal, esta linguagem originária e
comunicou-a na economia corporal dos sacramentos. Graças a eles, os cristãos
podem viver fiéis à carne de Cristo e em fidelidade à ordem concreta das
relações que Ele nos deu. Esta ordem de relações requer, de modo especial, o
cuidado pela humanidade sofredora de todos os homens, pelas obras de
misericórdia corporais e espirituais.
***
A “Conclusão: comunicar a fé,
esperando o Salvador” mostra que “a consciência da vida plena, em que Jesus Salvador nos
introduz, impulsiona os cristãos à missão de proclamar a todos os homens a
alegria e a luz do Evangelho”. Esta é a nossa missão. Mas ela postula a
predisposição para o “diálogo sincero e construtivo com os crentes de outras
religiões, na confiança que Deus pode conduzir à salvação em Cristo todos os homens de boa vontade, em cujos
corações a graça opera ocultamente”. Dedicando-se com todas as forças à evangelização,
a Igreja invoca a vinda definitiva do Salvador, porque “na esperança fomos
salvos” (Rm 8,24). A salvação do homem será plena
quando, após vencer o último inimigo, a morte (cf 1Cor 15,26), participarmos plenamente da glória de Cristo ressuscitado,
que leva à plenitude a nossa relação com Deus, com os irmãos e com toda a
criação.
Em suma, “a salvação integral, da alma e do corpo, é
o destino final ao qual Deus chama todos os homens”.
Por isso, a
Carta, com olhos postos no caráter exemplar da Mãe de Jesus, exorta:
“Fundamentados
na fé, sustentados pela esperança, operantes na caridade, seguindo o exemplo de
Maria, a Mãe do Salvador e a primeira dos que foram salvos, estamos certos de
que nossa cidadania “está nos céus, donde certamente esperamos o Salvador, o
Senhor Jesus Cristo. Ele transfigurará o nosso pobre corpo, conformando-o ao
seu corpo glorioso, com aquela energia que o torna capaz de a si mesmo sujeitar
todas as coisas.” (Fl 3,20-21).
***
Eis uma
bela pérola de síntese doutrinal da Soteriologia ao dispor de quem dela queira
usufruir. É a seta do antídoto virada ao angelismo desencarnado e à autossuficiência
obsessiva pelas obras. É o recentramento da oração/ação/reflexão em Cristo,
pela Igreja, iluminada pela Graça.
2018.03.01 –
Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário