Este é o
precioso tesouro de Quinta-Feira Santa, dia com que abre o sagrado tríduo
pascal. Atestam-no os três evangelhos sinóticos e a 1.ª carta de Paulo aos
Coríntios.
Marcos faz
o relato nestes termos:
“Enquanto comiam, tomou um pão e, depois de pronunciar a
bênção, partiu-o e entregou-o aos discípulos dizendo: ‘Tomai: isto é o meu
corpo’. Depois, tomou o cálice, deu graças e entregou-lho. Todos beberam dele. E
disse-lhes: “Isto é o meu sangue da aliança, que vai ser derramado por muitos [todos].
Em verdade vos digo: não voltarei a beber do fruto da videira até ao dia em que
o beba, novo, no Reino de Deus’.” (Mc
14,22-25).
Este relato
está bem próximo do de Mateus, apesar das poucas diferenças de estilo narrativo
e revela inequivocamente o seu antiquíssimo uso litúrgico com a estilização das
duas fórmulas consecratórias do pão e do vinho e em tom declarativo.
É de
relevar a definição do sangue de Cristo como sangue da aliança, palavra aqui
usada em sentido absoluto. A aliança celebrada, preconizada e memorizada do
antigamente cessou. Passaram as velhas formas do sangue de touros e cabritos. Agora
o selo da Aliança é o sangue de Cristo, o novo e eterno Cordeiro pascal. É sangue
derramado por todos. E está intimamente conexo com a novidade do Reino de Deus,
aquele que está entre nós e exige a conversão e a fé viva na Boa Nova (cf
Mc 1,15).
Este ato
consecratório está concretizado e emoldurado por ações constitutivas do ato: contexto
de refeição, tomada do pão e do cálice nas mãos, pronúncia da bênção ou ação de
graças, entrega aos discípulos e as palavras definidoras de o pão é o corpo de Cristo
e de que o vinho é o sangue de Cristo. Se o sangue é derramado por todos, o
corpo é entregue para todos para que o sangue seja vertido pela remissão dos
pecados. Ademais, a base natural da consagração no corpo e no sangue Cristo constitui
não só a rutura com o ato sacrificial do Antigo Testamento, mas também a rutura
com o sacerdócio de casta transmissível por hereditariedade. É um sacerdócio misterioso
que oferece em sacrifício não um animal, como o sacerdócio de Aarão e filhos
fazia, mas como o sacerdócio de Melquisedec que oferecia pão e vinho. Não
sabemos donde proveio Melquisedec, mas sabemos donde proveio Jesus, o sacerdote
para sempre à maneira de Melquisedec (vd Sl 110,4): proveio do seio do Pai. É um
sacerdócio simultaneamente novo e originário, de rutura e de retoma.
***
Embora o
termo hebraico (lachmá) e o termo grego (ártos) – aqui utilizados a significar “pão”
– possam referir-se tanto ao pão fermentado como ao ázimo, o contexto pascal
comemorativo do êxodo da terra do Egito (não teriam tempo de
produzir o pão fermentado)
leva a concluir que se trata do pão ázimo, o que outros lugares parecem confirmar.
Estão neste caso Lc 24,30.35 e Mc 2,24.
Enquanto
Marcos e Mateus referem que Jesus partiu o pão e o distribuiu, Lucas (Lc
22,19) refere que o
Mestre disse que o pão é o seu corpo entregue por eles e que mandara que fizessem
isto em memória dele.
Por falar
de cálice, anote-se que, das três ou quatro taças de vinho prescritas na ceia
pascal, Marcos refere apenas a que serviu para o rito eucarístico. E o
evangelista afirma que “todos beberam”,
ao passo que Mateus insere no relato o ato de beber como uma ordem de Cristo,
análoga à dada em relação ao pão: “Bebei
dele todos” (Mt 26,27). E justificou: “Porque este é o meu
sangue, sangue da Aliança, que vai ser derramado por muitos, para perdão dos
pecados” (Mt 26,28).
Isto revela que a Última Ceia, enquanto ceia pascal se vai transmutar em
memorial da ação de Cristo para comunhão, convívio dos discípulos à mesa, a
mesa da comunhão. Não se trata, porém, apenas duma reunião ou duma refeição
conjunta ou só da evocação dum evento – essas existiram naquela noite, mas cumprida
que foi a sua função preparatória, já passaram. Trata-se, sim, da comunhão (comida
e/ou bebida) no pão
e no vinho ora transformados no corpo e sangue de Cristo. Tanto assim é que
Lucas relata que, primeiro, “tomando
uma taça, deu graças e disse: «Tomai e reparti
entre vós, pois digo-vos que não tornarei a beber do fruto da videira, até
chegar o Reino de Deus” (Lc
22,17). É de registar o envolvimento dos discípulos na ação
de Cristo: “reparti entre vós”. A ação
de Cristo postula a cooperação humana.
O sangue
da aliança, que Lucas afirma claramente que é nova (vd
Lc 22,20), traduz o
pensamento de Jesus, que tanto vai do sangue que vai derramar em breve na cruz,
como sugere o uso do particípio presente grego ekchynnómenon, que pode entender-se como futuro iminente, como ao
vinho transformado em sangue, que, vertido no cálice, é oferecido imperativamente
aos convivas. Ora, os dois elementos – aquele particípio presente com valor de futuro
iminente e a presença do sangue no cálice – sugerem que o gesto de Cristo sobre
o vinho antecipa sacramentalmente o sacrifício do Gólgota, com o qual se acha
conexo. Por isso, é que a missa ou eucaristia, sendo reunião, banquete,
comunhão (momento de cenáculo), não deixa de ser sacrifício (momento de calvário). E tanto a mesa da ceia como o
patíbulo da cruz são altar sacrificial como mesa de comunhão na unidade a
partir das diversidades, rumo à santidade a partir das fragilidades, para a reunião
e aconchego, apesar do abandono e da dispersão, a confessar a fé no Filho de
Deus contra a descrença e a indiferença, a proclamar a bondade do Messias
perante os salteadores e os gozões ou indiferentes, como ocasião de
arrependimento e garantia de entrada no Reino.
O texto
indica o termo que significa “muitos” (ou “todos”), tal como em Mc 10,45. O termo
juntamente com a palavra “aliança” ou “testamento” lembra os textos de Isaías relativos
ao Servo de Javé (cf Is 49,8; e especialmente Is 53,12) e insinua que, além de selar a aliança,
o derramamento do sangue de Jesus o valor de sacrifício expiatório pela
humanidade.
O Reino
de Deus de que fala o texto de Marcos ou Reino do Pai de Jesus, como assinala
Mateus, é o reino escatológico a cuja mesa do banquete (a
metáfora do banquete)
se virão sentar, com Abraão, Isaac
e Jacob, muitos do Oriente e do Ocidente (cf
Mt 8,11). Ora o
vinho é elemento indispensável de qualquer banquete e é aqui chamado o fruto da
videira como no ritual hebraico da Páscoa (cf Nm 6,4). E será um vinho novo, de natureza
diferente e de melhor efeito.
Paulo,
na 1.ª Carta aos Coríntios, aduzindo que recebeu do Senhor o que também
transmitiu aos Coríntios (cf 1Cor 11,23a), relata:
“O Senhor Jesus na
noite em que era entregue, tomou pão e, tendo dado graças, partiu-o e disse: ‘Isto
é o meu corpo, que é para vós; fazei isto em memória de mim’. Do mesmo modo,
depois da ceia, tomou o cálice e disse: ‘Este cálice é a nova Aliança no meu
sangue; fazei isto sempre que o beberdes, em memória de mim’. Porque, todas as
vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, anunciais a morte do
Senhor, até que Ele venha’.” (1Cor 11,23b-26).
Confirma
o que dizem os sinóticos e detalha ainda melhor: este pão é o Corpo de Cristo
para os discípulos; por sinédoque, o cálice é a nova Aliança no sangue de Cristo;
tomar o pão-corpo de Cristo e beber do cálice-sangue de Cristo em Aliança há de
fazer-se em memória do Senhor; oferecer o Corpo e o Sangue de Cristo em sacrifício
ao Pai e dá-los em comunhão implica anunciar a morte do Senhor enquanto se
aguarda a sua vinda no tempo da escatologia.
Depois,
há que notar que, dado que para os hebreus o dia começa na tarde do que para
nós é o dia anterior e tendo em conta a unidade de tempo da tragédia grega (24
horas), é de considerar
que, em certa medida, a última ceia, a entrega e a Paixão do Senhor se operaram
no mesmo dia. Tal é a conexão dos elementos deste ato único de Jesus. Com
efeito, o texto de Marcos sugere a continuidade da ação única: “Após o canto dos salmos,
saíram para o Monte das Oliveiras” (Mc
14,26; cf Mt 26,30).
Por isso, a oração da fé da Igreja sintetizou a profundidade do mistério:
“Ó sagrado banquete, em que se recebe Cristo
e se comemora a sua paixão,
em que a alma se enche de
graça
e nos é dado o penhor da
futura glória”.
Bendito o Senhor que se entregou no
Sacramento de Quinta-Feira Santa em comunhão e sacrifício!
2018.03.29 – Louro de Carvalho
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