sexta-feira, 30 de março de 2018

Jesus e a consciência da solidão humana


Quando entrou pomposamente em Jerusalém, Jesus sabia que ia ser glorificado. Porém, esta glorificação que estava nos escaninhos do desígnio divino é uma glorificação que humanamente constitui loucura ou escândalo. Com efeito, depois de Judas abandonar a mesa da Ceia, à ordem do Mestre, “Faz o que tens a fazer” (cf Jo 13,27.31), Jesus disse para os que ficaram:
Agora é que se revela a glória do Filho do Homem e assim se revela nele a glória de Deus. E, se Deus revela nele a sua glória, também o próprio Deus revelará a glória do Filho do Homem, e há de revelá-la muito em breve.” (Jo 13,31-32).
O Mestre, que as multidões seguiam, que gostavam muito das suas encantadoras palavras, testemunhavam os seus prodígios, que até o haviam querido fazer rei e que acabaram por bradar pela sua crucifixão, ficará sozinho e marcado pela traição, negação, fuga, escárnio, cobardia e indiferença. E Ele tinha plena consciência disso.
***
Primeiro, vem o conhecimento da traição: uma venda a dinheiro. E o sinal que Judas daria para eles conhecerem Jesus era um beijo (cf Mc 14,44).
Quando o Iscariotes, um dos Doze, foi ter com os sumos sacerdotes para lhes entregar Jesus, eles ouviram-no com satisfação e prometeram dar-lhe dinheiro. E Judas espreitava ocasião favorável para O entregar (Mc 14,10-11). Estes dois versículos ligam-se aos vv 1 e 2, que referem: “Faltavam dois dias para a Páscoa e os Ázimos; os sumos sacerdotes e os doutores da Lei procuravam maneira de capturar Jesus à traição e de o matar, mas diziam: ‘Durante a festa não, para que o povo não se revolte’.” (Mc 14,1-2).
Ora, Jesus, bom conhecedor dos corações, bem sabia quem era Judas, o elemento do colégio apostólico que era ambicioso e ladrão, como refere João (cf Jo 12,6), e possuído de Satanás, como refere Lucas (cf Lc 22,3) e João (cf Jo 13,27). Por isso, anunciou a traição durante a própria Ceia e fê-lo sem rodeios: “um de vós há de entregar-me, um que come comigo” (Mc 14,18; cf Lc 22,21). E, perante as dúvidas sobre quem seria, esclareceu: “É um dos Doze, aquele que mete comigo a mão no prato” (Mc 14,20). Mateus até refere que Judas perguntou se seria ele próprio ao que o Mestre respondeu: “Tu o disseste” (cf Mt 26,25).
Por seu turno, João informa que à pergunta do discípulo amado sobre quem seria, respondeu: “É aquele a quem Eu der o bocado de pão ensopado. E molhando o bocado de pão, deu-o a Judas, filho de Simão Iscariotes. E, logo após o bocado, entrou nele Satanás.” (cf Jo 13,25-27).
***
Passando ao conhecimento do abandono e da negação, Marcos assinala que, “após o canto dos salmos, saíram para o Monte das Oliveiras”, pois, como conclusão da Ceia Pascal, recitava-se ou cantava-se a segunda parte do Hallel (que abrange os salmos 115 a 118, sendo que os salmos 113 e 114 constituíam a primeira parte). Depois, Jesus profetizou: “Todos ides abandonar-me, pois está escrito: Ferirei o pastor e as ovelhas hão de dispersar-se. Mas, depois de Eu ressuscitar, hei de preceder-vos a caminho da Galileia.”. Porém, Simão Pedro garantiu que, mesmo que todos venham a abandonar o Mestre, ele não o abandonaria. E com Pedro todos afirmavam a mesma coisa. Todavia, Jesus voltou-se para Pedro e disse: ‘Em verdade te digo, que hoje, esta noite, antes de o galo cantar duas vezes, tu me terás negado três vezes’. E Pedro insistia com mais ardor: ‘Mesmo que tenha de morrer contigo, não te negarei’.” (cf Mc 14,26-31; Mt 26,30-35).
Não será despiciendo rever o que escrevem Lucas e João.
Lucas relata assim o anúncio da negação de Pedro:
E o Senhor disse: ‘Simão, Simão, olha que Satanás pediu para vos joeirar como trigo. Mas Eu roguei por ti, para que a tua fé não desapareça. E tu, uma vez convertido, fortalece os teus irmãos.’. Mas ele respondeu-lhe: ‘Senhor, estou pronto a ir contigo até para a prisão e para a morte’. Jesus disse-lhe: ‘Eu te digo, Pedro: o galo não cantará hoje sem que, por três vezes, tenhas negado conhecer-me’.” (Lc 22,31-34).
E João refere:
Disse-lhe Simão Pedro: ‘Senhor, para onde vais?’. Jesus respondeu-lhe: ‘Para onde Eu vou, tu não me podes seguir por agora; hás de seguir-me mais tarde’. Disse-lhe Pedro: ‘Senhor, porque não posso seguir-te agora? Eu daria a vida por ti!’. Replicou Jesus: ‘Darias a vida por mim? Em verdade, em verdade te digo: não cantará o galo, antes de me teres negado três vezes’!” (Jo 13,36-38).
Enquanto em Lucas é Jesus quem toma a iniciativa da conversa, em João é Pedro quem inicia o discurso com uma pergunta. Seja como for, o relato dos quatro evangelistas revela o caráter resoluto e destemido de Pedro e a resposta amarga de Jesus entre a predição do abandono para cumprimento das escrituras e a negação de Pedro, fruto da timidez e da cobardia, algo parecida com a de Pilatos. Pilatos, sabendo da inocência do Justo (Jo 18,39) e que fora entregue por inveja (Mc 15,10), mandou-o flagelar, cobrir com um manto de púrpura e apresentá-lo como o rei quase desnudo e, depois, entregá-lo para a crucifixão, lavando as mãos dessa clara responsabilidade (cf Jo 19,1-5; Mt 27,24).
Na predição das negações de Pedro narrada por todos os evangelistas, Marcos é o que mostra menor benevolência para com Pedro retratando-lhe ao vivo a psicologia e o poder arrebatador em relação aos demais.
Não obstante, São João Crisóstomo comenta que naquela posição resoluta de Pedro não há temeridade nem mentira, mas fé e amor ardente da parte do apóstolo para com o seu Senhor e Salvador. À face desta sinceridade petrina, embora com um défice de humildade, Jesus não quer que os discípulos se iludam: vai haver abandono e dispersão, vai acontecer a tripla negação de Pedro – e deixou como sinal de confirmação do facto consumado o duplo cantar do galo –; e o Mestre vai ser contado entre os malfeitores, como refere Lucas (cf Lc 22,37). Porém, é no âmbito destas predições a primeira vez que Jesus marca um encontro para depois da Ressurreição, embora a tenha anunciado com a sua morte por várias vezes: “Mas, depois de Eu ressuscitar, hei de preceder-vos a caminho da Galileia” (Mc 14,28).
***
E aconteceu a solidão do Mestre na agonia, pois os discípulos adormeceram (Mc 14,37-40); a traição deu-se com o beijo de Judas (Mc 14,43-4) e todos fugiram: Então, os discípulos, deixando-o, fugiram todos. Um certo jovem, que o seguia envolto apenas num lençol, foi preso; mas ele, deixando o lençol, fugiu nu.” (Mc 14,50-51). Pedro, que acompanhava de perto os acontecimentos no tribunal judaico, quando interpelado, negou o seu Mestre a ponto de dizer desconhecer tal homem, praguejar e jurar (cf Mc 14,66-71). Porém, quando o galo cantou pela segunda vez, lembrou-se da predição do Mestre e Senhor e desatou a chorar (cf Mc 14,72). 
Marcos, relatando o episódio da negação, regista muitos pormenores relativos à caraterização psicológica das personagens e apresenta uma narrativa genuinamente natural. Pedro nem dá conta de que é reconhecido pelo sotaque galileu. E curiosamente nunca menciona o nome de Jesus. Mesmo quando faz a negação formal do Mestre, refere-se-lhe como “esse homem de quem falais”.
***
Tal como no pretório O escarneceram e insultaram, no alto da cruz, surge o insulto, o escárnio e o desafio a que desça da cruz para que os outros acreditem:
Os que passavam injuriavam-no e, abanando a cabeça, diziam: ‘Olha o que destrói o templo e o reconstrói em três dias! Salva-te a ti mesmo, descendo da cruz!’. Também os sumos sacerdotes e os doutores da Lei troçavam dele entre si: ‘Salvou os outros, mas não pode salvar-se a si mesmo! O Messias, o Rei de Israel! Desça agora da cruz para nós vermos e acreditarmos!’. Até os que estavam crucificados com Ele o injuriavam.” (Mc 15,29-32).
E Jesus sentiu, naquele instante, o abandono marcado pela escuridão da terra e aparentemente o abandono do próprio Pai. É o que pode revelar o grito em aramaico hebraizante: Eloí, Eloí, lemá sabachtáni?, que quer dizer: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”. Porém, como supuseram alguns dos circunstantes, nem estava a ser abandonado por Deus nem estava a chamar por Elias nem esperava que Elias o viesse salvar.
O chamamento por Elias é um equívoco de sabor brincalhão e sarcástico. Elias, além de ser esperado como o precursor do Messias (missão desempenhada por João Batista), era popularmente considerado como socorro dos atribulados.
As palavras que Jesus proferiu pelas três horas da tarde de sexta-feira, constituem apenas o início do salmo 22. Porém, como o entendiam os judeus piedosos, devem ser entendidas no contexto do salmo todo. Como ainda hoje, quando enunciamos em voz alta Pai-Nosso ou Avé-Maria, dizemos em silêncio a oração inteira, os judeus, quando proferiam o início dum salmo, assumiam-no na íntegra. Ora, no Calvário, o Messias não profere um grito de desesperado nem daquele que foi condenado por Deus, mas o grito do Justo que se declara seguro da intervenção divina, apesar da própria fraqueza, e que finalmente triunfará dos seus inimigos. Além disso, como refere o final do salmo, este momento tem um significado messiânico. Assim, Jesus quis proclamar ao povo judeu a sua messianidade. Com efeito, podem ler-se os segmentos messiânicos do Salmo 22 (vv 27-32):
Os pobres comerão e serão saciados; louvarão o SENHOR, os que o procuram. ‘Vivam para sempre os vossos corações’. Hão de lembrar-se do SENHOR e voltar-se para Ele todos os confins da terra; hão de prostrar-se diante dele todos os povos e nações, porque ao SENHOR pertence a realeza. Ele domina sobre todas as nações. Diante dele hão de prostrar-se todos os grandes da terra; diante dele hão de inclinar-se todos os que descem ao pó e assim deixam de viver. Uma nova geração o servirá e narrará aos vindouros as maravilhas do Senhor. Ao povo que vai nascer dará a conhecer a sua justiça, contará o que Ele fez.”.
Para todos os efeitos o grito de Jesus registado por Mateus e Marcos equivale ao ato de confiança registado por Lucas, “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46) e o “Tudo está consumado” (Jo 19,30), registado por João.  Na verdade, cumpriu o discurso do Getsémani:
Abbá, Pai, tudo te é possível; afasta de mim este cálice! Mas não se faça o que Eu quero, e sim o que Tu queres.” (Mc 14,36).
Cumpriu-se o que escreveu João: “Desci do Céu não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou” (Jo 6,38).
Finalmente, com o Senhor abandonado por quase todos, menos pelas mulheres e pelo discípulo amado que recebeu a Mãe de Jesus em testamento e ela o acolhe como filho discípulo por vontade do filho mestre, solidariza-se o véu do Templo rasgando-se de alto a baixo. E acolhe-o a Natureza, a criação; e do túmulo se levantará redivivo para alegria dos discípulos e motivo para a missionação pelo mundo inteiro.
A consciência da solidão e a sua aceitação provisória geram o dinamismo da comunidade, da Igreja, da família intensa, global – referenciada a Jesus Cristo em prol da humanidade sedenta.
2018.03.30 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário