"Prece, pobres e paz" São
as três palavras com que o Papa resumiu o carisma da Comunidade de Santo
Egídio, quando a visitou em 15 de junho de 2014, no bairro “Trastevere”, onde
ela nasceu, e que repetiu na visita que lhe fez aquando da visita no passado
dia 11 de março, por ocasião das suas celebrações cinquentenárias.
Saudou
a comunidade que vive em Roma, bem como as comunidades dispersas pelo mundo,
com especial menção para o professor Andrea Riccardi (seu fundador), que teve a feliz
intuição deste caminho, e o presidente, professor Marco Impagliazzo.
Salientou
não se tratar de festa apenas de celebração do passado, mas também e sobretudo
de uma “jubilosa manifestação de responsabilidade em relação ao futuro”, o que
remete para a parábola dos talentos, que fala dum homem que, “antes de viajar,
reuniu os servos, confiando-lhes os seus bens” (Mt 25,14). E isto aplica-se a
cada um dos membros da comunidade, a quem é entregue ao menos um talento,
qualquer que seja a idade. Nesse talento está inscrito o carisma da comunidade: prece,
pobres e paz. E, recordando palavras de há 4 anos, disse:
“Caminhando assim, contribuís para fazer prosperar a compaixão no cerne
da sociedade – que é a verdadeira revolução, a da compaixão e da ternura,
aquela que nasce do coração – para fazer crescer a amizade e não os fantasmas
da inimizade e da indiferença”.
***
Em
2014, fitando o olhar no Cristo que vê, do alto do mosaico, “com olhos ternos e
profundos”, e na “Virgem Maria que O cinge com o seu braço”, frisou que a
antiga Basílica de Santa Maria in
Trastevere se tornou “lugar de oração quotidiana para numerosos romanos e
peregrinos”. E esclareceu que “rezar no centro da cidade” não significa “esquecer
as periferias humanas e urbanas”, mas “ouvir e acolher aqui o Evangelho do amor
para ir ao encontro dos irmãos e das irmãs nas periferias da cidade e do mundo
inteiro”. De facto, cada comunidade, apesar da vida agitada da cidade, é
chamada à prece/oração, que preserva o homem contra as tentações do protagonismo
“que faz com que tudo gravite ao redor do indivíduo, a indiferença, a
vitimização. Ora, a oração “consiste em ouvir a Palavra de Deus”, este pão “que
nos dá força”, nos faz ir em frente e “dirigir o olhar para Ele”.
E,
como “quem olha para o Senhor vê o próximo”, com o qual se identifica Jesus, a
comunidade aprendeu a ver os outros, sobretudo os mais pobres de modo que nela “se confundem os que ajudam com os ajudados”,
ressaltando como protagonista não uns ou outros, mas o encontro, o abraço. E, verificando
a existência de muitos idosos na comunidade e a proximidade que deles se
cultiva, o Papa considerou:
“O modo de tratar os idosos, assim como as crianças, constitui um
indicador para ver a qualidade de uma sociedade. Quando os idosos são
descartados, quando os anciãos vivem isolados e às vezes morrem desprovidos de
carinho, é mau sinal! Ao contrário, como é positiva a aliança que vejo aqui,
entre jovens e idosos, na qual todos recebem e doam! Os anciãos e a sua oração
constituem uma riqueza para a Comunidade de Santo Egídio.”.
Assegurando
que povo que não “tutela” os idosos, os jovens é povo “sem futuro”, “desprovido
de esperança” – pois os jovens, as crianças, os adolescentes (“com o seu viço biológico”) e os idosos (“conferindo-lhes a memória”) “fazem progredir a
história” – disse que uma sociedade que “não tem memória está perdida” e entra
na cultura do descartável, “para manter um equilíbrio” onde “no centro da
economia mundial não se encontram o homem e a mulher”, mas “o ídolo dinheiro”.
E
enumerou as valências funestas do descarte:
“Descartam-se as crianças: não se querem filhos! Pensemos apenas na taxa
de nascimentos de crianças na Europa: na Itália, na Espanha, na França... E
descartam-se os idosos, com atitudes por detrás das quais existe uma eutanásia
escondida, uma forma de eutanásia. Eles não são úteis, e o que não serve é
descartado. Quem não produz é descartado. E hoje a crise é tão grande que se
descartam até os jovens: é suficiente pensar nos 75 milhões de jovens com menos
de 25 anos, que são ‘nem-nem’: nem trabalho, nem estudo. Nada têm.”.
Depois,
arrancou com uma declaração emblemática: “É a partir dos pobres e dos idosos
que se começa a mudar uma sociedade”. E justificou, por analogia, com o que se
passa com Jesus:
“Jesus diz de si mesmo: ‘A pedra rejeitada pelos construtores tornou-se
a pedra angular’ (Mt 21,42).
Inclusive os pobres são, de certa maneira, ‘pedras angulares’ destinadas à
construção da sociedade.”
Em
posição contrastante com o Evangelho, “uma economia especulativa torna-os cada
vez mais pobres, privando-os do essencial, como a casa e o trabalho”, o que “é
inaceitável”. Ora, “quem vive a solidariedade não aceita esta situação e reage”.
E, enquanto “muitas pessoas desejam eliminar do dicionário a palavra ‘solidariedade’,
porque para uma determinada cultura ela parece um palavrão”, é preciso lembra e
insistir que “a solidariedade é uma palavra cristã”. E é por isso, que a
Comunidade de Santo Egídio, no dizer de Francisco é “uma família para os
desabrigados”, amiga “das pessoas portadores de deficiência que, quando são
amadas, exprimem uma grande humanidade” e de muitos “imigrantes que chegaram
empreendendo viagens dolorosas e arriscadas”. E o acolhimento solícito na convicção
de que “o estrangeiro é nosso irmão, que deve ser conhecido e ajudado” mostra
rejuvenescimento.
Assim,
de Santa Maria ‘in Trastevere’, o Papa saudou quantos fazem parte desta Comunidade
noutros países do mundo, encorajando-os “a serem amigos de Deus, dos pobres e
da paz”, pois “quem vive assim receberá a bênção na vida e será bênção para os
outros”.
E
salientou outra faceta da Comunidade – a busca da paz – declarando:
“Nalguns países que sofrem por causa da guerra, vós procurais manter
viva a esperança da paz. Trabalhar em prol da paz não produz
resultados rápidos, mas é uma obra para artífices pacientes, que procuram
quanto une, e põem de lado aquilo que divide, como já dizia são João XXIII.”.
E,
entrando num alinha de síntese, adverte para a necessidade de “mais oração e
diálogo”, pois, “sem diálogo, o mundo sufoca”. Porém, “o diálogo só é possível
a partir da própria identidade”, não se podendo “fazer de conta”, não se podendo
negociar a identidade. E é nestas bases que se pode e deve oferecer a “contribuição
para promover a amizade entre as religiões”. E, indo “em frente ao longo desta
vereda – prece, pobres e paz” – se contribui “para fazer prosperar a compaixão no cerne da
sociedade, que é a verdadeira revolução, a da compaixão e da ternura, para
fazer crescer a amizade e não os fantasmas da inimizade e da indiferença”.
***
Passados quase 4 anos, Francisco retoma a carismática
trilogia “Prece, pobres e paz” com “o talento da Comunidade, amadurecido em 50 anos” e que é importante
receber novamente “com alegria”. Mas avisa que, na parábola, “um servo esconde
o talento num buraco”, justificando-se com o medo. E, “porque se deixou
aconselhar pelo medo”, o servo “não soube investir o talento no futuro”. Daqui
parte o Bispo de Roma para a denúncia de um mundo muitas vezes habitado pelo medo
e pela raiva (irmã
do medo) na
esteira do que disse o professor
Riccardi.
E
o Papa, tendo em conta que se trata duma doença antiga, pois, “na Bíblia
aparece com frequência o convite a não ter medo”, diz que “a nossa época conhece
grandes temores diante das vastas dimensões da globalização”, recaindo os
temores “muitas vezes em quem é estrangeiro, diferente de nós, pobre, como se
fosse um inimigo”. Chegamos ao ponto de programar a nossa defesa individual e coletiva
destas pessoas, “julgando preservar aquilo que possuímos ou o que somos”,
podendo esta “atmosfera de medo” vir a “contagiar até os cristãos que, como
aquele servo da parábola, escondem o dom recebido: não o investem no futuro,
não o partilham com o próximo, mas conservam-no para si mesmo”.
Ora,
sabendo que, “se permanecemos sós, somos facilmente arrebatados pelo medo”,
Francisco diz desta Comunidade, fundada nos finais dos anos sessenta, portanto “filha
do Concílio, da sua mensagem e do seu espírito”:
“Mas o vosso caminho leva-vos a olhar juntos para o futuro: não
sozinhos, não para vós mesmos. Juntos, com a Igreja. Beneficiastes
do grande impulso à vida comunitária e ao ser povo de Deus, vindo do Concílio
Vaticano II, que afirma: ‘Contudo, aprouve a Deus salvar e santificar os
homens, não individualmente, excluindo qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os
como um único povo’.” (LG n. 9).
E
o Papa sabe que, perante a incerteza sobre o futuro do mundo, perante cenários
de guerras e de outras tragédias, naturais e civilizacionais, a Comunidade de Santo
Egídio reza e trabalha pela paz e tem a Palavra do Senhor como “luz na
escuridão” e a oferecer “esperança de paz”, a ajudar “a não ter medo nem sequer
diante da força do mal”. Mais: acolhe a Palavra de Deus “com
espírito de festa” e recebendo aquilo que o Pontífice “quis propor para cada
comunidade, no encerramento do Jubileu da Misericórdia: que um domingo por ano
seja dedicado à Palavra de Deus” (cf Misericordia et misera).
Considerando
que, no passado, a Palavra de Deus protegeu esta Comunidade “das tentações da
ideologia e hoje a liberta da intimidação do medo”, o Pontífice, exortou-a “a
amar e a frequentar sempre mais a Bíblia”, pois “cada um encontrará nela a
nascente da misericórdia pelos pobres, pelos feridos da vida e da guerra”.
Com
a Palavra de Deus como lâmpada a iluminar o “olhar para o futuro”, é possível “ler
os sinais dos tempos”, na linha do que afirmava Paulo VI:
“A descoberta dos ‘sinais dos tempos’ [...] deriva de um confronto da fé
com a vida, de tal modo que ‘para nós o mundo se torna um livro” (Audiência
geral, 16 de abril de 1969: Insegnamenti VII, 1969,
919).
Diz
o Papa que este é o livro que deve ser lido, “esta é a espiritualidade que vem
do Concílio e que ensina uma grande e atenta compaixão pelo mundo”.
Verificando
que, desde o nascimento desta Comunidade, o mundo se tornou “global” e, de
certo modo, se unificaram a economia e as comunicações, mas que, “para muitas
pessoas, especialmente pobres, se ergueram novos muros, o Pontífice sublinha a
necessidade da construção da “globalização da solidariedade e do espírito”. Face às diversidades como “ocasião
de hostilidade e de conflito”, é preciso ter em conta que “o futuro do mundo
global consiste em viver juntos” e que “este ideal exige o compromisso de
edificar pontes, manter aberto o diálogo, continuar a encontrar-se”.
Porém,
diz o Papa que não se trata apenas de “um dado político ou organizacional”. Exige-se,
antes, de cada um a mudança do “próprio coração, assumindo um olhar
misericordioso em relação ao outro, para se tornar artífice de paz e
profeta de misericórdia”. Com efeito, o samaritano da parábola evangélica “ocupou-se
do homem meio morto na estrada, porque o “viu e sentiu compaixão” (Lc 10,33). Apesar de não ter uma
responsabilidade específica pelo homem ferido e ser estrangeiro, não obstante, “comportou-se
como irmão, porque teve um olhar de misericórdia”. Ora, por vocação, “o cristão
é irmão de cada homem, de modo particular se for pobre e até se for inimigo”. Por
isso, a pergunta “Que tenho a ver com
isto?” é a forma de lavar as mãos como Pilatos. Em contraponto, segundo o dinamismo
do Evangelho, “um olhar misericordioso compromete-nos na audácia criativa do
amor, tão necessária”, pois “somos irmãos de todos e, por isso, profetas de um
mundo novo; e a Igreja é sinal de unidade do género humano, entre povos,
famílias e culturas”.
Finalmente,
o Pontífice apelou a que a celebração cinquentenária não fosse um tempo de balanços
ou de avaliação de dificuldades e resultados, mas, em sentido cristão, um tempo
“em que a fé é chamada a tornar-se nova audácia pelo Evangelho”, com “a paciência de uma missão
quotidiana na cidade e no mundo”, a missão de “voltar a urdir pacientemente o
tecido humano das periferias, que a violência e o empobrecimento dilaceraram;
de anunciar o Evangelho através da amizade pessoal; de demonstrar como uma vida
se torna verdadeiramente humana, quando é vivida ao lado dos mais pobres; de criar
uma sociedade em que ninguém mais seja estrangeiro” – “de ultrapassar os
confins e os muros, a fim de reunir”. E exortou:
“Prossegui audaciosamente ao longo deste caminho. Continuai a estar ao
lado das crianças das periferias, com as Escolas da Paz, que eu visitei;
continuai a estar ao lado dos idosos: às vezes são descartados, mas para vós
são amigos. Continuai a abrir corredores humanitários para os refugiados da
guerra e da fome.”.
Porque
“Os
pobres são o vosso tesouro”!
2018.03.19 –
Louro de Carvalho
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