terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Equívoco em cima de equívoco

A TAP era uma empresa pública a que muitos atribuíam caraterísticas de empresa de bandeira e decisiva para a estratégia nacional. Dadas as vicissitudes por que passava e as constrições que a nossa integração na zona Euro implicava, o XIV Governo entendeu procurar um parceiro estratégico para este grupo que integrava o setor empresarial do Estado. Desde então nunca mais o “látego” privatizador se arredou do horizonte da transportadora aérea nacional.
O memorando de entendimento inscrevia nas suas páginas a privatização da TAP, a par de outras, com vista a um significativo encaixe financeiro e como forma de dar corpo a um considerável bolo da reforma estrutural do Estado, alegadamente em consonância com o princípio de “menos Estado para melhor Estado”.
Pelos vistos, o encaixe financeiro previsto terá sido largamente excedido ainda sem a privatização desta empresa. Por outro lado, algumas das empresas ditas privatizadas, designadamente a EDP e a REN, sob a capa da “privatização”, limitaram-se a nova nacionalização indireta ao passarem para as mãos de empresas públicas do Estado chinês. Só que sobre o Estado chinês a Comissão Europeia não tem poder! E outras empresas foram apenas objeto de venda a pataco.
Entretanto, o XIX Governo determinou e o XX Governo (já apeado) consumou a privatização da companhia aérea. Porém, o líder do XXI Governo, conforme prometera, logrou, no passado dia 6 de fevereiro, reverter a privatização, não exatamente no sentido do que pretendia, mas no que diz ter sido a negociação possível e na salvaguarda formal da posição do Estado. Recordo:
O Governo paga 1,9 milhões de euros para o Estado ficar com 50% da TAP (em vez dos 34% que passara a deter desde meados de novembro), em resultado das negociações com o consórcio Gateway, que detinha 61% do capital da companhia e que agora fica com 45%, podendo chegar aos 50%, com a eventual aquisição do capital à disposição dos trabalhadores. Embora o Governo respeite a índole privada da gestão da empresa, o Estado fica com o poder de intervir na definição ou redefinição da direção estratégica da transportadora aérea, uma vez que lhe cabe a designação de metade dos membros do Conselho de Administração (seis) e, de entre estes, designar o Presidente, que detém o voto de qualidade.
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Face a este acordo entre o Estado e o consórcio privado, o presidente da Câmara Municipal do Porto, em conferência de imprensa do passado dia 8, pediu ao Governo que ordenasse o restabelecimento das ligações internacionais que a TAP quer suspender a partir do aeroporto Francisco Sá Carneiro. E, em abono da sua tomada de posição, aduz o seguinte:
“O aeroporto do Porto não tem sido um ‘hub’ [plataforma giratória de uma companhia aérea, onde existe um grande número de ligações diretas a grandes cidades] da TAP. O Governo disse que a razão fundamental de reassumir 50% da TAP é para que haja um ‘hub’ no Porto. Para isso, é preciso um sinal, dando ordens à administração da TAP para que não sejam interrompidas as ligações a Roma (Itália), Milão (Itália), Bruxelas (Bélgica) e Barcelona (Espanha), ou o voo noturno de Gatwick (Londres, Inglaterra)”.
Rui Moreira defendeu que, com o Estado a deter 50% da transportadora, a TAP deve prestar “um serviço público” e que “o serviço público deve ser prestado em todo o território”.
A propósito desta pretensão do autarca portuense, o professor Vital Moreira, produziu um texto a que deu o título de Equívoco, publicado no blogue “Causa nossa”, que partilha com outras figuras públicas como Ana Gomes, Jorge Wemans, Luís Filipe Borges, Luís Nazaré, Luís Osório, Maria Manuel Leitão Marques e Vicente Jorge Silva.
Naquele texto, o eminente jurista recorda que “a TAP já não é uma empresa pública”. Começando por verificar que o Presidente da Câmara Municipal do Porto pretende que o Governo “imponha à TAP a manutenção de alguns voos que a companhia quer descontinuar de/para o aeroporto de Pedras Rubras”, saúda a militância do autarca portuense “pelos interesses da sua cidade e região, sendo de esperar que a empresa reanalise a sua decisão”. Todavia, tenta esclarecer que a TAP perdeu a qualidade de empresa pública “com a privatização e que não a recuperou com o recente acordo entre o Governo e os compradores”; por outro lado, não é “uma empresa concessionária de serviço público, à qual o Governo possa dar ordens ou impor condições”. Além disso, “mesmo enquanto empresa pública, a TAP era uma empresa que operava num mercado concorrencial, pelo que a sua gestão devia guiar-se por critérios comerciais”. E conclui:
“Impor a empresas públicas que operam no mercado a realização de operações contrárias à gestão comercial sempre constituiu uma das piores pechas da gestão pública, com pesados encargos para os contribuintes”.
Como se vê, Vital Moreira, embora aprecie a militância de Rui Moreira, descalça-o com o argumento de que o governo não pode “dar ordens nem impor condições” a uma empresa que funciona no mercado concorrencial, nem sequer o podia fazer quando esta ainda estava sob gestão estatal.
Será por isso que a administração da empresa ter-se-á desenvolvido durante anos sem qualquer indicação estratégica da parte do Estado enquanto seu acionista único e sem contrato de empresa devidamente atualizado (como foi afirmado em Programa televisivo “Prós e Contras”, que ninguém desmentiu)? Será por isso que a TAP, atuando em regime concorrencial, pautada por critérios exclusivamente comerciais, registava défices de pontualidade superiores ao comum das demais transportadoras aéreas, praticava preços bastante mais elevados, apresentava aeronaves mais obsoletas e o serviço de acompanhamento aos passageiros não era dos melhores?
Não acredito que os princípios jurídicos possam dar cobertura a administração à vista, gestão deficiente e medíocre prestação de serviço.
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É certo que fonte do Governo declarou ao Jornal de Negócios que o Governo não interferirá na definição das rotas da TAP, designadamente nas ligações a partir do aeroporto do Porto, consideradas deficitárias (pelos vistos, contra a verdade das coisas), mesmo com o Estado a reassumir 50% do capital da companhia aérea, já que “as decisões sobre as rotas da TAP são da comissão executiva”. Parece que a exceção a esta regra serão as ligações aos Açores, que têm natureza de serviço público.
Por isso, o Executivo, nesta linha de ideias, não pretende interferir na decisão tomada pela administração da TAP no sentido de suspender, a partir de 27 de março, as ligações do Porto a Roma, Milão, Bruxelas e Barcelona, pois, na ótica do Governo, o aeroporto do Porto “é, estrategicamente, uma base operacional relevante, mas não é um hub”.
Porém, o Primeiro-Ministro, António Costa, disse, no passado dia 6, após a assinatura do predito acordo, que “o acordo para a reversão da privatização da TAP deixa o Governo com margem para intervir sobre a manutenção de uma base no Porto”.
É perfeitamente legítimo que Rui Moreira, perante a celebração do acordo de reversão e as declarações do Primeiro-Ministro, espere uma significativa mudança e não que tudo fique na mesma. Também é natural que não aceite como compensadora a intenção da administração da TAP de passar a ter uma ponte aérea entre Lisboa e Porto, com voos de hora a hora e com preços a partir de 39 euros. As coisas nem se equivalem nem se excluem. Para voos low cost e internos não apreciaríamos duma TAP. Por outro, lado o autarca tem razão quando sustenta que “o serviço público deve ser prestado em todo o território”.
Quanto ao escrito de Vital Moreira, é óbvio que a TAP já operava no regime concorrencial, que deixou de ser uma empresa pública e que o recente memorando de entendimento entre o Estado e os ditos compradores não a restituiu ao setor empresarial do Estado nem a tornou, por si só, concessionária de um serviço público. No entanto e sem tal ser assumido formalmente por ninguém, a situação atual da TAP configura a de uma parceria público-privada em que há deveres e direitos, contrapartidas e réplica de contrapartidas. Assim, o Estado restitui algum do dinheiro que recebera ou devia ter recebido; a situação de participação no capital é no máximo 50-50; a gestão é privada, mas a direção estratégica é partilhada, ficando o Estado com o poder de decisão em situação de empate.
Resta saber o que deve entender-se por mera gestão e direção estratégica e, sobretudo, quando uma determinada matéria na mesa das negociações com vista à decisão final assumirá ou não uma importância estratégica. A título de exemplo, tal como hoje a ligação Continente Açores-Continente hoje configura a natureza de serviço público e esta região autónoma tem uma companhia própria, a SATA AIR Açores, também outras ligações aéreas podem vir a configurar essa natureza de serviço público. E o que se entende por serviço público? Quem o deve decidir?
Ademais, conforme o Estado pode negociar serviços com entidades com as quais não tem presentemente qualquer pareceria, melhor os poderá celebrar com quem tem parceria estabelecida.
Sendo assim, penso que as advertências de Moreira constitucionalista, mesmo que pertinentes do ponto de vista da ciência jurídica, não podem impedir Moreira autarca de militar pelos interesses da sua autarquia e da sua área metropolitana, o qual fará melhor a pressionar a TAP e o Governo do que a privilegiar as companhias aéreas da concorrência. É que para a TAP os contribuintes já contribuíram e continuarão a contribuir.

2016.02.09 – Louro de Carvalho

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