Segundo
o jornal Público, de 23 do corrente
mês de fevereiro, Marcelo Rebelo de Sousa, já Presidente da República, vai
participar numa “celebração ecuménica em sentido lato” (em título, é
denominada como inter-religiosa) na Mesquita de Lisboa na tarde de dia
9 de março, dia em cuja manhã ocorrerá a cerimónia da sua tomada de posse e
compromisso presidencial na Assembleia da República.
Ainda de acordo com o mesmo jornal, esta iniciativa, que é inédita em Portugal
num contexto destes, está a ser organizada para assinalar a sua posse tendo
como objetivo genérico alertar para “a necessidade de entendimento entre
religiões e culturas”. Porém, os seus objetivos imediatos são: “concentrar
atenções e apelar à busca de uma solução para o drama dos refugiados do Médio
Oriente que têm fugido para a Europa”; e significar “uma manifestação contra os
ataques terroristas que têm surgido na Europa e por todo o mundo”.
Esta celebração “inter-religiosa” (é esta a denominação mais adequada) da Mesquita de Lisboa conta com a participação, além de muçulmanos e de cristãos
(católicos, evangélicos e adventistas), de outras confissões religiosas, como judeus e budistas, esperando-se a
representação de cerca de duas dezenas de Confissões, dentro do espírito
ecuménico e do diálogo inter-religioso que bebe na doutrina do Vaticano II,
cara a Marcelo Rebelo de Sousa, que se tem apresentado como assumidamente
católico.
***
Antes
de mais, importa precisar os conceitos.
Assim,
ecumenismo é um processo de busca unitário. O vocábulo “ecuménico” provém do
adjetivo grego οἰκουμένη referido a γη, que significa (terra) habitada. Com o fenómeno de evolução semântica o termo
passou à especificação semântica. Por esta via, em sentido estrito, emprega-se
para significar os esforços e o movimento em prol da unidade das Igrejas
cristãs; e, num sentido lato, significará a busca da unidade entre as diversas
religiões.
O Dicionário Novo Aurélio (1986) traz duas aceções de ecumenismo: pela primeira,
significava, “nos primórdios do cristianismo, todos os povos a quem se deveria
dirigir a pregação do Evangelho” (definição pelo lado dos destinatários); e, pela segunda,
significa o “movimento surgido nas Igrejas protestantes e, posteriormente, na
Igreja Católica, originado na crença de terem uma unidade substancial, a
doutrina e a mensagem de Cristo”. Por seu turno, o Dicionário da Porto Editora
(2011) entende o vocábulo ecumenismo também em duas aceções:
pela primeira, significa a “tendência para formar uma única família em todo o
mundo” (significação genérica e próxima da etimológica); e, pela
segunda, “movimento tendente a unir todas as Igrejas cristãs (significado mais próximo do sentido estrito de
ecumenismo).
Do ponto de vista eclesiástico (católico), na definição mais abrangente, ecumenismo consiste
na aproximação, na cooperação e na busca fraterna da superação das divisões
entre as diferentes Igrejas cristãs. Na ótica do Cristianismo em geral, pode
dizer-se que o ecumenismo é o movimento que coloca as diversas denominações
cristãs na busca do diálogo e cooperação comuns com vista à superação das
divergências históricas e culturais a partir de uma efetiva reconciliação
cristã que sobre a unidade fundamental faça assentar e aceitar a diversidade
entre as Igrejas. Na senda deste dinamismo, entende-se que a Igreja de Jesus
Cristo vai além das diferenças geográficas, culturais e políticas entre as
diversas confissões de fé no mesmo Cristo, superando-se o princípio formulado
com o aparecimento das Igrejas reformadas cuius
regio huius religio, passando-se ao sentido originário da catolicidade:
unidade no essencial e máxima liberdade nos demais aspetos.
Já o “diálogo inter-religioso” configura uma
expressão que define a relação das Igrejas cristãs com as outras religiões,
relação que a Igreja Católica assumiu claramente a partir da elaboração da
declaração conciliar Nostra Aetate,
há 50 anos.
O diálogo inter-religioso assenta na convicção de
que as diferentes religiões devem evitar a disputa pela supremacia mundial e a busca
de protagonismo nas preocupações pela sorte do mundo, devendo, ao invés disso,
dialogar, respeitar-se mutuamente e evitar guerras em nome da fé religiosa.
Mais: para lá de evitarem as situações de conflitualidade, deverão prosseguir
no esforço comum de combate aos flagelos que afligem a humanidade.
Com
base nestes pressupostos, entre os dias 6 e 9 de setembro de 2003, realizou-se
um Encontro Internacional de Teólogos
Pluralistas e Estudiosos da Religião que reuniu 35 especialistas em matéria
religiosa provenientes da Europa, Ásia e Estados Unidos. Neste encontro, foram
estabelecidos os seguintes princípios
para o diálogo inter-religioso, que foram divulgados
no dia 10 de setembro do mesmo ano em nota de imprensa:
1. O diálogo e o compromisso inter-religiosos devem ser a forma pela qual
as religiões se relacionam entre si, sendo que uma necessidade primordial para
elas é a de sanar os antagonismos entre si.
2. O diálogo deve envolver os urgentes problemas do mundo
atual, incluindo a guerra, a violência, a pobreza, a devastação ambiental, a
injustiça de género e a violação dos direitos humanos.
3. Reivindicações de
verdade absoluta podem facilmente ser exploradas para incitar ao ódio e à
violência religiosos.
4. As religiões do
mundo afirmam uma realidade/verdade última que é conceitualizada de formas
diferentes.
5. Embora a
realidade/verdade última esteja além do alcance da completa compreensão humana,
ela encontrou uma expressão em diversas formas nas religiões do mundo.
6. As grandes
religiões do mundo, com os seus diversos ensinamentos e práticas, constituem
caminhos autênticos para o bem supremo.
7. As religiões do
mundo compartilham muitos valores essenciais, como o amor, a compaixão, a igualdade,
a honestidade e o ideal de tratar os outros como queremos ser tratados.
8. Todas as pessoas têm
liberdade de consciência e o direito de escolher a sua própria fé.
***
À
luz do exposto parece que deveria saudar a iniciativa do católico Marcelo
Rebelo de Sousa, Presidente da República num estado aconfessional. Porém, não o
faço pelas razões que, a seguir, explano.
Em
primeiro lugar, parece que, no quadro da aconfessionalidade do Estado, o contexto
da tomada de posse do Presidente não deveria integrar uma celebração religiosa.
Depois,
se o Presidente entende que, como Presidente, não deixa de ser um cidadão no
gozo de todos os direitos de cidadania e quer assumir em pleno as prerrogativas
do artigo 41.º da CRP (CRP que ele jura cumprir e fazer cumprir) – artigo que não se
circunscreve à liberdade de consciência, mas também consigna a de culto (e
o culto tem uma dimensão privada e uma dimensão pública) – então pedia-se-lhe a coerência
com a sua assunção clara de catolicidade, que o levaria a mandar organizar uma
celebração católica.
Porém,
se quer dispor da liberalidade do Concílio Vaticano II na linha ecuménica e do diálogo
inter-religioso, pelos vistos cara ao Presidente, e se quer ser efetivamente o Presidente
de todos os portugueses, bem poderia optar por uma celebração religiosa
interconfessional num espaço neutro, como um teatro, um auditório, um estádio
ou mesmo um espaço, em Lisboa, donde se pode dizer que historicamente Portugal divisa
e acolhe o mundo, como a Torre de Belém, os Claustros do Mosteiro dos Jerónimos
ou o Centro Cultural de Belém.
Conquanto,
os objetivos acima explanados sejam de pertinente e atual interesse, creio não
ser a partir da mesquita de Lisboa que se torne mais eficaz o apelo do Chefe de
Estado de Portugal à atenção aos refugiados. E não sei se os muçulmanos serão o
grupo religioso e político mais credível no mundo ocidental para fazer a ponte
entre as diversas culturas e religiões – pelo menos a História recente não o mostra.
Por
outro lado, parece descabido dar a entender que o terrorismo tenha origem exclusivamente
nos muçulmanos e não em grupos já identificados, embora não totalmente delimitados
territorialmente. Bem me lembro de como o Governo Espanhol andou mal quando
imputou precipitadamente um grande atentado à ETA.
Não
quero acreditar que se trate apenas de uma ideia peregrina de MRS a querer
marcar terreno, agenda ou diferença de estilo. Todavia, não me repugnando que
Sua Excelência aceite todos os convites que, no decurso do mandato, lhe sejam
endereçados por quaisquer entidades religiosas, penso que esta da inclusão de uma
celebração ecuménica, ou melhor inter-religiosa, no dia da tomada de posse presidencial
não é uma ideia tão plausível como aparenta. E, apesar de tudo, esperava-se do
Chefe de Estado melhor ponderação.
Ademais,
não se lhe pede que seja o Constantino ou o Teodósio do século XXI a funcionar em
sentido inverso.
2016.02.26 –
Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário