domingo, 28 de fevereiro de 2016

III aniversário do termo do pontificado de Bento XVI

Passa precisamente hoje, dia 28 de fevereiro, o terceiro aniversário do termo do pontificado de Bento XVI, dia em que não deixou de exprimir mensagens – a modos de testamento – pertinentes para o devir espiritual e social do Povo de Deus.
O último discurso – muito breve – prima pela simplicidade e informalidade, sem perder a marca da profundidade e da lucidez. É a saudação aos fiéis da diocese de Albano a partir do Balcão Central do Palácio Apostólico de Castel Gandolfo, antes de se recolher à sua eclipsação como Papa Emérito. Começa e termina pelo reiterado “obrigado, obrigado a todos vós” e no fim, lá está a despedida normal de ocasião, Boa noite.
Confessa-se feliz por se ver circundado da beleza da criação e da simpatia da multidão, que lhe “faz muito bem”; agradece a amizade e o afeto; e sublinha a diferença entre este seu dia e os anteriores. Ao marcar a diferença, autocorrige-se: “Já não sou Sumo Pontífice da Igreja Católica: até às oito horas da tarde, ainda o sou; depois já não”.
Afirma o seu novo estatuto de simples “peregrino que inicia a última etapa da sua peregrinação nesta terra”. Não obstante, quer ainda, com o seu coração, amor, oração, reflexão e com todas as suas forças interiores, “trabalhar para o bem comum, o bem da Igreja e da humanidade”. E deixa o recado da união: “unidos ao Senhor, vamos para diante a bem da Igreja e do mundo”.
Por fim, “de todo o coração”, proferiu pela última vez a bênção apostólica: Abençoe-vos Deus todo-poderoso, Pai, Filho e Espírito Santo.
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Ainda no Vaticano, proferira a saudação de despedida, na Sala Clementina, aos cardeais presentes em Roma, antecedida pelas palavras do cardeal decano Angelo Sodano em nome do Sacro Colégio e que o Pontífice interpretou como o “Cor ad cor loquitur”.
Depois, fez um balanço em que sintetizou o teor do discurso da audiência geral do dia anterior aos fiéis presentes na Praça de São Pedro.
Evidenciando a referência dos discípulos de Emaús (Lc 34,13-35), feita por Sodano, referiu que também para si “foi uma alegria caminhar” com os cardeais “ao longo destes anos, na luz da presença do Senhor ressuscitado” e explicitou:
Nestes oito anos, vivemos com fé momentos muito agradáveis de luz radiosa no caminho da Igreja, juntamente com momentos nos quais algumas nuvens se adensaram no céu. Procurámos servir Cristo e a sua Igreja com amor profundo e total, que é a alma do nosso ministério. Demos esperança, a que vem de Cristo, que só pode iluminar o caminho.”
Por isso, sustenta:
“Juntos, podemos dar graças ao Senhor que nos fez crescer na comunhão, e juntos pedir-lhe para que vos ajude a crescer ainda nesta unidade profunda, de modo que o Colégio dos Cardeais seja como uma orquestra, onde as diversidades – expressão da Igreja universal – concorram sempre para a harmonia superior e concorde”.
Depois, deixa uma constatação esperançosa consignada num “pensamento simples”, que lhe “está muito a peito: um pensamento sobre a Igreja e sobre o seu mistério, que constitui para todos a razão e a paixão da vida. Inspirou-se numa expressão de Romano Guardini, escrita no ano em que os Padres do Concílio Vaticano II aprovavam a Constituição Lumen Gentium, no seu último livro, com uma dedicatória pessoal também para Ratzinger, pelo que as palavras daquele livro lhe são particularmente queridas. Que diz Guardini?
[A Igreja] “não é uma instituição pensada e construída sob um projeto...., mas uma realidade viva... Ela vive ao longo do tempo, no futuro, como todos os seres vivos, transformando-se... E, no entanto, na sua natureza permanece sempre a mesma, e o seu coração é Cristo”.
Em consonância com estas palavras, o ainda Bispo de Roma repisava a experiência do dia anterior: parecia-lhe ter visto na Praça de São Pedro “que a Igreja é um corpo vivo, animado pelo Espírito Santo e vive realmente pela força de Deus”, que “ela está no mundo, mas não é do mundo: é de Deus, de Cristo, do Espírito”.
E, socorrendo-se de outra importante expressão de Guardini, A Igreja desperta nas almas, assegurava a vida, o crescimento e a ação da Igreja, que garante a presença de Cristo:
“A Igreja vive, cresce e desperta nas almas, que – tal como a Virgem Maria – acolheram a Palavra de Deus e a conceberam por obra do Espírito Santo; oferecem a Deus a própria carne e, precisamente na sua pobreza e humildade, tornam-se capazes de gerar Cristo hoje no mundo. Através da Igreja, o Mistério da Encarnação permanece para sempre presente. Cristo continua a caminhar através dos tempos e em todos os lugares.”
Por consequência, importa que “permaneçamos unidos neste Mistério: na oração, especialmente na Eucaristia quotidiana, e assim servimos a Igreja e a humanidade inteira. Esta é a nossa alegria, que ninguém nos pode tirar”.
Finalmente, antes de saudar pessoalmente cada um dos eminentes purpurados, prometeu a presença solidária pela oração, sobretudo nos dias que antecederiam o conclave, sem intervir no seu decurso, para que os cardeais fossem “plenamente dóceis à ação do Espírito Santo na eleição do novo Papa”. Por outro lado, sabendo que entre eles, entre o Colégio Cardinalício, estaria também o futuro Papa, aproveitou o ensejo para desde logo prometer “reverência e obediência incondicionadas”.
Resta sublinhar que a Bênção Apostólica concedida aos cardeais foi emoldurada do afeto e reconhecimento típicos do Pontífice cessante.
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Como se pode facilmente verificar, trata-se de um Papa de profundo discurso doutrinal, mas também de extrema simplicidade e fino trato pessoal. Foi demasiado mal amado, a meu ver. Tarda o balanço justo do seu pontificado, que já se vai fazendo de forma tímida.
Do seu magistério assíduo – e nunca ex cathedra – ressaltam com especial relevo as encíclicas, as exortações apostólicas e os anos temáticos.
As encíclicas são: a Deus caritas est, de 25 de dezembro de 2005, sobre o amor cristão, radicado no amor de Deus, mas com reflexo necessário e intenso nas relações com os irmãos; a Spe salvi, de 30 de novembro de 2007, sobre a esperança cristã, radicada na Ressurreição de Cristo e na sua mensagem, de olhos postos no futuro e em ativo compromisso pela transformação do mundo (pessoas e estruturas); e a Caritas in veritate, de 29 de junho de 2009, sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade (esta dirigida também a todos os homens de boa vontade). Também se diz como certo que preparara a Lumen Fidei, que o Papa Francisco terá publicado depois de a ter assumido, introduzindo-lhe alterações. Por isso se diz que ela fora escrita a quatro mãos.
 As exortações apostólicas são todas pós-sinodais: a Sacramentum Caritatis – exortação apostólica pós-sinodal sobre a Eucaristia, fonte e ápice da vida e da missão da Igreja (22 de fevereiro de 2007); a Verbum Domini – exortação apostólica pós-sinodal sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja (30 de setembro de 2010); a Africae munus – exortação apostólica pós-sinodal sobre a Igreja ao serviço da reconciliação, da justiça e da paz (19 de novembro de 2011); e a Ecclesia in Medio Oriente – exortação apostólica pós-sinodal sobre a igreja no Médio Oriente (14 de setembro de 2012).
E os anos temáticos foram: o Ano Paulino (de 28 de Junho de 2008 a 29 de Junho de 2009), para celebrar os dois mil anos do nascimento de São Paulo; o Ano Sacerdotal (19 de Junho de 2009 a 11 de junho de 2010), para celebrar o sesquicentenário da morte do Santo Cura d’Ars; e o Ano da Fé (11 de outubro de 2012 a 24 de novembro de 2013, continuado por Francisco), para celebrar o cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II.
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Ainda hoje fica de pé a questão do motivo da renúncia de Bento XVI: Os escândalos, dados a diversos níveis por homens com responsabilidade proeminente na Igreja? A convicção de que era tempo de proceder a uma saída estratégica para que o sucessor tivesse a via livre para as reformas necessárias? A incapacidade física do pontífice? Todos estes factos?
Com efeito, muitos casos vieram ao de cima, alguns de forma ilícita. As comissões de cardeais produziram relatórios que o pontífice leu e que chegaram às mãos de Francisco. Diz-se que a candidatura papal de Ratzinger tivera o empenhado apoio tático do jesuíta cardeal Carlo Martini e que este, quando Bento XVI o visitara momentos antes da sua morte, lhe teria segredado que estava na hora da renúncia.
Porém, a lealdade institucional aconselha a que nos atenhamos às razões do próprio, plasmadas na curta declaratio, de 11 de fevereiro de 2013:
“Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus, cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idóneas para exercer adequadamente o ministério petrino. Estou bem consciente de que este ministério, pela sua essência espiritual, deve ser cumprido não só com as obras e com as palavras, mas também e igualmente sofrendo e rezando. Todavia, no mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé, para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor este, que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a minha incapacidade para  administrar bem o ministério que me foi confiado.
Neste documento, Bento XVI, acusa a falta de idoneidade das suas forças e a sua incapacidade para administrar bem, entende que o cumprimento do ministério petrino convoca a conjugação das obras e das palavras e o sofrimento e a oração. Porém, o mundo de hoje, “sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé”, postula, “para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, “o vigor quer do corpo quer do espírito”. Por isso, renuncia e fá-lo com total liberdade, como refere noutro passo da declaratio.
No entanto, Bento promete servir de todo o coração, com uma vida consagrada à oração, a Santa Igreja de Deus”.
Desde então, reside no Convento Mater Ecclesiae, no Vaticano, e mantém uma vida de recolhimento, comparecendo em público apenas para acompanhar algumas cerimónias presididas por Francisco ou receber homenagens devidamente programadas. E todas as informações vindas a lume revelam o bom relacionamento, amizade e solidariedade entre Francisco e Bento.

2016.02.28 – Louro de Carvalho

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