Passa
precisamente hoje, dia 28 de fevereiro, o terceiro aniversário do termo do
pontificado de Bento XVI, dia em que não deixou de exprimir mensagens – a modos
de testamento – pertinentes para o devir espiritual e social do Povo de Deus.
O
último discurso – muito breve – prima pela simplicidade e informalidade, sem
perder a marca da profundidade e da lucidez. É a saudação aos fiéis da diocese de Albano a partir do Balcão Central do Palácio Apostólico de Castel
Gandolfo, antes de se recolher à sua eclipsação como Papa
Emérito. Começa e termina pelo reiterado “obrigado, obrigado a todos vós” e no
fim, lá
está a despedida normal de ocasião, Boa noite.
Confessa-se feliz por se ver circundado
da beleza da criação e da simpatia da multidão, que lhe “faz muito bem”;
agradece a amizade e o afeto; e sublinha a diferença entre este seu dia e os
anteriores. Ao marcar a diferença, autocorrige-se: “Já
não sou Sumo Pontífice da Igreja Católica: até às oito horas da tarde, ainda o
sou; depois já não”.
Afirma
o seu novo estatuto de simples “peregrino que inicia a última etapa da sua
peregrinação nesta terra”. Não obstante, quer ainda, com o seu coração, amor,
oração, reflexão e com todas as suas forças interiores, “trabalhar para o bem
comum, o bem da Igreja e da humanidade”. E deixa o recado da união: “unidos ao
Senhor, vamos para diante a bem da Igreja e do mundo”.
Por fim, “de
todo o coração”, proferiu pela última vez a bênção apostólica: Abençoe-vos Deus todo-poderoso, Pai, Filho e
Espírito Santo.
***
Ainda no Vaticano, proferira a saudação de despedida, na
Sala Clementina, aos cardeais presentes em Roma, antecedida pelas palavras do cardeal decano Angelo Sodano em nome do Sacro
Colégio e que o Pontífice interpretou como o “Cor ad cor loquitur”.
Depois, fez um balanço em que
sintetizou o teor do discurso da audiência geral do dia anterior aos fiéis
presentes na Praça de São Pedro.
Evidenciando a referência dos
discípulos de Emaús (Lc 34,13-35), feita por Sodano, referiu que também para si “foi uma alegria caminhar” com os
cardeais “ao longo destes anos, na luz da presença do Senhor ressuscitado” e
explicitou:
“Nestes oito anos, vivemos com fé
momentos muito agradáveis de luz radiosa no caminho da Igreja, juntamente com momentos
nos quais algumas nuvens se adensaram no céu. Procurámos servir Cristo e a sua
Igreja com amor profundo e total, que é a alma do nosso ministério. Demos
esperança, a que vem de Cristo, que só pode iluminar o caminho.”
Por isso,
sustenta:
“Juntos, podemos dar graças ao Senhor
que nos fez crescer na comunhão, e juntos pedir-lhe para que vos ajude a
crescer ainda nesta unidade profunda, de modo que o Colégio dos Cardeais seja
como uma orquestra, onde as diversidades – expressão da Igreja universal – concorram
sempre para a harmonia superior e concorde”.
Depois, deixa
uma constatação esperançosa consignada num “pensamento simples”, que lhe “está
muito a peito: um pensamento sobre a Igreja e sobre o seu mistério, que
constitui para todos a razão e a paixão da vida. Inspirou-se numa expressão de
Romano Guardini, escrita no ano em que os Padres do Concílio Vaticano II
aprovavam a Constituição Lumen Gentium,
no seu último livro, com uma dedicatória pessoal também para Ratzinger, pelo
que as palavras daquele livro lhe são particularmente queridas. Que diz
Guardini?
[A Igreja] “não é uma instituição pensada
e construída sob um projeto...., mas uma realidade viva... Ela vive ao longo do
tempo, no futuro, como todos os seres vivos, transformando-se... E, no entanto,
na sua natureza permanece sempre a mesma, e o seu coração é Cristo”.
Em
consonância com estas palavras, o ainda Bispo de Roma repisava a experiência do
dia anterior: parecia-lhe ter visto na Praça de São Pedro “que a Igreja é um
corpo vivo, animado pelo Espírito Santo e vive realmente pela força de Deus”,
que “ela está no mundo, mas não é do mundo: é de Deus, de Cristo, do Espírito”.
E,
socorrendo-se de outra importante expressão de Guardini, A Igreja desperta nas almas, assegurava a vida, o crescimento e a
ação da Igreja, que garante a presença de Cristo:
“A Igreja vive, cresce e desperta nas
almas, que – tal como a Virgem Maria – acolheram a Palavra de Deus e a
conceberam por obra do Espírito Santo; oferecem a Deus a própria carne e,
precisamente na sua pobreza e humildade, tornam-se capazes de gerar Cristo hoje
no mundo. Através da Igreja, o Mistério da Encarnação permanece para sempre
presente. Cristo continua a caminhar através dos tempos e em todos os lugares.”
Por
consequência, importa que “permaneçamos unidos neste Mistério: na oração,
especialmente na Eucaristia quotidiana, e assim servimos a Igreja e a
humanidade inteira. Esta é a nossa alegria, que ninguém nos pode tirar”.
Finalmente,
antes de saudar pessoalmente cada um dos eminentes purpurados, prometeu a
presença solidária pela oração, sobretudo nos dias que antecederiam o conclave,
sem intervir no seu decurso, para que os cardeais fossem “plenamente dóceis à
ação do Espírito Santo na eleição do novo Papa”. Por outro lado, sabendo que
entre eles, entre o Colégio Cardinalício, estaria também o futuro Papa,
aproveitou o ensejo para desde logo prometer “reverência e obediência
incondicionadas”.
Resta
sublinhar que a Bênção Apostólica concedida aos cardeais foi emoldurada do
afeto e reconhecimento típicos do Pontífice cessante.
***
Como se pode
facilmente verificar, trata-se de um Papa de profundo discurso doutrinal, mas
também de extrema simplicidade e fino trato pessoal. Foi demasiado mal amado, a
meu ver. Tarda o balanço justo do seu pontificado, que já se vai fazendo de
forma tímida.
Do seu
magistério assíduo – e nunca ex cathedra
– ressaltam com especial relevo as encíclicas, as exortações apostólicas e os
anos temáticos.
As encíclicas
são: a Deus caritas est, de 25 de
dezembro de 2005, sobre o amor cristão, radicado no amor de Deus, mas com
reflexo necessário e intenso nas relações com os irmãos; a Spe salvi, de 30 de novembro de 2007, sobre a esperança cristã,
radicada na Ressurreição de Cristo e na sua mensagem, de olhos postos no futuro
e em ativo compromisso pela transformação do mundo (pessoas e estruturas); e a Caritas in veritate, de 29 de junho de 2009, sobre o
desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade (esta dirigida também a todos os homens de
boa vontade). Também se
diz como certo que preparara a Lumen
Fidei, que o Papa Francisco terá publicado depois de a ter assumido,
introduzindo-lhe alterações. Por isso se diz que ela fora escrita a quatro
mãos.
As exortações apostólicas são todas
pós-sinodais: a Sacramentum Caritatis
– exortação apostólica pós-sinodal sobre a Eucaristia, fonte e ápice da vida e
da missão da Igreja (22 de fevereiro de 2007); a Verbum Domini – exortação apostólica pós-sinodal sobre a Palavra de
Deus na vida e na missão da Igreja (30 de setembro de 2010); a Africae munus – exortação apostólica pós-sinodal sobre a Igreja ao
serviço da reconciliação, da justiça e da paz (19 de novembro
de 2011); e a Ecclesia in Medio Oriente – exortação
apostólica pós-sinodal sobre a igreja no Médio Oriente (14
de setembro de 2012).
E
os anos temáticos foram: o Ano
Paulino (de 28 de Junho de 2008 a 29 de
Junho de 2009), para
celebrar os dois mil anos do nascimento de São Paulo; o Ano Sacerdotal (19 de Junho de
2009 a 11 de junho de 2010),
para celebrar o sesquicentenário da morte do Santo Cura d’Ars; e o Ano da Fé (11
de outubro de 2012 a 24 de novembro de 2013, continuado por Francisco), para celebrar o cinquentenário
da abertura do Concílio Vaticano II.
***
Ainda
hoje fica de pé a questão do motivo da renúncia de Bento XVI: Os escândalos,
dados a diversos níveis por homens com responsabilidade proeminente na Igreja?
A convicção de que era tempo de proceder a uma saída estratégica para que o
sucessor tivesse a via livre para as reformas necessárias? A incapacidade física
do pontífice? Todos estes factos?
Com
efeito, muitos casos vieram ao de cima, alguns de forma ilícita. As comissões
de cardeais produziram relatórios que o pontífice leu e que chegaram às mãos de
Francisco. Diz-se que a candidatura papal de Ratzinger tivera o empenhado apoio
tático do jesuíta cardeal Carlo Martini e que este, quando Bento XVI o visitara
momentos antes da sua morte, lhe teria segredado que estava na hora da
renúncia.
Porém,
a lealdade institucional aconselha a que nos atenhamos às razões do próprio, plasmadas
na curta declaratio, de 11 de
fevereiro de 2013:
“Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência
diante de Deus, cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade
avançada, já não são idóneas para exercer adequadamente o ministério petrino.
Estou bem consciente de que este ministério, pela sua essência espiritual, deve
ser cumprido não só com as obras e com as palavras, mas também e igualmente
sofrendo e rezando. Todavia, no mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado
por questões de grande relevância para a vida da fé, para governar a barca de
São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor quer do corpo
quer do espírito; vigor este, que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal
modo em mim que tenho de reconhecer a minha incapacidade para administrar
bem o ministério que me foi confiado.”
Neste
documento, Bento XVI, acusa a falta de idoneidade das suas forças e a sua
incapacidade para administrar bem, entende que o cumprimento do ministério petrino
convoca a conjugação das obras e das palavras e o sofrimento e a oração. Porém,
o mundo de hoje, “sujeito a rápidas mudanças e
agitado por questões de grande relevância para a vida da fé”, postula, “para
governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, “o vigor quer do corpo
quer do espírito”. Por isso, renuncia e fá-lo com total liberdade, como refere
noutro passo da declaratio.
No entanto, Bento promete “servir
de todo o coração, com uma vida consagrada à oração, a Santa Igreja de Deus”.
Desde então, reside no Convento Mater Ecclesiae, no Vaticano, e mantém uma vida de recolhimento,
comparecendo em público apenas para acompanhar algumas cerimónias presididas
por Francisco ou receber homenagens devidamente programadas. E todas as
informações vindas a lume revelam o bom relacionamento, amizade e solidariedade
entre Francisco e Bento.
2016.02.28
– Louro de Carvalho
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