quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

A indescritível crueldade da Shoah não pode ser esquecida

 

 

No final da Audiência Geral de quarta-feira, dia 26, o Papa recordou o “Dia Internacional da Memória”, que é celebrado neste dia 27 – 76.º aniversário da libertação do campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau, símbolo da Shoah que destruiu a vida de milhões de pessoas e famílias de diferentes nacionalidades e religiões –, e apelou às famílias e educadores no sentido de promoverem nas novas gerações “a consciência do horror desta página escura da história”.

Silabando fortemente as palavras, a querer marcar na mente e no coração das novas gerações, em que os males do racismo e do antissemitismo retornam novamente, a dor para todas as vítimas do Holocausto, Francisco frisou que “essa crueldade indescritível não se deve mais se repetir”.

O Pontífice dirigiu-se a todos, mas em especial aos educadores e famílias, para que promovam a consciência do horror desta página escura da história, “para que se construa um futuro em que a dignidade humana não mais seja espezinhada” – um alerta a manter viva a atenção para esse facto horrível, também no futuro, não ser ofuscado quando as últimas testemunhas já não existirem.

O apelo ficou ilustrado num abraço no final da audiência, quando o Papa, sentado numa cadeira ao pé da escadaria da Sala Paulo VI, cumprimentou Lídia Maksymowicz, polaca de origem bielorrussa, que foi para Auschwitz – Campo de concentração de Birkenau aos 3 anos com a mãe, perdida e depois encontrada já adulta na Rússia. Este foi o segundo encontro entre o Papa e Lídia, testemunha das atrocidades dos campos de concentração e das experiências do doutor Josef Mengele. Com efeito, a 26 de maio de 2021, no final da Audiência Geral no pátio de São Dâmaso, Lídia saudou Francisco, que se baixou para beijar o número tatuado no seu braço, após 77 anos, do horror vivido: “70072”. O beijo do Santo Padre fortaleceu-a e reconciliou-a com o mundo, como referiu então ao Vatican News logo após aquela audiência. E, neste dia 26, o Papa acariciou a tatuagem no braço de Lídia, a qual lhe trouxe presentes, de entre os quais o livro sobre a sua vida “A menina que não sabia odiar”, recém-impresso por Solferino, e uma fotografia impressa em tela dum encontro com São João Paulo II, de quem a sobrevivente disse ser muito devota.

Também no ano passado, lembrando na oração do Angelus “esta terrível tragédia”, o Papa dissera que “a indiferença não é admissível e a memória é um dever” e convidara os fiéis a rezar, “dizendo cada um em seu coração: nunca mais”.

Aquele “nunca mais”, embora silenciado em prol dum silêncio mais eloquente que qualquer frase ou discurso, transpareceu dos gestos do Papa na peregrinação de dor ao abismo de Auschwitz-Birkenau, durante a viagem de 2016 à Polónia. Entre orações diante do muro das execuções ou na cela onde São Maximiliano Kolbe passou os últimos momentos de vida, entre abraços com os sobreviventes e caminhada com a cabeça baixa entre os memoriais de mármore, nenhuma palavra saiu da boca do Pontífice. Apenas estava na sua alma a oração que deixou escrita em espanhol no Livro de Honra do campo de extermínio:

Senhor, tem piedade do seu povo. Senhor, perdão por tanta crueldade!

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No Dia da Memória das Vítimas do Holocausto, recorda-se uma história de salvação: a duma paróquia romana que salvou 15 meninas judias. Efetivamente, na igreja de Santa Maria ai Monti, a poucos passos do Coliseu, um grupo de meninas foi escondido graças às irmãs e ao pároco durante as rondas nazistas de 1943.

Passavam o dia a desenhar refugiadas num túnel estreito e escuro sob o campanário daquela igreja e distraíam-se do constante rumor das botas dos soldados sobre os paralelepípedos, no mês de outubro de 1943, um longo período de terror que transformou Roma em floresta onde os predadores alemães arrancaram das suas casas vítimas inocentes. Aquelas meninas desenhavam sobretudo rostos de suas mães e pais para o terror ou o tempo não turvarem a sua memória, os das bonecas perdidas na fuga e o rosto da Rainha Esther a segurar um kallá, o pão da oferta. Escreviam os seus nomes e sobrenomes, Matilde, Clélia, Carla, Anna, Aida.

Aida, cuja assinatura permanece nas paredes com elegante caligrafia: “Aida Sermoneta. Moro na sombra destes arcos.” – arcos em que se veem, embora desbotados pela humidade, peixes e frases em hebraico, dedicatórias à “Roma santa e popular”. Talvez as meninas quisessem, com o atrito do carvão nas paredes, cobrir gritos, tiros, portas batidas.

A menor das 15 meninas tinha 4 anos de idade. Salvaram-se escondidas num espaço de 6 metros de comprimento e 2 metros de largura no ponto mais alto daquela igreja do século XVI. Ali passavam horas agonizantes, que se transformavam em dias. Entre as paredes e os arcos moviam-se como sombras para escapar a soldados e delatores. Ajudadas pelas irmãs e pelo Padre Guido Ciuffa, pároco à época, escaparam do rastreamento e morte nos campos de concentração onde perderam a vida os seus parentes, que tiveram a coragem de confiá-las às Filhas da Caridade no então Convento das Neófitas. Misturadas com as estudantes e noviças, ao primeiro sinal de perigo, eram levadas à paróquia por uma porta interna de comunicação.

Hoje aquela porta é uma parede de betão na Sala da Catequese. O padre Francesco Pesce, o pároco de Santa Maria ai Monti há 12 anos e muito apreciado em toda a vizinhança, um emblema duma Roma capaz de fazer dialogar etnias e religiões, costuma explicar às crianças o que aconteceu ali e principalmente “o que não deve mais acontecer”. E disse ao Vatican News, que “esta porta é simbólica, é uma passagem do desespero para a esperança, do mal para o bem”.  De lá as meninas corriam para a sacristia na direção doutra porta, disfarçada pelo Padre Guido com tapeçarias, vestes, mantos de Nossa Senhora. Era o ponto de junção para subir a escada escura em espiral, com 95 degraus, que levava a um plano sobre a abside, 30 metros acima do solo. Mais acima, estavam os sinos ou o céu, a única via de fuga. Porém, nos momentos de perigo, era a única via de salvação. Agora, o chão range por causa das carcaças de pombos mortos; a respiração encurta; e os olhos só se acostumam à escuridão após alguns minutos, quando janelas do tamanho de tijolos deixam entrar alguma luz. Algumas meninas subiam e desciam a torre, sozinhas, revezando-se, para recolherem alimentos e roupas e levá-los às colegas, que esperavam na cúpula de betão que cobria a abside.

No entender do Padre Pesce, a história de Santa Maria ai Monti não é só a história duma Igreja comprometida na resistência à fúria nazi, mas uma história de fraternidade escrita entre as linhas do que Francisco chamou de “a página mais negra” da humanidade. E o pároco explicita:

Aqui tocamos o auge da dor, mas também o auge do amor (…) Toda a vizinhança ajudava, não apenas cristãos católicos, mas também irmãos de outras religiões que se mantiveram em silêncio e continuaram a obra de caridade. Nisso eu vejo uma antecipação da Fratelli tutti..

Todos no bairro sabiam que havia 15 meninas judias escondidas na paróquia, mas todos faziam escudo para protegê-las. Não cederam a ameaças ou promessas de recompensas, não quiseram compartilhar nem as informações necessárias para organizar as ajudas – muito arriscado com soldados a patrulhar continuamente o bairro e com delatores e espiões infiltrados nas missas a escutar e observar para depois venderem a vida de outros.

As meninas, que pura e simplesmente tiveram que desaparecer, foram todas salvas. E, quando adultas e tornadas esposas, mães e avós, continuaram a visitar a paróquia. Uma delas continuou a visitar a paróquia até há alguns anos, indo ao refúgio até onde as pernas permitiam. E, quando ficou idosa, parava ante a porta da sacristia e chorava de joelhos, tal como fazia há 80 anos.

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Edith Bruck, a escritora de 90 anos que sobreviveu a Auschwitz, lembra a sua indescritível experiência dos campos de concentração, ressaltando como, por muito tempo e ainda hoje, muitos não reconhecem a Shoah, pelo que pede aos jornalistas que escrevam sobre o tema e contem também o que de bom acontece todos os dias no mundo.

Esta húngara naturalizada italiana tinha 13 anos quando foi deportada para Auschwitz e, depois, para outros 6 campos de concentração. O último, Bergen-Belsen, foi o da sua libertação em abril de 1945, após um ano de prisão, junto com a sua família, mas só voltando consigo uma irmã.

Regressou à Hungria, em maio, ao completar 14 anos. Porém, a pobreza e o luto impediram-na de ficar em casa. Foi para a Tchecoslováquia, depois para Israel – dois países onde buscou nova vida, de serenidade. Posteriormente, em 1954, foi parar a Roma, Itália, onde reside. Foi nessa mesma casa romana que o Papa a foi visitar de surpresa há pouco menos de um ano. Desde então não foi interrompido o abraço, as lágrimas e o diálogo. Como escritora e poeta, o seu amor pela escrita, que a acompanha há décadas, leva-a a continuar a escrever “enquanto estiver viva”.

Sobre o facto de muitos se perguntarem como foi possível desviar o olhar ante o que sucedia nos campos de concentração, sustenta que tudo era conhecido sobretudo da parte dos estadunidenses e dos alemães. Muitos judeus foram para a América, onde lhes disseram que era impossível estar a acontecer isso. Alguns fingiam não acreditar por interesse político ou bélico. Os estadunidenses poderiam ter bombardeado antes a ferrovia que levava a Auschwitz. Os judeus continuaram a ser deportados, mesmo em fevereiro de 1945, para Bergen-Belsen. A negação começou após a guerra.

Dos campos de concentração atuais diz que “são terríveis”, mas os confunde com os nazistas. Não obstante, critica a mesma indiferença, porque “os homens não aprenderam com os seus erros”.

Quanto à presença na Itália, há algumas semanas, de pessoas vestidas de deportados para dizer não ao passe verde, sustenta que se trata de “uma obscenidade”, um circo ante milhões de mortos, e mostra-se indignada como ao ver manifestações com bandeiras nazistas na Itália. Ao mesmo tempo, apela a que não se esqueça o que está escrito na Constituição Italiana e alerta para o avanço do antissemitismo em toda a Europa, aliás como o fez a Presidente da Comissão Europeia. Pode não afetar a todos, mas diz respeito à humanidade, aos excluídos, aos últimos. E hoje não podemos dizer que não sabemos, pois hoje tudo se vê ouve, dada índole da aldeia global que habitamos.

Acha incorreto reduzir a números os dados sobre as vítimas da covid-19, porque se trata de seres humanos e “o homem é um mundo, não é um número”. São vidas humanas que estão em causa.

Aquando da sua deportação, havia música. A esse respeito, diz que achava que só conhecia as canções nazistas, contra os judeus. É certo que muitas pessoas “compuseram orquestras” nos campos, mas só para os alemães. Para judeus, a música era gritar e chorar, silêncio, morte e tiros.

Apesar de se falarem tantas línguas nos campos, observa que os judeus húngaros foram os últimos a ser deportados e que se entendiam, mas não conversavam, pois não havia tempo para falar, nem pela solidariedade. Na verdade, “o que importava era apenas não perder a vida”. Com um frio enlouquecedor e uma fome cegante, não havia nada a dizer a não ser cuidar de si mesmo e ali era difícil pensar em amizade.

Refere que, no pós-guerra, os judeus não foram bem recebidos, não foram ouvidos. Foram tratados como “restos de vida, trapos”. Por isso, “estava explodindo de palavras”. E explicita:

Comecei a escrever em inglês, depois na Itália aprendi italiano e voltei a escrever aquele livro iniciado na Hungria em 1946. Então publiquei o primeiro texto em 1959 e não parei mais. Acredito que farei isso até so fim dos meus dias, pois continuarei a frequentar as escolas.”.

Considera que os jovens precisam de saber e querem saber, mas há pouca comunicação na família; e, de facto, nenhum país lidou com este grande discurso, senão em parte, pelo que estão a avançar o racismo e o antissemitismo – enorme responsabilidade para toda a Europa.

Julga importantíssimo o diálogo intergeracional e a nota que os idosos, muitas vezes excluídos do diálogo por não produzirem, ficam perdidos nas residências e morrem, tornando-se a sociedade “egoísta e estéril de coração, uma verdadeira tragédia”. E, falando da essência do diálogo, observa que “ainda não aprendemos a escutar de verdade” e que a escuta é o mais importante. Porfia que “os jovens são mais maduros do que imaginamos” e aponta que “falamos de bullying e violência, mas não da curiosidade deles”, não sendo nós capazes de falar com eles. Para tanto, “devemos aprender a ouvir”. E, tendo, no ano passado, visto mais escuta, provavelmente mercê da ansiedade resultante da pandemia, confessa ter-se multiplicado na escrita e na concessão de entrevistas.

Valoriza imenso o gesto de Francisco a ter visitado em casa para a ouvir e de algumas vezes lhe ligar para falarem por telefone. Observa que outros Papas foram pedir perdão na Sinagoga, mas sublinha que o facto de Francisco ter ido a sua casa “teve um grande eco”. Pensa que “é o gesto mais bonito, esse perdão da minha casa se espalhou por todo o mundo”.

Por fim, releva que tem vontade de dizer que os jornalistas têm de contar as coisas positivas, não só as más. Na verdade, nos livros também fala sobre as luzes daquele ano de prisão e, quando vai às escolas, fala das sombras, da luz, da esperança, para as crianças não ficarem com informação truncada. Com efeito, há muitas pessoas que fazem o bem e isso deve ser contado e exaltado.  

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O Holocausto foi uma vergonha trágica, não deve ser esquecido nem pode repetir-se.

2022.01.27 – Louro de Carvalho

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