No final da
Audiência Geral de quarta-feira, dia 26, o Papa recordou o “Dia Internacional da Memória”, que é
celebrado neste dia 27 – 76.º aniversário da libertação do campo de extermínio
de Auschwitz-Birkenau, símbolo da Shoah que destruiu a vida de milhões de
pessoas e famílias de diferentes
nacionalidades e religiões –, e apelou às famílias e educadores no
sentido de promoverem nas novas gerações “a consciência do horror desta página
escura da história”.
Silabando
fortemente as palavras, a querer marcar na mente e no coração das novas
gerações, em que os males do racismo e do antissemitismo retornam novamente, a
dor para todas as vítimas do Holocausto, Francisco frisou que “essa crueldade
indescritível não se deve mais se repetir”.
O Pontífice dirigiu-se
a todos, mas em especial aos educadores e famílias, para que promovam a
consciência do horror desta página escura da história, “para que se construa um
futuro em que a dignidade humana não mais seja espezinhada” – um alerta a
manter viva a atenção para esse facto horrível, também no futuro, não ser
ofuscado quando as últimas testemunhas já não existirem.
O apelo
ficou ilustrado num abraço no final da audiência, quando o Papa, sentado numa
cadeira ao pé da escadaria da Sala Paulo VI, cumprimentou Lídia Maksymowicz,
polaca de origem bielorrussa, que foi para Auschwitz – Campo de concentração de
Birkenau aos 3 anos com a mãe, perdida e depois encontrada já adulta na Rússia.
Este foi o segundo encontro entre o Papa e Lídia, testemunha das atrocidades
dos campos de concentração e das experiências do doutor Josef Mengele. Com
efeito, a 26 de maio de 2021, no final da Audiência Geral no pátio de São
Dâmaso, Lídia saudou Francisco, que se baixou para beijar o número tatuado no
seu braço, após 77 anos, do horror vivido: “70072”.
O beijo do Santo Padre fortaleceu-a e reconciliou-a com o mundo, como referiu
então ao Vatican News logo após aquela
audiência. E, neste dia 26, o Papa acariciou a tatuagem no braço de Lídia, a
qual lhe trouxe presentes, de entre os quais o livro sobre a sua vida “A menina que não sabia odiar”, recém-impresso
por Solferino, e uma fotografia impressa em tela dum encontro com São João
Paulo II, de quem a sobrevivente disse ser muito devota.
Também no
ano passado, lembrando na oração do Angelus
“esta terrível tragédia”, o Papa dissera que “a indiferença não é admissível e a
memória é um dever” e convidara os fiéis a rezar, “dizendo cada um em seu
coração: nunca mais”.
Aquele “nunca mais”, embora silenciado em prol
dum silêncio mais eloquente que qualquer frase ou discurso, transpareceu dos
gestos do Papa na peregrinação de dor ao abismo de Auschwitz-Birkenau, durante
a viagem de 2016 à Polónia. Entre orações diante do muro das execuções ou na
cela onde São Maximiliano Kolbe passou os últimos momentos de vida, entre
abraços com os sobreviventes e caminhada com a cabeça baixa entre os memoriais
de mármore, nenhuma palavra saiu da boca do Pontífice. Apenas estava na sua alma
a oração que deixou escrita em espanhol no Livro de Honra do campo de
extermínio:
“Senhor, tem piedade do seu
povo. Senhor, perdão por tanta crueldade!”
***
No Dia da
Memória das Vítimas do Holocausto, recorda-se uma história de salvação: a duma
paróquia romana que salvou 15 meninas judias. Efetivamente, na igreja de Santa
Maria ai Monti, a poucos passos do Coliseu, um grupo de meninas foi escondido graças às irmãs e ao pároco durante as rondas nazistas de 1943.
Passavam o
dia a desenhar refugiadas num túnel estreito e escuro sob o campanário daquela
igreja e distraíam-se do constante rumor das botas dos soldados sobre os
paralelepípedos, no mês de outubro de 1943, um longo período de terror que
transformou Roma em floresta onde os predadores alemães arrancaram das suas
casas vítimas inocentes. Aquelas meninas desenhavam sobretudo rostos de suas
mães e pais para o terror ou o tempo não turvarem a sua memória, os das bonecas
perdidas na fuga e o rosto da Rainha Esther a segurar um kallá, o
pão da oferta. Escreviam os seus nomes e sobrenomes, Matilde, Clélia, Carla,
Anna, Aida.
Aida, cuja
assinatura permanece nas paredes com elegante caligrafia: “Aida Sermoneta.
Moro na sombra destes arcos.” – arcos em que se veem, embora desbotados
pela humidade, peixes e frases em hebraico, dedicatórias à “Roma santa e popular”. Talvez as meninas
quisessem, com o atrito do carvão nas paredes, cobrir gritos, tiros, portas
batidas.
A menor das
15 meninas tinha 4 anos de idade. Salvaram-se escondidas num espaço de 6 metros
de comprimento e 2 metros de largura no ponto mais alto daquela igreja do
século XVI. Ali passavam horas agonizantes, que se transformavam em dias. Entre
as paredes e os arcos moviam-se como sombras para escapar a soldados e
delatores. Ajudadas pelas irmãs e pelo Padre Guido Ciuffa, pároco à época, escaparam
do rastreamento e morte nos campos de concentração onde perderam a vida os seus
parentes, que tiveram a coragem de confiá-las às Filhas da Caridade no então
Convento das Neófitas. Misturadas com as estudantes e noviças, ao primeiro
sinal de perigo, eram levadas à paróquia por uma porta interna de comunicação.
Hoje aquela
porta é uma parede de betão na Sala da Catequese. O padre Francesco Pesce, o
pároco de Santa Maria ai Monti há 12 anos e muito apreciado em toda a vizinhança,
um emblema duma Roma capaz de fazer dialogar etnias e religiões, costuma explicar
às crianças o que aconteceu ali e principalmente “o que não deve mais
acontecer”. E disse ao Vatican News, que “esta porta é simbólica, é
uma passagem do desespero para a esperança, do mal para o bem”. De lá as
meninas corriam para a sacristia na direção doutra porta, disfarçada pelo Padre
Guido com tapeçarias, vestes, mantos de Nossa Senhora. Era o ponto de junção
para subir a escada escura em espiral, com 95 degraus, que levava a um plano
sobre a abside, 30 metros acima do solo. Mais acima, estavam os sinos ou o céu,
a única via de fuga. Porém, nos momentos de perigo, era a única via de
salvação. Agora, o chão range por causa das carcaças de pombos mortos; a
respiração encurta; e os olhos só se acostumam à escuridão após alguns minutos,
quando janelas do tamanho de tijolos deixam entrar alguma luz. Algumas meninas
subiam e desciam a torre, sozinhas, revezando-se, para recolherem alimentos e
roupas e levá-los às colegas, que esperavam na cúpula de betão que cobria a
abside.
No entender
do Padre Pesce, a história de Santa Maria ai Monti não é só a história duma
Igreja comprometida na resistência à fúria nazi, mas uma história de
fraternidade escrita entre as linhas do que Francisco chamou de “a página mais
negra” da humanidade. E o pároco explicita:
“Aqui tocamos o auge da dor, mas também o
auge do amor (…) Toda a vizinhança ajudava, não apenas cristãos católicos, mas
também irmãos de outras religiões que se mantiveram em silêncio e continuaram a
obra de caridade. Nisso eu vejo uma antecipação da Fratelli tutti.”.
Todos no
bairro sabiam que havia 15 meninas judias escondidas na paróquia, mas todos
faziam escudo para protegê-las. Não cederam a ameaças ou promessas de
recompensas, não quiseram compartilhar nem as informações necessárias para
organizar as ajudas – muito arriscado com soldados a patrulhar continuamente o
bairro e com delatores e espiões infiltrados nas missas a escutar e observar
para depois venderem a vida de outros.
As meninas,
que pura e simplesmente tiveram que desaparecer, foram todas salvas. E, quando
adultas e tornadas esposas, mães e avós, continuaram a visitar a paróquia. Uma
delas continuou a visitar a paróquia até há alguns anos, indo ao refúgio até
onde as pernas permitiam. E, quando ficou idosa, parava ante a porta da
sacristia e chorava de joelhos, tal como fazia há 80 anos.
***
Edith Bruck,
a escritora de 90 anos que sobreviveu a Auschwitz, lembra a sua indescritível experiência
dos campos de concentração, ressaltando como, por muito tempo e ainda hoje,
muitos não reconhecem a Shoah, pelo que pede aos jornalistas que escrevam sobre
o tema e contem também o que de bom acontece todos os dias no mundo.
Esta húngara
naturalizada italiana tinha 13 anos quando foi deportada para Auschwitz e,
depois, para outros 6 campos de concentração. O último, Bergen-Belsen, foi o da
sua libertação em abril de 1945, após um ano de prisão, junto com a sua
família, mas só voltando consigo uma irmã.
Regressou à
Hungria, em maio, ao completar 14 anos. Porém, a pobreza e o luto impediram-na
de ficar em casa. Foi para a Tchecoslováquia, depois para Israel – dois países onde
buscou nova vida, de serenidade. Posteriormente, em 1954, foi parar a Roma, Itália,
onde reside. Foi nessa mesma casa romana que o Papa a foi visitar de surpresa
há pouco menos de um ano. Desde então não foi interrompido o abraço, as lágrimas
e o diálogo. Como escritora e poeta, o seu amor pela escrita, que a acompanha
há décadas, leva-a a continuar a escrever “enquanto estiver viva”.
Sobre o facto de muitos se perguntarem como foi possível desviar o olhar
ante o que sucedia nos campos de concentração, sustenta que tudo era conhecido
sobretudo da parte dos estadunidenses e dos alemães. Muitos judeus foram para a
América, onde lhes disseram que era impossível estar a acontecer isso. Alguns
fingiam não acreditar por interesse político ou bélico. Os estadunidenses
poderiam ter bombardeado antes a ferrovia que levava a Auschwitz. Os judeus
continuaram a ser deportados, mesmo em fevereiro de 1945, para Bergen-Belsen. A
negação começou após a guerra.
Dos campos de concentração atuais diz que “são terríveis”, mas os confunde
com os nazistas. Não obstante, critica a mesma indiferença, porque “os homens
não aprenderam com os seus erros”.
Quanto à presença na Itália, há algumas semanas, de pessoas vestidas de
deportados para dizer não ao passe verde, sustenta que se trata de “uma
obscenidade”, um circo ante milhões de mortos, e mostra-se indignada como ao
ver manifestações com bandeiras nazistas na Itália. Ao mesmo tempo, apela a que
não se esqueça o que está escrito na Constituição Italiana e alerta para o
avanço do antissemitismo em toda a Europa, aliás como o fez a Presidente da
Comissão Europeia. Pode não afetar a todos, mas diz respeito à humanidade, aos
excluídos, aos últimos. E hoje não podemos dizer que não sabemos, pois hoje
tudo se vê ouve, dada índole da aldeia global que habitamos.
Acha incorreto reduzir a números os dados sobre as vítimas da covid-19,
porque se trata de seres humanos e “o homem é um
mundo, não é um número”. São vidas humanas que estão em causa.
Aquando da sua deportação, havia música. A esse respeito, diz que achava que só conhecia as
canções nazistas, contra os judeus. É certo que muitas pessoas “compuseram
orquestras” nos campos, mas só para os alemães. Para judeus, a música era
gritar e chorar, silêncio, morte e tiros.
Apesar de se falarem tantas línguas nos campos, observa que os judeus
húngaros foram os últimos a ser deportados e que se entendiam, mas não
conversavam, pois não havia tempo para falar, nem pela solidariedade. Na
verdade, “o que importava era apenas não perder a vida”. Com um frio
enlouquecedor e uma fome cegante, não havia nada a dizer a não ser cuidar de si
mesmo e ali era difícil pensar em amizade.
Refere que, no pós-guerra, os judeus não foram bem recebidos, não foram ouvidos. Foram
tratados como “restos de vida, trapos”. Por isso, “estava explodindo de
palavras”. E explicita:
“Comecei a escrever em inglês,
depois na Itália aprendi italiano e voltei a escrever aquele livro iniciado na
Hungria em 1946. Então publiquei o primeiro texto em 1959 e não parei mais.
Acredito que farei isso até so fim dos meus dias, pois continuarei a frequentar
as escolas.”.
Considera que os jovens precisam de saber e querem saber, mas há pouca
comunicação na família; e, de facto, nenhum país lidou com este grande
discurso, senão em parte, pelo que estão a avançar o racismo e o antissemitismo
– enorme responsabilidade para toda a Europa.
Julga importantíssimo o diálogo intergeracional e a nota que os idosos, muitas vezes
excluídos do diálogo por não produzirem, ficam perdidos nas residências e
morrem, tornando-se a sociedade “egoísta e estéril de coração, uma verdadeira
tragédia”. E, falando da essência do diálogo, observa que “ainda
não aprendemos a escutar de verdade” e que a escuta é o mais importante. Porfia
que “os jovens são mais maduros
do que imaginamos” e aponta que “falamos de bullying e violência, mas não da
curiosidade deles”, não sendo nós capazes de falar com eles. Para tanto, “devemos
aprender a ouvir”. E, tendo, no ano passado, visto mais escuta, provavelmente
mercê da ansiedade resultante da pandemia, confessa ter-se multiplicado na
escrita e na concessão de entrevistas.
Valoriza imenso o gesto de Francisco a ter visitado em casa para a ouvir e
de algumas vezes lhe ligar para falarem por telefone. Observa que outros Papas foram pedir
perdão na Sinagoga, mas sublinha que o facto de Francisco ter ido a sua casa “teve
um grande eco”. Pensa que “é o gesto mais bonito, esse perdão da minha casa se
espalhou por todo o mundo”.
Por fim, releva que tem vontade de dizer que os jornalistas têm de
contar as coisas positivas, não só as más. Na verdade, nos livros também fala
sobre as luzes daquele ano de prisão e, quando vai às escolas, fala das
sombras, da luz, da esperança, para as crianças não ficarem com informação
truncada. Com efeito, há muitas pessoas que fazem o bem e isso deve ser contado
e exaltado.
***
O Holocausto foi uma vergonha trágica, não deve ser esquecido nem pode repetir-se.
2022.01.27 – Louro de Carvalho
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