Por ocasião
da XXV Sessão Pública das Pontifícias Academias, editada pelo Pontifício
Academia de Arqueologia e pla Pontifícia Academia Cultorum Martyrum, o Francisco enviou, neste dia 1 de
fevereiro, ao Cardeal Gianfranco Ravasi, Presidente do Pontifício Conselho para
a Cultura e do Conselho de Coordenação entre Pontifícias Academias, uma carta em
que destaca a génese e a importância da arqueologia cristã.
Começando por
referir que o evento – que tem a curadoria da Pontifícia Academia Romana de
Arqueologia e da Pontifícia Academia Cultorum Martyrum – dedicado ao arqueólogo Giovanni
Battista de Rossi, por ocasião do bicentenário do seu nascimento – tem como
momento central a atribuição do Prémio anual a ilustres estudiosos. Depois,
lembra que esta reunião, adiada em 2021 mercê da pandemia, é agora reeditada apesar
das dificuldades que subsistem, por ser fundamental para o diálogo entre as
Academias e o reconhecimento de jovens talentos que sobressaem nos respetivos
campos culturais e temáticos. E, logo a seguir, faz referência a De Rossi, o
fundador da arqueologia cristã moderna, de quem Theodor Mommsen, seu
contemporâneo, afirmou tê-la elevado de “passatempo de estudiosos a uma
verdadeira ciência histórica”.
Mais diz que
a atividade de De Rossi foi fortemente encorajada pelo Beato Pio IX, que a 6 de
janeiro de 1852 criou a Comissão de Arqueologia Sagrada “para a proteção e vigilância mais eficaz dos cemitérios e antigos
edifícios cristãos de Roma e dos subúrbios, para a escavação científica e exploração
de os próprios cemitérios e para a conservação e custódia do que foi encontrado
ou trazido à luz das escavações”. E, sublinhando que o arqueólogo era
igualmente querido por Leão XIII, que o tornou hóspede no Palácio Apostólico de
Castel Gandolfo no último período de vida, apontou que, além disso, este
Pontífice promoveu a compra pela Santa Sé de alguns terrenos acima das catacumbas
mais importantes, a fim de preservar da atividade de construção aqueles
testemunhos fundamentais do cristianismo primevo, a que De Rossi consagrou os
seus estudos e as suas escavações, tendo sido deste modo que, em pleno século
XIX, surgiu o núcleo mais antigo do cemitério de São Calisto, onde foram
identificadas a cripta dos Papas, do século III, e a de Santa Cecília, aproximando
especialistas e fiéis dos testemunhos arqueológicos e, por meio deles, da fé
inabalável e fervorosa das antigas comunidades cristãs.
Da metodologia
frisa que, pelo estudo comparativo de documentos e memórias arqueológicas, De
Rossi descobriu muitos túmulos de mártires romanos e, com colaboradores e
jovens estudiosos, reviveu o seu culto. De facto, representando os túmulos
e memórias dos mártires os centros de interesse privilegiados do grande
arqueólogo, que lançou as bases duma disciplina viva e pronta a captar a
mensagem das catacumbas cristãs, destinadas a lugares de descanso temporário em
antecipação da ressurreição, ele percebeu e revelou o grande significado de
tais necrópoles subterrâneas, pontilhadas de milhares de nichos, como que a
expressar plasticamente a fraternidade e a igualdade entre todos os membros da
Igreja.
Das peregrinações
ao longo daquelas galerias, frisa que “refazem
os itinerários dos fiéis dos primeiros séculos, que, emocionados, chegaram aos
túmulos dos mártires para tocarem neles e deixarem, pelos muitos grafites ainda
hoje legíveis, uma invocação, súplica ou sinal de devoção”.
Perante estes
factos, Francisco exprime a admiração dos estudiosos pelo extraordinário
empenho de Battista de Rossi como incansável estudioso, que lançou as bases da arqueologia
cristã, disciplina científica presente em muitas universidades, e recorda a
paixão com que viveu o que para si era verdadeira vocação: “descobrir e dar a conhecer a vida das
primeiras comunidades cristãs em Roma por todas as fontes possíveis, a começar
pelas arqueológicas e epigráficas”. E, porque o exemplo do grande arqueólogo
merece ser reproposto para promover e desenvolver os estudos da arqueologia
cristã, bem como em áreas especializadas, também em universidades e institutos
onde se ministram os ensinamentos da teologia e da história do cristianismo,
para encorajar os que, seguindo os passos de Battista de Rossi, se dedicam à investigação
arqueológica e aos estudos históricos e hagiográficos, o Papa concede a Medalha
de Ouro do Pontificado à investigação “A Arqueologia de Machaerus
Excavations”, dirigida pelo professor Gyözö Vörös, membro da Academia
Húngara de Artes, cujos resultados estão coligidos em três monumentais
volumes sobre a cidadela jordaniana com vista para o Mar Morto; e, como sinal
de encorajamento aos estudos arqueológicos sobre os primeiros monumentos
cristãos, atribui, ex aequo, a Medalha de Prata do Pontificado ao
Doutor Domenico Benoci pela tese “As
inscrições cristãs da Zona I de São Calisto”, e ao Dr. Gabriele Castiglia,
pela “Topografia cristã da Toscana
centro-sul”.
Por fim, o
Santo Padre, desejando a todos os académicos e participantes nesta XXV Sessão
Pública um empenho cada vez mais fecundo na promoção do humanismo cristão,
invoca a proteção materna de Maria, Rainha dos Mártires, para que os acompanhe
sempre no seu caminho humano e académico e concede-lhes a Bênção Apostólica
extensiva aos seus entes queridos.
***
De Rossi, nascido
em Roma, a 23 de fevereiro de 1822, de família nobre, estudou no Colégio
Romano dos Jesuítas de Roma seguindo o curso de humanidades e de filosofia
e o curso
de epigrafias antigas da Accademia Greca. Inscrito na Faculdade de Direito
da Universidade de La Sapienza de Roma Universidade em 1841, logo nesse
ano explorou as catacumbas. Do trabalho na Biblioteca Apostólica
passou, por decisão sua, a dedicar-se inteiramente à arqueologia fazendo
escavações sistemáticas nas catacumbas. Em 1849, descobriu a Catacumba de São
Calisto. Em 1852, inspirou o Beato Pio IX a fundar a Pontifícia
Comissão de Arqueologia Sacra. Em 1858, com Théodore Mommsen e Wilhelm
Henzen, integrou a comissão organizada pela Academias das Ciências de
Berlim para a realização do “Corpus
Inscriptionum Latinarum”. E, em 1860, do fundado por Napoleão III para
publicar as obras de Bartolomeo Borghesi.
Secretário da
Comissão de Arqueologia Sacra (1874), Leão
XIII nomeou-o em 1878 prefeito e curador vitalício do Museu Cristão
da Santa Sé. Presidente da Pontifícia Academia Romana de Arqueologia até
à sua morte a 20 de setembro de 1894, em Castel Gandolfo, foi o fundador
do “Bollettino di archeologia sacra” (1863), que se tornou, em 1894, o “Nuovo
Bollettino”.
Giovanni
Battista de Rossi também descobriu em 1888 o “Codex Amiatinus” ou códice A, o mais antigo manuscrito sobrevivente
da Vulgata, a versão latina da Bíblia. Nos seus
73 livros, só faltando 5 capítulos, é a mais acurada cópia do texto de Jerónimo.
Do livro de Baruch só existe o 6.º capítulo dum
total de 6 deste manuscrito. Produzido no reino anglo-saxão da Nortúmbria como
um presente para o Papa e datado do início do século VIII d.C., é um
belo exemplo da caligrafia medieval e preservado em Florença, na Biblioteca
Medicea Laurenziana (Cat. Sala Studio 6).
Originalmente,
foram encomendadas 3 cópias da Bíblia por Ceolfrido (Ceolfrith) em 692 d.C., data fixada com
base numa doação recebida pelo mosteiro duplo de Wearmouth-Jarrow de
terra adicional para poder criar as 2 000 cabeças de gado necessárias para
produzir a necessária quantidade de papel ‘velino’. Beda provavelmente
estava envolvido na compilação. Ceolfrid acompanhou uma cópia que seria um
presente para o Papa Gregório II, mas faleceu a caminho de Roma. O
livro apareceu no século IX d.C. na abadia de Nosso Salvador, no
Monte Amiata (daí o
nome Amiatinus), onde ficou até 1786, quando foi transferido para a Biblioteca
Laurentiana.
A dedicatória
foi alterada e o bibliotecário Angelo Maria Bandini sugeriu que o
autor seria Servandus, seguidor de São Bento, e teria sido
produzida em Monte Cassino por volta dos anos 540 d.C. Esta alegação
foi aceite nos próximos cem anos, estabelecendo assim a cópia mais antiga
sobrevivente da Vulgata, mas académicos na Alemanha notaram a
similaridade com textos do século IX d.C. Em 1888, De Rossi estabeleceu
que o códice está relacionado com as Bíblias mencionadas por Beda, o que mostrou
que o Amiatinus está relacionado com o fragmento da Greenleaf
Bible atualmente na Biblioteca Britânica. Embora a atribuição de De
Rossi tenha removido 150 anos da idade do códice, permanece como a mais antiga
versão da Vulgata.
Está preservado num enorme tomo, com 48,9 cm de altura, 34 cm
de largura e 17,8 cm de profundidade e com um peso de 33,65 kg. Alguns
consideram-no como “o mais requintado do mundo”, mas há diversos manuscritos tão ricamente escritos e com
belas ornamentações que faltam ao Amiatinus, como o Livro de Kells e os Evangelhos
de Lindisfarena. Porém, qualifica-se de manuscrito iluminado, pois tem alguma
decoração, incluindo duas iluminuras de página inteira, mas elas
mostram poucos sinais do habitual estilo insular da arte nortúmbria
e foram claramente copiadas de originais mais antigos. Contém 1040 folhas de forte
e macio papel ‘velino’, que parece novo apesar da sua grande antiguidade,
arrumadas em calhamaços de 4 páginas, os quaternions. Escrito em carateres unciais grandes,
regulares, claramente definidos e belos, em duas colunas por página e 43 ou 44
linhas por coluna, tem um pequeno espaço, em geral, entre palavras, mas a
escrita é geralmente contínua. O texto está dividido em seções, que nos Evangelhos
correspondem às secções amonianas. Não há pontuação, mas o leitor treinado guia-se pelo arranjo esticométrico
(versos) em coda e commata, correspondendo grosso modo às frases principais e dependendo duma sentença. O
escriba ter-se-á inspirado no Codex Grandior de Cassiodoro, nesta forma de escrever, mas é possível que
o estilo venha até Jerónimo.
2022.02.01 –
Louro de Carvalho
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