O Padre Mário de Oliveira, mais conhecido por Padre Mário da Lixa, por ter
sido pároco de Macieira da Lixa (concelho de Felgueiras), faleceu aos 84 anos de idade, no passado dia 24 de fevereiro no Centro
Hospitalar do Tâmega e Sousa (Penafiel), onde se
encontrava internado em consequência dum acidente de viação que sofrera no dia
27 de janeiro em Macieira da Lixa.
Nascido em Lourosa,
concelho de Santa Maria da Feira, distrito de Aveiro, a 8 de março de 1937, era
um presbítero católico, jornalista e escritor, embora cedo se tivesse desvinculado
do status quo da Igreja Católica, o
que levou o Bispo do Porto, em 1973, a não lhe entregar qualquer serviço
pastoral na diocese em que estava incardinado.
A notícia do
óbito foi dada pela Associação Cultural e Recreativa “As Formigas de Macieira”,
de que foi mentor, na sua página do Facebook. O comunicado difundido pela Lusa referia:
“Apesar das
recentes melhoras, o pai do ‘Barracão de Cultura’ decidiu tornar-se luz e
evoluiu para um nível cósmico mais elevado. Embora tristes alegremo-nos por
termos convivido com o grande Mário Pais de Oliveira.”.
Foi ordenado
padre em 1962, tendo sido depois coadjutor na Paróquia das Antas, no Porto, professor
de Religião e Moral no Liceu Alexandre Herculano e no Liceu Normal Dom Manuel
II. (depois,
Liceu de Rodrigues de Freitas e atualmente Escola Secundária Rodrigues de
Freitas). Depois, foi enviado para a
Guiné-Bissau como capelão das tropas portuguesas, começando aí a manifestar oposição
à guerra, pois confrontou-se
ali com os dramas pessoais dos soldados e com a ocupação colonial. Foi, dizia, “pregar o Evangelho da Paz aos que lá
faziam a Guerra Colonial”. Ao fim de 4 meses foi expulso das fileiras. Esta postura
levou-o detenção pela PIDE por duas vezes e a julgamento no Tribunal Plenário
do Porto (da ditadura
salazarista-caetanista), acusado de
subversão. Na Igreja, isso, depois de ter paroquiado Macieira da Lixa após o
regresso do Ultramar, levou-o a deixar de ter trabalho pastoral atribuído pelos
sucessivos bispos do Porto, mas, ao invés do que diziam alguns, nunca foi suspenso,
embora não tivesse qualquer nomeação oficial.
A 1 de fevereiro, no período em que esteve hospitalizado, Dom Manuel Linda,
fez-lhe uma visita de cortesia, tendo declarado que o sacerdote se emocionara
com a visita, como também deixou claro que a Diocese nada tem contra o Padre
Mário, mas que não fazia sentido pô-lo a exercer um múnus em cujo conteúdo não
acreditava.
Quando foi
levado a tribunal, começou por ter apoio de vastos setores progressistas, mas o
Bispo Dom António Ferreira Gomes, que depôs em sua defesa, acabou por lhe
retirar, em março de 1973, a paróquia, em face das suas posições menos ortodoxas.
E o padre manteve sempre ligação a meios progressistas da Igreja Católica, mas,
já ao tempo, assumindo postura ecuménica, ainda que alguns destes meios se
situem nas franjas desta Igreja e nem sempre sejam reconhecidos.
Destaca-se,
além dum apostolado de base, a sua atividade como jornalista e autor de livros.
Como jornalista, trabalhou no
jornal “República”, a que se seguiram
os jornais “Página Um”, “Aqui” e “Correio do Minho”, mas foi como diretor do jornal “Fraternizar” que se destacou nos últimos
anos, um jornal que assegurava quase sozinho; e, como produtor de livros para
divulgar as suas ideias, opções, estilo e formas de ajuda às pessoas, conhecem-se-lhe
mais de 20 obras, de que se destacam: “Chicote no Templo” (Afrontamento,
1973); “Mas
à Africa, Senhores, Por que lhes Dais Tantas Dores” (Campo das Letras,
1997); “Fátima
Nunca Mais” (Campo
das Letras, 1999); “Nem Adão e Eva, Nem Pecado Original” (Campo
das Letras, 2000); “Que Fazer com esta Igreja” (Campo
das Letras, 2001); “Em Memória Delas. Livro de mulheres” (Campo
das Letras, 2002); “E Deus disse: do que eu gosto é de
política, não de religião” (Campo das Letras,
2002); “Com
Farpas. Mas com Ternura” (Ausência, 2003); “Ouvistes
o Que Foi Dito aos Antigos. Eu, Porém, Digo-vos” (Campo das Letras,
2004); “Canto(s)
nas Margens” (Ausência,
2005);
“O Outro Evangelho Segundo Jesus Cristo” (Campo das Letras,
2005);
e “Quando a Fé Move Montanhas” (Editora Magnólia, 2008).
A comunidade
que dirigiu teve relevância no apoio à democratização da América Latina, e as atividades
desenvolvidas em Portugal de solidariedade com esses povos durante os anos 70 e
80 do século passado, em que estavam submetidos a ferozes ditaduras.
Em abril de
1999, publicou o livro “Fátima nunca mais”
e conseguiu 8 edições em 12 meses. Nele tenta desfazer o mito e
apresenta as supostas provas que alegadamente desmentem as aparições de
Fátima, referindo que a utilização de Jacinta, Francisco e Lúcia na “suposta”
aparição de Nossa Senhora em Fátima, em 1917, arruinou a vida das três
crianças. E acusa o clero de Ourém e a Igreja de ter abusado
psicologicamente das 3 crianças, a ponto de duas terem morrido de pneumonia
fracas devido aos jejuns religiosos, e de terem enfiado a sobrevivente
num convento.
O Padre
Mário cedo se fez notar como antifascista e por se ter oposto à guerra
colonial. Apesar de colocado na situação de “sem ofício pastoral oficial”, ou
seja proibido na prática de exercer o sacerdócio, não desistiu da sua fé, que
praticava segundo o modo como a entendia e tentava inculcar, nem da sua
vertente crítica e solidária. Homem de causas, não fugia das polémicas e tornou-se
notado como uma das sonoras vozes pela descriminalização do aborto. Além disso,
como já foi entredito, desenvolveu intensa ação de solidariedade
internacionalista para com os povos da América Latina nos piores momentos das
ditaduras que sofreram no século passado. Participou na comunidade “Grão de
Trigo” que tem como objetivo viver junto do “povo marginalizado de São Pedro da
Cova” e onde fundou a Associação Padre Maximino.
Foi ainda
conhecido dinamizador cultural, nomeadamente na Associação Cultural e
Recreativa “As Formigas da Macieira”, de Macieira da Lixa, no âmbito da qual
criou o Barracão de Cultura em que esteve envolvido até ao fim da vida. Com
efeito, fazendo jus ao nome que se lhe colou ao corpo, decidiu, em fevereiro de
2004, fixar de novo residência em Macieira da Lixa, onde, antes de abril de
1974, foi pároco, qualidade em que foi duas vezes preso pela PIDE e julgado no
Tribunal Plenário do Porto. Porém, neste seu regresso a Macieira da Lixa, já
não tinha a ver com a paróquia. Vivia sem estatuto eclesiástico, em casa
alugada no lugar da Maçorra, na proximidade física de companheiras e de
companheiros cristãos de base, com quem partilhava a vida, os bens e a missão de
Evangelizar os pobres e os povos.
***
O funeral ocorreu a 26 de fevereiro, às 16 horas, com saída do
Barracão da Cultura para o cemitério da Lixa (concelho de Felgueiras), terra de que foi pároco
nos anos 70 do século XX antes de as posições anticoloniais, a oposição à
ditadura e o pensamento teológico o terem levado à prisão e ao tribunal. Velório
e funeral decorreram conforme as disposições expressas no prólogo do seu “Novo Livro do Apocalipse ou da Revelação”, do verão passado (vd 7 Margens, 25.02.2022):
“Ao meu cadáver – nunca o confundais comigo que, a partir daquele
Novíssimo Instante, já serei definitivamente vivente convosco – vesti-o com
alguma das roupas que me vedes utilizar diariamente, e depositai-o depois na
urna, uma das mais baratas que houver no mercado”.
Desejava tudo “totalmente despojado de quaisquer símbolos
religiosos, como o terço, o cálice, ou a cruz (do Império romano), tudo coisas beatas e
deprimentes, por isso, inumanas, pelo menos, simbolicamente”. Além deste
despojamento, desejava que a urna fosse “depositada numa campa rasa, em terreno
comum destinado aos Sem-jazigo, do cemitério de Macieira da Lixa. A campa devia
ficar assinalada com “um pequeno retângulo em madeira, com estes dizeres e sem
nenhuma data: Mário, presbítero da Igreja do Porto”. E prescrevia:
“Nada de toque de sinos. Nada de anúncios pagos nos jornais. Nada de
pagelas panegíricas, sempre despropositadas, nenhum clérigo/pastor de Igreja,
enquanto tal, presidirá ao cortejo, rumo ao cemitério. (…) Nenhuma missa – ouvistes
bem? Nenhuma missa! – deverá ser celebrada por mim. Nem durante as primeiras 24
horas, após a minha Explosão/Ressurreição, nem depois, nos dias/meses/anos
subsequentes. Confio tanto em Deus, nosso Abbá Deus de vivos, e não de mortos,
que sei que o seu Nome é muito mais glorificado assim do que com todo esse
obsceno negócio eclesiástico das chamadas ’missas pelos mortos’, que por aí se
faz nas paróquias.”.
Sublinhava o corte com práticas
instaladas que julgava opostas à mensagem evangélica e estipulava que os seus
parcos haveres e os futuros direitos de autor que viessem a ser pagos pela
venda dos seus livros deviam por inteiro beneficiar as obras em curso nas
instalações multiusos do Barracão de Cultura. E
terminava com o apelo aos que com ele participavam na Associação Cultural e
Recreativa As Formigas de Macieira:
“Não esqueçais nunca este meu último apelo que aqui vos deixo em
testamento: Amai-Vos umas às outras, uns aos outros, pelo menos tanto como eu
Vos amo. Se possível, ainda mais, muito mais do que eu Vos amo.”.
***
Sobre esta polémica figura de padre, é de salientar a ousadia
em se opor à guerra colonial e ao colonialismo, quando as figuras da Igreja em
Portugal, salvo honrosas exceções, ao arrepio das indicações da Santa Sé, e as
altas patentes militares, bem como o escol político, avessos ao Movimento emancipatório
dos povos, se acomodavam supinamente ao status
quo do regime. Também era visto de soslaio por se interessar expressamente pelos
explorados e oprimidos em Portugal e no exterior, nomeadamente na África e na América
Latina (era tido como comunista).
Todavia, é de esclarecer que muitas das ideias não são tão
inovadoras como se podia supor. Por exemplo, o que defende sobre o pecado
original ou Adão e Eva, já era ensinado nos seminários e universidades há muito
tempo. A forma truculenta e quase dogmática como o expunha é que era polémica. E,
de Fátima sempre se disse não se tratar de quesito da fé católica a aparição ou
a visão da Virgem. Porém, a acorrência de peregrinos a santuários deve ser
eclesialmente acompanhada. Ninguém diz que a Senhora apareceu na Serra do Pilar,
no Sameiro ou na Lapa, mas esses santuários são frequentados por milhares de almas
que devem ser apoiadas e evangelizadas. O padre deve agir, mais em sentido de
Igreja e comunidade que segundo as suas discutíveis ideias pessoais. Não se
percebe a teima em afirmar-se presbítero em vez de padre. Ora, “presbítero”, no
grego, significa aquele que é mais velho, o ancião; enquanto “padre”, do latim,
significa pai. E o sacerdote (bispo ou padre), sem qualquer
atitude paternalista ou de sobranceria anciã, deve estar em Igreja,
independentemente da idade, como quem serve em modo paternal ou fraternal (os membros do dito clero regular deixa-se tratar por irmãos
ou frades) e antropagógico, bem como na lógica da sabedoria eivada da experiência,
fidelidade à tradição e sonho do futuro.
É certo que há muito de piramidal e hierárquico na Igreja,
que deve ser mais circular e cintilante. Todavia, não é legítimo tratar com
severidade e espírito demolidor as entidades que nos fizeram o que somos ou
ignorar a história. Aliás, é temerário presumir-se na linha evangélica e como
que único seguidor de Jesus Cristo, acusando todos os demais de detratores. E é
difícil conceber a força duma fé pessoal que não se articule com a comunidade. E,
quanto a Fátima, é injusto acusar o clero de Ourém pela sorte dos pastorinhos:
a pandemia de 1918 era cega na vitimização e não havia os meios de hoje; e a
ida de Lúcia para o convento não é excecional.
Contudo, se lhe faltou a ponte com a hierarquia e a força
institucional, o Padre Mário foi pioneiro na posição eclesial contra a guerra,
sublinhou a opção preferencial pelos pobres e insuflou na comunidade o
companheirismo, a sobriedade, a renúncia e a solidariedade. E é pena não haver
no país forte e alargada experiência de comunidades eclesiais de base, em que
Mário fosse uma valia.
2022.02.27
– Louro de Carvalho
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