É de todos conhecida a
tentação do atual Chefe de Estado de tudo comentar, antecipar factos e datas,
como se tivesse o dom da sabedoria em tom superno, ou estar em todo o lado,
como se tivesse o privilégio da ubiquidade.
É óbvio que não era
necessário servir tantas vezes de esteio ao Governo nem servir-lhe de algoz
algumas poucas vezes, como não deveria antecipar-se a discussões no Parlamento
ou a possíveis decisões do Tribunal Constitucional. E, em vez de falar de matérias
controversas em saúde, educação e quejandas, bem poderia deixar que os especialistas
se explicassem com o rigor possível e o membro do Governo respetivo procedesse
à comunicação pública no atinente à pasta ministerial que sobraça. Por outro
lado, querer estar em cima de todos os acontecimentos e em toda a parte, sem
delegar ocasionalmente algumas funções, leva a que venham ao de cima os casos
em que não pôde, não quis estar ou de que não deu conta, deixando pessoas e entidades
com algum desconforto por se sentirem ignoradas ou esquecidas.
A talho de foice, não deixo
de recordar o látego com que infligiu o Governo em outubro de 2017 por causa
dos incêndios, de que resultou inexoravelmente a demissão da então Ministra da Administração
Interna, vindo a verificar-se posteriormente que a situação era inultrapassável
com os meios disponíveis e nas circunstâncias criadas.
E, recentemente, o Presidente
da República, perante o chumbo da proposta governamental de Lei do Orçamento
para 2022, supostamente estava bem informado sobre a evolução da pandemia,
poderia talvez adiar um pouco a dissolução do Parlamento de modo que as eleições
ocorressem no início da primavera. Por outro lado, poderia ter apelado aos
deputados no sentido de reverem a Lei Eleitoral para a Assembleia da República (LEAR) ou pelas conversas semanais com o Primeiro-Ministro ou por mensagem à Assembleia
da República. É certamente desconfortável termos a país regido sob o regime de
duodécimos, mas esse regime está para durar. E Marcelo tem andado em previsão de
data em data para a nomeação e tomada de posse do XXIII Governo Constitucional.
Deixava que o processo eleitoral chegasse a seu termo, houvesse a 1.ª reunião
da nova Assembleia da República, procedia à audição dos partidos, nomeava o
Primeiro-Ministro e empossava o Governo. Criar expectativas sem a suficiente
solidez é que não.
Não é de todo verdade, como
disse Marques Mendes em sermão dominical do dia 20, bem acolitado por Clara de
Sousa, que o grande responsável pela não revisão da lei eleitoral seja o ex-ministro
Cabrita. De facto, quem superintende na gestão dos processos eleitorais é a Administração Eleitoral sediada na Secretaria-Geral da Administração Interna, mas as iniciativas
legislativas não têm de partir de propostas do Governo, a não ser aquelas que
pela sua natureza ou complexidade técnica o exijam, como é o caso de legislação
atinente a questões orçamentais. De resto, a iniciativa legislativa pode ter
origem em propostas do Governo ou em projetos dos deputados e, em determinados
casos, não aplicáveis nesta matéria, em petições dos cidadãos.
De resto, basta de continuar
a fazer de Cabrita o bode expiatório por todos os males da República. Embora
desajeitadamente e tardiamente, já tirou as consequências políticas da sua
governança. E, se há suspeita de responsabilidade criminal, o Ministério
Público (MP) que acione os processos necessários, sem previsões inconsistentes e sem espetáculo
que mais confunda que esclareça.
***
Todas as críticas acima
desenvolvidas e outras de possível evocação têm legitimidade desde que não
raiem o apoucamento e muito menos o insulto ou a injúria e contribuam, de algum
modo para a clarificação de ideias ou de factos.
Porém, é ignóbil mimar o
Presidente da República com epítetos injuriosos e difamatórios. Como pessoa e
cidadão tem direito ao bom nome e ao respeito como qualquer outra pessoa
cidadã; e como titular do mais alto cargo de soberania merece respeito
reforçado e uma certa veneração, apesar dos defeitos pessoais ou funcionais que
possa deter. Aliás, quem nunca errou, que atire a primeira pedra!
Vêm estes considerandos a
propósito de Rui Fonseca e Castro, conhecido como o juiz negacionista, ter
publicado um vídeo de dois minutos
no Facebook onde apelida o Presidente da República Marcelo de “assassino
genocida” a propósito do processo de vacinação contra a covid-19. Para o agora
ex-juiz, que já foi advogado e agora voltou à advocacia, o Presidente da
República é “responsável pela morte de milhares de pessoas em Portugal por via
de injeções de substâncias farmacêuticas experimentais”, arguição sobre a qual
Belém ainda não teceu comentários, mas em sede de julgamento o ex-magistrado incorre em pena que
pode ir até três anos de prisão ou multa equivalente, a menos que o próprio
Presidente o salve dum processo.
Fonseca e Castro, que recorreu da decisão de expulsão da magistratura
tomada pelo Conselho Superior da Magistratura (CSM), admite que aquilo fez é crime “público”
de “ofensas à honra do Presidente da República” pelo que o MP é obrigado a instaurar o
respetivo “procedimento criminal”. Mas o ex-juiz omite que, segundo o Código
Penal, “o procedimento criminal cessa se o Presidente da República
expressamente declarar que dele desiste”. Ou seja, só há processo se Marcelo
Rebelo de Sousa quiser (vd Código Penal, art.º 328.º, n.º 3).
Em agosto de 2021, Castro fez denúncia contra Marcelo, que diz estar
“completamente” parada, e explica que “talvez assim” o MP “seja mais rápido” e
possa provar que Marcelo é um assassino genocida, “para efeitos de exclusão de
ilicitude do que acabou de fazer”. O juiz que nega a existência de pandemia e
que acredita que as vacinas mataram “milhares” de pessoas crê que acabará por
provar a culpa do Presidente e ser absolvido do crime que assume ter
cometido.
O art.º 328.º do Código Penal estabelece: “quem injuriar ou difamar o Presidente da República é punido com pena de
prisão até três anos ou com pena de multa” (n.º 1); “se
a injúria ou a difamação forem feitas por meio de palavras proferidas
publicamente, de publicação de escrito ou de desenho, ou por qualquer meio
técnico de comunicação com o público, o agente é punido com pena de prisão de
seis meses a três anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias” (n.º 2); mas “o procedimento criminal cessa
se o Presidente da República expressamente declarar que dele desiste” (n.º 3).
Quando se defendeu no processo disciplinar que lhe foi instaurado, já tinha
insultado Henrique Araújo, presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), apontando que o doutor
está mais próximo de ser presidente do STJ de Marrocos ou da Guiné Equatorial;
o presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, chamando-lhe “pedófilo”;
o diretor nacional da PSP, a quem chamou “queixinhas”; e um agente da PSP
que fazia a segurança do perímetro do CSM, dizendo-lhe: “você está abaixo de mim, ponha-se no seu lugar”.
Na contestação que apresentou no STJ para impugnar a pena de demissão
imposta pelo CSM, Castro reforça que a vacinação contra a covid-19 “é
experimental”, “pouco eficaz” e tem “reações adversas gravíssimas” que “não
escapam ao mais desatento”, apesar de as autoridades não o admitirem e de a
comunicação social, “que há muito perdeu a independência”, não divulgar esses
casos. E questiona a fiabilidade dos testes PCR, que estão na base do número
oficial de infetados divulgado diariamente pela DGS, bem como o número de
mortos por covid-19. Aduz o ex-juiz que esses óbitos são “empolados” por ser
essa a causa de morte atribuída a quem morre infetado com o coronavírus, mesmo
que tenha outras doenças. Para o ex-juiz, se a pena de demissão não for anulada
pelo STJ, isso representará “uma ode ao silêncio cúmplice para com o sistema de
controlo e crédito social de um autoritarismo eugénico e sanitário”.
Ora, respondendo à contestação de Castro, o CSM, tendo decidido expulsá-lo
por unanimidade dos membros do Plenário, diz que, “para efeitos de
responsabilidade disciplinar, não assume relevância a opinião do autor sobre
vacinas e testes PCR”. Ou seja, não tem “relevância disciplinar” o que disse,
mas a forma como o disse e o verdadeiro objetivo que tinha ao fazê-lo.
E, comparando a postura do Presidente com a do ex-juiz, há de concluir-se
que Marcelo usa da autoridade que lhe é outorgada pela Constituição para,
sustentado em pareceres de especialistas tão sólidos quanto possível, falar aos
portugueses em tempo de crise. Poderia – e deveria, a meu ver – deixar que a
tutela o fizesse, mas acompanhando sempre a matéria e a sua publicitação, mas
tem autoridade pública para o fazer, não podendo, neste caso, ser-lhe apontando
qualquer abuso. Já ao ex-juiz, que tem o direito de expor, enquanto cidadão as
suas ideias, embora sujeitas a críticas, não lhe cabe ridiculizar ou ofender
quem tenha ideias contrárias, muito menos o Presidente da República. É certo
que o ex-juiz não o fez em sede judicial, no que não pode ser responsabilizado
enquanto titular de órgão de soberania, mas fê-lo de forma arruaceira
utilizando as redes sociais e, nalguns casos, a rua, parecendo até querer
instigar à desobediência.
É certo que a pandemia não foi sempre gerida da melhor forma: houve medidas
excessivas, como as houve insuficientes; houve-as precipitadas, com as houve
tardias; avançou-se e hesitou-se; estivemos nos piores lugares e nos melhores;
contaram-se óbitos por covid quando resultaram de outras doenças a que se veio
a associar a covid ou de complicações por ação bacteriana posterior; e
avaliou-se a situação de covid dos diversos concelhos por padrão único (v. g: 100 mil habitantes) sem atender à rarefação populacional de muitos em comparação com a
densidade de outros. Todavia, os partidos da oposição fizeram as suas críticas
nos lugares adequados; os especialistas tentaram o consenso, nem sempre conseguido,
em termos comunicacionais; os tribunais apreciaram os casos que lhes foram
submetidos; a opinião pública foi-se manifestando. Não era de esperar muito
mais em tempos de grande incerteza.
Aliás o que Rui Fonseca e Castro diz de Ferro Rodrigues vem na linha do
insulto do feito ao Chefe de Estado; e o que diz do presidente do STJ parece
comparar uma democracia que tem o mínimo de sanidade com umas “democracias” não
aceites no mundo ocidental.
Enfim, as figuras cimeiras do Estado, designadamente o Presidente da
República, o Presidente da Assembleia da República e o Primeiro-Ministro,
apesar das críticas que lhes possam ou devam ser feitas, merecem especial
respeito e sobretudo não podem ser objeto de insulto ou injúria. Até ao fim de mandato
são representantes do povo nos lugares para que foram legitimamente catapultados.
Em certa medida, são obra do povo soberano. E o povo não pode permitir que a
sua obra seja maltratada.
2022.02.21 – Louro de Carvalho
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