segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Presidente da República pode ser criticado, mas não insultado

 

É de todos conhecida a tentação do atual Chefe de Estado de tudo comentar, antecipar factos e datas, como se tivesse o dom da sabedoria em tom superno, ou estar em todo o lado, como se tivesse o privilégio da ubiquidade.

É óbvio que não era necessário servir tantas vezes de esteio ao Governo nem servir-lhe de algoz algumas poucas vezes, como não deveria antecipar-se a discussões no Parlamento ou a possíveis decisões do Tribunal Constitucional. E, em vez de falar de matérias controversas em saúde, educação e quejandas, bem poderia deixar que os especialistas se explicassem com o rigor possível e o membro do Governo respetivo procedesse à comunicação pública no atinente à pasta ministerial que sobraça. Por outro lado, querer estar em cima de todos os acontecimentos e em toda a parte, sem delegar ocasionalmente algumas funções, leva a que venham ao de cima os casos em que não pôde, não quis estar ou de que não deu conta, deixando pessoas e entidades com algum desconforto por se sentirem ignoradas ou esquecidas.   

A talho de foice, não deixo de recordar o látego com que infligiu o Governo em outubro de 2017 por causa dos incêndios, de que resultou inexoravelmente a demissão da então Ministra da Administração Interna, vindo a verificar-se posteriormente que a situação era inultrapassável com os meios disponíveis e nas circunstâncias criadas.

E, recentemente, o Presidente da República, perante o chumbo da proposta governamental de Lei do Orçamento para 2022, supostamente estava bem informado sobre a evolução da pandemia, poderia talvez adiar um pouco a dissolução do Parlamento de modo que as eleições ocorressem no início da primavera. Por outro lado, poderia ter apelado aos deputados no sentido de reverem a Lei Eleitoral para a Assembleia da República (LEAR) ou pelas conversas semanais com o Primeiro-Ministro ou por mensagem à Assembleia da República. É certamente desconfortável termos a país regido sob o regime de duodécimos, mas esse regime está para durar. E Marcelo tem andado em previsão de data em data para a nomeação e tomada de posse do XXIII Governo Constitucional. Deixava que o processo eleitoral chegasse a seu termo, houvesse a 1.ª reunião da nova Assembleia da República, procedia à audição dos partidos, nomeava o Primeiro-Ministro e empossava o Governo. Criar expectativas sem a suficiente solidez é que não.

Não é de todo verdade, como disse Marques Mendes em sermão dominical do dia 20, bem acolitado por Clara de Sousa, que o grande responsável pela não revisão da lei eleitoral seja o ex-ministro Cabrita. De facto, quem superintende na gestão dos processos eleitorais é a Administração Eleitoral sediada na Secretaria-Geral da Administração Interna, mas as iniciativas legislativas não têm de partir de propostas do Governo, a não ser aquelas que pela sua natureza ou complexidade técnica o exijam, como é o caso de legislação atinente a questões orçamentais. De resto, a iniciativa legislativa pode ter origem em propostas do Governo ou em projetos dos deputados e, em determinados casos, não aplicáveis nesta matéria, em petições dos cidadãos.

De resto, basta de continuar a fazer de Cabrita o bode expiatório por todos os males da República. Embora desajeitadamente e tardiamente, já tirou as consequências políticas da sua governança. E, se há suspeita de responsabilidade criminal, o Ministério Público (MP) que acione os processos necessários, sem previsões inconsistentes e sem espetáculo que mais confunda que esclareça.        

***

Todas as críticas acima desenvolvidas e outras de possível evocação têm legitimidade desde que não raiem o apoucamento e muito menos o insulto ou a injúria e contribuam, de algum modo para a clarificação de ideias ou de factos.

Porém, é ignóbil mimar o Presidente da República com epítetos injuriosos e difamatórios. Como pessoa e cidadão tem direito ao bom nome e ao respeito como qualquer outra pessoa cidadã; e como titular do mais alto cargo de soberania merece respeito reforçado e uma certa veneração, apesar dos defeitos pessoais ou funcionais que possa deter. Aliás, quem nunca errou, que atire a primeira pedra!

Vêm estes considerandos a propósito de Rui Fonseca e Castro, conhecido como o juiz negacionista, ter publicado um vídeo de dois minutos no Facebook onde apelida o Presidente da República Marcelo de “assassino genocida” a propósito do processo de vacinação contra a covid-19. Para o agora ex-juiz, que já foi advogado e agora voltou à advocacia, o Presidente da República é “responsável pela morte de milhares de pessoas em Portugal por via de injeções de substâncias farmacêuticas experimentais”, arguição sobre a qual Belém ainda não teceu comentários, mas em sede de julgamento o ex-magistrado incorre em pena que pode ir até três anos de prisão ou multa equivalente, a menos que o próprio Presidente o salve dum processo.

Fonseca e Castro, que recorreu da decisão de expulsão da magistratura tomada pelo Conselho Superior da Magistratura (CSM), admite que aquilo fez é crime “público” de “ofensas à honra do Presidente da República” pelo que o MP é obrigado a instaurar o respetivo “procedimento criminal”. Mas o ex-juiz omite que, segundo o Código Penal, “o procedimento criminal cessa se o Presidente da República expressamente declarar que dele desiste”. Ou seja, só há processo se Marcelo Rebelo de Sousa quiser (vd Código Penal, art.º 328.º, n.º 3)

Em agosto de 2021, Castro fez denúncia contra Marcelo, que diz estar “completamente” parada, e explica que “talvez assim” o MP “seja mais rápido” e possa provar que Marcelo é um assassino genocida, “para efeitos de exclusão de ilicitude do que acabou de fazer”. O juiz que nega a existência de pandemia e que acredita que as vacinas mataram “milhares” de pessoas crê que acabará por provar a culpa do Presidente e ser absolvido do crime que assume ter cometido. 

O art.º 328.º do Código Penal estabelece: “quem injuriar ou difamar o Presidente da República é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa” (n.º 1); “se a injúria ou a difamação forem feitas por meio de palavras proferidas publicamente, de publicação de escrito ou de desenho, ou por qualquer meio técnico de comunicação com o público, o agente é punido com pena de prisão de seis meses a três anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias(n.º 2); mas “o procedimento criminal cessa se o Presidente da República expressamente declarar que dele desiste(n.º 3).

Quando se defendeu no processo disciplinar que lhe foi instaurado, já tinha insultado Henrique Araújo, presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), apontando que o doutor está mais próximo de ser presidente do STJ de Marrocos ou da Guiné Equatorial; o presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, chamando-lhe “pedófilo”; o diretor nacional da PSP, a quem chamou “queixinhas”;  e um agente da PSP que fazia a segurança do perímetro do CSM, dizendo-lhe: “você está abaixo de mim, ponha-se no seu lugar”.

Na contestação que apresentou no STJ para impugnar a pena de demissão imposta pelo CSM, Castro reforça que a vacinação contra a covid-19 “é experimental”, “pouco eficaz” e tem “reações adversas gravíssimas” que “não escapam ao mais desatento”, apesar de as autoridades não o admitirem e de a comunicação social, “que há muito perdeu a independência”, não divulgar esses casos. E questiona a fiabilidade dos testes PCR, que estão na base do número oficial de infetados divulgado diariamente pela DGS, bem como o número de mortos por covid-19. Aduz o ex-juiz que esses óbitos são “empolados” por ser essa a causa de morte atribuída a quem morre infetado com o coronavírus, mesmo que tenha outras doenças. Para o ex-juiz, se a pena de demissão não for anulada pelo STJ, isso representará “uma ode ao silêncio cúmplice para com o sistema de controlo e crédito social de um autoritarismo eugénico e sanitário”.

Ora, respondendo à contestação de Castro, o CSM, tendo decidido expulsá-lo por unanimidade dos membros do Plenário, diz que, “para efeitos de responsabilidade disciplinar, não assume relevância a opinião do autor sobre vacinas e testes PCR”. Ou seja, não tem “relevância disciplinar” o que disse, mas a forma como o disse e o verdadeiro objetivo que tinha ao fazê-lo.

E, comparando a postura do Presidente com a do ex-juiz, há de concluir-se que Marcelo usa da autoridade que lhe é outorgada pela Constituição para, sustentado em pareceres de especialistas tão sólidos quanto possível, falar aos portugueses em tempo de crise. Poderia – e deveria, a meu ver – deixar que a tutela o fizesse, mas acompanhando sempre a matéria e a sua publicitação, mas tem autoridade pública para o fazer, não podendo, neste caso, ser-lhe apontando qualquer abuso. Já ao ex-juiz, que tem o direito de expor, enquanto cidadão as suas ideias, embora sujeitas a críticas, não lhe cabe ridiculizar ou ofender quem tenha ideias contrárias, muito menos o Presidente da República. É certo que o ex-juiz não o fez em sede judicial, no que não pode ser responsabilizado enquanto titular de órgão de soberania, mas fê-lo de forma arruaceira utilizando as redes sociais e, nalguns casos, a rua, parecendo até querer instigar à desobediência.  

É certo que a pandemia não foi sempre gerida da melhor forma: houve medidas excessivas, como as houve insuficientes; houve-as precipitadas, com as houve tardias; avançou-se e hesitou-se; estivemos nos piores lugares e nos melhores; contaram-se óbitos por covid quando resultaram de outras doenças a que se veio a associar a covid ou de complicações por ação bacteriana posterior; e avaliou-se a situação de covid dos diversos concelhos por padrão único (v. g: 100 mil habitantes) sem atender à rarefação populacional de muitos em comparação com a densidade de outros. Todavia, os partidos da oposição fizeram as suas críticas nos lugares adequados; os especialistas tentaram o consenso, nem sempre conseguido, em termos comunicacionais; os tribunais apreciaram os casos que lhes foram submetidos; a opinião pública foi-se manifestando. Não era de esperar muito mais em tempos de grande incerteza.        

Aliás o que Rui Fonseca e Castro diz de Ferro Rodrigues vem na linha do insulto do feito ao Chefe de Estado; e o que diz do presidente do STJ parece comparar uma democracia que tem o mínimo de sanidade com umas “democracias” não aceites no mundo ocidental.

Enfim, as figuras cimeiras do Estado, designadamente o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República e o Primeiro-Ministro, apesar das críticas que lhes possam ou devam ser feitas, merecem especial respeito e sobretudo não podem ser objeto de insulto ou injúria. Até ao fim de mandato são representantes do povo nos lugares para que foram legitimamente catapultados. Em certa medida, são obra do povo soberano. E o povo não pode permitir que a sua obra seja maltratada.

2022.02.21 – Louro de Carvalho

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