segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

“O perdão é um direito humano”

 

Francisco conectou-se da Casa Santa Marta (Vaticano) com o programa “Che tempo che fa” conduzido por Fabio Fazio no canal RAI 3 e dialogou com o apresentador que o interrogou sobre vários problemas: guerra, migrantes, criação, relação pais-filhos, mal e sofrimento, oração, futuro da Igreja, necessidade de amigos. E, nesse diálogo, sobressai a afirmação de que o perdão é um “direito humano”, ou seja, “a capacidade de ser perdoado é um direito humano”. Basta que peçamos perdão. 

O olhar dos dois interlocutores começou por se concentrar no tema da migração, caro ao Papa e mais atual após a notícia de 12 migrantes encontrados mortos por congelamento na fronteira da Grécia com a Turquia – “um sinal da cultura da indiferença” e “um problema de categorização”, que põe a guerra antes e acima das pessoas. Exemplo claro disto é o Iémen, que sofre há anos a guerra sem que se encontre solução e quase não se ouve falar das suas crianças.

O Pontífice lamenta que haja categorias que não contam, pelo menos em primeiro lugar: crianças, migrantes, pobres, quem não tem o que comer. Há quem ame e tente ajudar estas pessoas, mas na imaginação universal “o que conta é a guerra, a venda de armas”, quando um ano sem produção de armas daria comida e educação a todos. E Francisco pensa em Alan Kurdi, a criança síria encontrada morta numa praia, e nas muitas crianças “que não conhecemos” e que “morrem de frio” diariamente. A guerra mantém-se como a primeira categoria: mobiliza as economias e assume várias modalidades: ideológica, de poderes, comercial. E há “tantas fábricas de armas”!

Interpelado sobre as tensões entre a Ucrânia e a Rússia, o Santo Padre evocou as raízes desta horribilidade, “um contrassenso da criação” que remonta ao Génesis com a luta entre Caim e Abel e a guerra pela Torre de Babel. Guerras fratricidas surgiram pouco depois da criação do homem e da mulher por Deus. É o antissenso da criação: a guerra é destruição. Enquanto o trabalho da terra, o cuidado dos filhos, o sustento da família, o incremento da sociedade se inscrevem no quadro da construção, a guerra é “uma mecânica de destruição”.

Nesta mecânica, o Papa incluiu o tratamento criminoso reservado a milhares de migrantes que, “para chegarem ao mar, sofrem tanto”, e reiterou a denúncia das “lagers” na Líbia, sofrendo nas mãos dos traficantes aqueles que querem fugir, como documentam tantos filmes, muitos dos quais são conservados na secção “migrantes e refugiados” do Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral. Sofrem e arriscam atravessar o Mediterrâneo. Por vezes, são rejeitados por quem, por responsabilidade local, diz não terem lugar ali. E navios andam à procura dum porto voltando ou morrendo no mar os migrantes. Assim, como noutras ocasiões, Francisco enunciou o princípio: “cada país deve dizer quantos imigrantes pode acolher”. É um problema de política interna que deve ser bem pensado. E a União Europeia deve induzir “um equilíbrio, em comunhão” contra a emergência da “injustiça”, que teima em aparecer sozinha. Vêm os migrantes para a Espanha e Itália, não sendo recebidos noutro lugar, quando o migrante deve ser sempre “acolhido, acompanhado, promovido e integrado”. Acima de tudo, há que o integrar a fim de evitar a guetização e os extremismos filhos de ideologias, como ocorreu na tragédia de Zaventem (Bélgica), com dois agressores belgas, mas filhos de migrantes guetizados. Mais: os migrantes são recursos em países de forte declínio demográfico, pelo que, vinca o Papa, “devemos pensar inteligentemente na política migratória, uma política continental”, pois o facto de o Mediterrâneo ser hoje o maior cemitério da Europa deve fazer-nos pensar".

Da mesma sorte, Francisco exortou a refletir sobre uma tremenda divisão no mundo: uma parte desenvolvida onde se tem “a possibilidade de escola, universidade, trabalho”; e outra, com as “crianças que morrem, migrantes que se afogam, injustiças que vemos também nos nossos próprios países”. A tentação, “muito feia” é “olhar para o outro lado, não olhar”. E, se os meios de comunicação social mostram tudo, “nós tomamos distância”. Queixamo-nos, mas depois é como se nada tivesse acontecido. Ora, como diz o Papa, “não basta ver, é necessário sentir, é necessário tocar”, pois tocar as misérias humanas leva-nos ao heroísmo. É o caso do pessoal da saúde: deram as suas vidas nesta pandemia: tocaram o mal e escolheram ficar ao pé dos doentes.

Em relação à Terra, o Pontífice reiterou o apelo a cuidar da criação: “é uma educação que temos de aprender”. Olhando a Amazónia, a desflorestação, a falta de oxigénio, as mudanças climáticas, apontou o risco de morte da biodiversidade, morte da Mãe Terra. Exemplificou com o caso dos pescadores de San Benedetto del Tronto, que encontraram, num ano, cerca de 3 milhões de toneladas de plástico e tomaram medidas para remover todos os resíduos do mar. Está em causa “tomar conta da Mãe Terra”. E Francisco, falando das mudanças climáticas, citou a canção de Roberto Carlos em que o filho pergunta ao pai “porque é que o rio já não canta”.

O Papa frisou a atitude de cuidado, que parece faltar do ponto de vista social. Emerge o fenómeno da agressividade social, como mostra o bullying. Ora, a agressividade deve ser educada. É precisa agressão para dominar a natureza, construir (agressão positiva), mas tem de se evitar a agressão destrutiva que começa por coisas de nada, como a tagarelice (na famílias, no bairro, no governo…), que destrói a identidade. Se há algo a dizer a alguém, diga-se-lhe com verdade e coragem.

Focado nos jovens, não raro vítimas de “incrível sensação de solidão” apesar de hiperligados, o Papa dirigiu-se aos pais, vincando que a relação pais-filhos pode sintetizar-se na palavra “proximidade”, assente na gratuitidade do pai e da mãe com o filho. Porém, a sociedade cruel que separa os pais dos filhos leva a que, quando o pai sai de casa para trabalhar, eles ainda dormem e, quando volta à noite, já dormem. Mas a gratuidade com os filhos leva os pais a brincar com os filhos e a não ter medo deles, do que dizem, das suas hipóteses; e, quando o filho crescido, adolescente, “escorrega”, é útil estar perto, falar com o pai, com a mãe.

Sobre a proximidade, Fazio recordou a frase do Papa: “Um homem só pode olhar um outro homem de cima para baixo quando o ajuda a levantar-se”. E Francisco aprofundou o conceito apontando que frequentemente na sociedade “as pessoas olham para os outros de cima para baixo para os dominar, para os subjugar e não para os ajudar a levantar”. É o caso dos empregados que “têm de pagar pela estabilidade do seu trabalho com o seu corpo, porque “o patrão os olha de cima para baixo, para os dominar”. Olhar o outro de cima para baixo “só é lícito para fazer um ato ‘nobre’, ou seja, estender a mão e dizer levanta-te, irmão; levanta-te, irmã”. 

Em torno do conceito de liberdade, dom de Deus, mas à sombra da qual se faz muito mal, o Papa observou que, porque “Deus nos fez livres, somos senhores das nossas decisões e também de tomar decisões erradas”. E à questão de Fazio se “há alguém que não mereça o perdão e a misericórdia de Deus ou o perdão dos homens”, o Pontífice respondeu com algo desconcertante:

A capacidade de ser perdoado é um direito humano. Todos temos o direito de ser perdoados se pedirmos perdão. É um direito que provém da própria natureza de Deus e foi dado como herança aos homens. Esquecemos que alguém que pede perdão tem o direito de ser perdoado. Fizeste algo, deves pagar. Não! Tens o direito de ser perdoado; e, se tens uma dívida para com a sociedade, deves pagá-la, mas com o perdão.”.

Contudo, há o mal inexplicável que às vezes atinge os inocentes e pelo qual se pergunta por que razão Deus não intervém.  E o Bispo de Roma explicita:

Tantos males vêm precisamente porque o homem perdeu a capacidade de seguir as regras, mudou a natureza, mudou tantas coisas, e também por causa das suas próprias fragilidades humanas. E Deus permite que isto continue.”.

E o Papa, que admitiu não conseguir encontrar explicação para a pergunta “Porque é que as crianças sofrem?”, confessou.

Eu tenho fé, tento amar a Deus que é meu pai, mas pergunto-me: ‘Mas porque sofrem as crianças? E não há resposta. Ele é forte, sim, omnipotente no amor. Em vez disso, o ódio, a destruição, estão nas mãos de outro que semeou o Mal no mundo por inveja.”.

Porém, como com o Mal “não se fala”, assegurou que “dialogar com o Mal é perigoso”. E, porque muitas pessoas tentam dialogar com o Mal (disse já se ter encontrado nessa situação), revelou interrogar-se sobre o porquê dum diálogo com o Mal, o que é coisa má; e isso vale para todas as tentações. E, quando chega a tentação de se questionar porque sofrem as crianças, só encontra uma resposta: “sofrer com elas”. Nisso, Dostoevsky foi “um grande mestre” – apontou.

O futuro do mundo, como prefigurado na “Fratelli tutti”, com o homem no centro das economias e das escolhas é uma prioridade que o Bispo de Roma partilha com muitos chefes de Estado que têm bons ideais. Porém, estes colidem com “condicionamentos políticos e sociais”, mesmo na política mundial, “que impedem as boas intenções”. São “sombras” que pressionam a sociedade, o povo e os que têm papéis de responsabilidade, pelo que “é preciso negociar muito”.

Sobre o futuro da Igreja, Bergoglio recordou a imagem da Igreja delineada por São Paulo VI na exortação apostólica “Evangelii Nuntiandi”, que inspirou a sua “Evangelii Gaudium”: uma Igreja em peregrinação. “O maior mal da Igreja, o maior”, reitera o Papa, “é a mundanização espiritual” que faz crescer o clericalismo, “uma perversão da Igreja”, que existe na rigidez, por baixo da qual se aninha a podridão. E Francisco conta entre as “coisas feias” da Igreja de hoje as “posições rígidas, ideologicamente rígidas” que usurpam o lugar do Evangelho. Em termos pastorais, menciona duas, que são antigas: o pelagianismo e o gnosticismo. Segundo o pelagianismo, “com a minha força posso avançar”. Ora, a Igreja avança com a força e a misericórdia de Deus e o poder do Espírito Santo. Para o gnosticismo, Deus não Se encarnou, apenas pareceu homem. E o Pontífice porfia que, sem Deus encarnado, a espiritualidade é vazia; sem a carne de Cristo não há compreensão possível, não há redenção possível. Temos de voltar ao centro: “O Verbo tornou-se carne. Neste escândalo da cruz, do Verbo feito carne, está o futuro da Igreja”, disse o Papa.

Depois, explicou a importância da oração:

Rezar é o que uma criança faz quando se sente limitada, impotente [ela diz] ‘papá, mamã’. Rezar significa olhar para os nossos limites, as nossas necessidades, os nossos pecados... Rezar é entrar com força, para lá dos limites, para lá do horizonte; e, para nós, cristãos, rezar é encontrar o pai’.”.

E insistiu o Papa argentino:

A criança não espera pela resposta do papá. Quando o papá começa a responder, ela sai com outra pergunta. O que a criança quer é que o olhar do pai esteja sobre ela. Não importa qual seja a explicação, importa apenas que o papá olhe para ela. E isso dá-lhe segurança. Rezar é um pouco isso.”.

Junto ao final, tocaram-se áreas mais pessoais, como se “alguma vez se sente só”, “se tem amigos verdadeiros”… E Bergoglio respondeu que tem amigos que o ajudam e conhecem a sua vida como dum homem normal, que tem as suas “próprias anomalias” e, “como um homem comum que tem amigos”, gosta de estar com os amigos até para lhes contar as suas coisas, ouvir as deles, mas que, de facto, precisa de amigos, sendo esta uma das razões por que não foi viver no apartamento papal (Os papas que lá viveram antes eram santos. E ele não se considera tão santo). E reiterou:

Preciso de relações humanas. É por isso que vivo neste hotel de Santa Marta, onde se encontram pessoas que falam com todos, se encontram amigos. É uma vida mais fácil para mim, não tenho vontade de fazer outra, não tenho a força e as amizades dão-me força. Pelo contrário, preciso de amigos, eles são poucos, mas verdadeiros.”.

Na entrevista, houve ainda referências ao passado e à infância em Buenos Aires, ao fraquinho pelo San Lorenzo, à “vocação” de açougueiro, às raízes piemontesas e à experiência no laboratório de química, um estudo “que tanto me seduziu” mas sobre o qual prevaleceu a chamada de Deus. O Papa recordou o voto que fez a Nossa Senhora do Carmo, a 16 de julho de 1990, de não ver televisão (não vê televisão, “não porque a condene”) e o seu amor pela música, sobretudo a clássica. E vincou o sentido de humor que, diz, “é um remédio” que “faz muito bem”.

Como em cada um dos discursos, Francisco pediu orações por si, justificando:

Eu preciso; e, se algum de vós não rezar porque não crê, não sabe ou não pode, pelo menos envie-me bons pensamentos, boas ondas. Preciso da proximidade das pessoas.”.

E a entrevista concluiu com uma imagem retirada dum filme do pós-guerra:

Para finalizar o diálogo, penso que foi Vittorio De sica que fazia de cartomante, lia as mãos ‘obrigado, 100 liras’; eu digo-vos: ‘100 orações’, ‘100 liras, 100 orações’. Obrigado!”.

***

É impressionante como fala do perdão (em dia da Festa das Chagas de Cristo) e da oração, dos grandes temas e do aspeto simples das relações interpessoais.

2022.02.07 – Louro de Carvalho  

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