Francisco
conectou-se da Casa Santa Marta (Vaticano) com o
programa “Che tempo che fa” conduzido
por Fabio Fazio no canal RAI 3 e dialogou com o apresentador que o interrogou
sobre vários problemas: guerra, migrantes, criação, relação pais-filhos, mal e
sofrimento, oração, futuro da Igreja, necessidade de amigos. E, nesse diálogo,
sobressai a afirmação de que o perdão é um “direito humano”, ou seja, “a
capacidade de ser perdoado é um direito humano”. Basta que peçamos perdão.
O olhar dos
dois interlocutores começou por se concentrar no tema da migração, caro ao Papa
e mais atual após a notícia de 12 migrantes encontrados mortos por congelamento
na fronteira da Grécia com a Turquia – “um sinal da cultura da indiferença” e
“um problema de categorização”, que põe a guerra antes e acima das pessoas. Exemplo
claro disto é o Iémen, que sofre há anos a guerra sem que se encontre solução e
quase não se ouve falar das suas crianças.
O Pontífice
lamenta que haja categorias que não contam, pelo menos em primeiro lugar: crianças,
migrantes, pobres, quem não tem o que comer. Há quem ame e tente ajudar estas
pessoas, mas na imaginação universal “o que conta é a guerra, a venda de armas”,
quando um ano sem produção de armas daria comida e educação a todos. E
Francisco pensa em Alan Kurdi, a criança síria encontrada morta numa praia, e nas
muitas crianças “que não conhecemos” e que “morrem de frio” diariamente. A
guerra mantém-se como a primeira categoria: mobiliza as economias e assume
várias modalidades: ideológica, de poderes, comercial. E há “tantas fábricas de
armas”!
Interpelado sobre
as tensões entre a Ucrânia e a Rússia, o Santo Padre evocou as raízes desta
horribilidade, “um contrassenso da criação” que remonta ao Génesis com a luta
entre Caim e Abel e a guerra pela Torre de Babel. Guerras fratricidas surgiram
pouco depois da criação do homem e da mulher por Deus. É o antissenso da criação:
a guerra é destruição. Enquanto o trabalho da terra, o cuidado dos filhos, o
sustento da família, o incremento da sociedade se inscrevem no quadro da
construção, a guerra é “uma mecânica de destruição”.
Nesta
mecânica, o Papa incluiu o tratamento criminoso reservado a milhares de
migrantes que, “para chegarem ao mar, sofrem tanto”, e reiterou a denúncia das
“lagers” na Líbia, sofrendo nas mãos dos traficantes aqueles que querem fugir,
como documentam tantos filmes, muitos dos quais são conservados na secção
“migrantes e refugiados” do Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral. Sofrem
e arriscam atravessar o Mediterrâneo. Por vezes, são rejeitados por quem, por
responsabilidade local, diz não terem lugar ali. E navios andam à procura dum
porto voltando ou morrendo no mar os migrantes. Assim, como noutras ocasiões, Francisco
enunciou o princípio: “cada país deve
dizer quantos imigrantes pode acolher”. É um problema de política interna
que deve ser bem pensado. E a União Europeia deve induzir “um equilíbrio, em
comunhão” contra a emergência da “injustiça”, que teima em aparecer sozinha.
Vêm os migrantes para a Espanha e Itália, não sendo recebidos noutro lugar,
quando o migrante deve ser sempre “acolhido, acompanhado, promovido e integrado”.
Acima de tudo, há que o integrar a fim de evitar a guetização e os extremismos filhos
de ideologias, como ocorreu na tragédia de Zaventem (Bélgica), com dois agressores belgas, mas filhos de migrantes
guetizados. Mais: os migrantes são recursos em países de forte declínio
demográfico, pelo que, vinca o Papa, “devemos pensar inteligentemente na
política migratória, uma política continental”, pois o facto de o Mediterrâneo
ser hoje o maior cemitério da Europa deve fazer-nos pensar".
Da mesma
sorte, Francisco exortou a refletir sobre uma tremenda divisão no mundo: uma parte
desenvolvida onde se tem “a possibilidade de escola, universidade, trabalho”; e
outra, com as “crianças que morrem, migrantes que se afogam, injustiças que
vemos também nos nossos próprios países”. A tentação, “muito feia” é “olhar
para o outro lado, não olhar”. E, se os meios de comunicação social mostram
tudo, “nós tomamos distância”. Queixamo-nos, mas depois é como se nada tivesse
acontecido. Ora, como diz o Papa, “não basta ver, é necessário sentir, é
necessário tocar”, pois tocar as misérias humanas leva-nos ao heroísmo. É o
caso do pessoal da saúde: deram as suas vidas nesta pandemia: tocaram o mal e
escolheram ficar ao pé dos doentes.
Em relação à
Terra, o Pontífice reiterou o apelo a cuidar da criação: “é uma educação que temos de aprender”. Olhando a Amazónia, a
desflorestação, a falta de oxigénio, as mudanças climáticas, apontou o risco de
morte da biodiversidade, morte da Mãe Terra. Exemplificou com o caso dos
pescadores de San Benedetto del Tronto, que encontraram, num ano, cerca de 3
milhões de toneladas de plástico e tomaram medidas para remover todos os
resíduos do mar. Está em causa “tomar conta da Mãe Terra”. E Francisco,
falando das mudanças climáticas, citou a canção de Roberto Carlos em que o
filho pergunta ao pai “porque é que o rio
já não canta”.
O Papa
frisou a atitude de cuidado, que parece faltar do ponto de vista social. Emerge
o fenómeno da agressividade social, como mostra o bullying. Ora, a agressividade
deve ser educada. É precisa agressão para dominar a natureza, construir (agressão
positiva), mas tem de se evitar a agressão
destrutiva que começa por coisas de nada, como a tagarelice (na
famílias, no bairro, no governo…), que
destrói a identidade. Se há algo a dizer a alguém, diga-se-lhe com verdade e
coragem.
Focado nos
jovens, não raro vítimas de “incrível sensação de solidão” apesar de
hiperligados, o Papa dirigiu-se aos pais, vincando que a relação pais-filhos pode
sintetizar-se na palavra “proximidade”, assente na gratuitidade do pai e da mãe
com o filho. Porém, a sociedade cruel que separa os pais dos filhos leva a que,
quando o pai sai de casa para trabalhar, eles ainda dormem e, quando volta à
noite, já dormem. Mas a gratuidade com os filhos leva os pais a brincar com os
filhos e a não ter medo deles, do que dizem, das suas hipóteses; e, quando o
filho crescido, adolescente, “escorrega”, é útil estar perto, falar com o pai,
com a mãe.
Sobre a
proximidade, Fazio recordou a frase do Papa: “Um homem só pode olhar um outro homem de cima para baixo quando o ajuda
a levantar-se”. E Francisco aprofundou o conceito apontando que
frequentemente na sociedade “as pessoas
olham para os outros de cima para baixo para os dominar, para os subjugar e não
para os ajudar a levantar”. É o caso dos empregados que “têm de pagar pela
estabilidade do seu trabalho com o seu corpo, porque “o patrão os olha de cima
para baixo, para os dominar”. Olhar o outro de cima para baixo “só é lícito
para fazer um ato ‘nobre’, ou seja, estender a mão e dizer levanta-te, irmão;
levanta-te, irmã”.
Em torno do
conceito de liberdade, dom de Deus, mas à sombra da qual se faz muito mal, o
Papa observou que, porque “Deus nos fez livres, somos senhores das nossas
decisões e também de tomar decisões erradas”. E à questão de Fazio se “há
alguém que não mereça o perdão e a misericórdia de Deus ou o perdão dos
homens”, o Pontífice respondeu com algo desconcertante:
“A capacidade de ser perdoado é um direito
humano. Todos temos o direito de ser perdoados se pedirmos perdão. É um direito
que provém da própria natureza de Deus e foi dado como herança aos homens.
Esquecemos que alguém que pede perdão tem o direito de ser perdoado. Fizeste
algo, deves pagar. Não! Tens o direito de ser perdoado; e, se tens uma dívida
para com a sociedade, deves pagá-la, mas com o perdão.”.
Contudo, há
o mal inexplicável que às vezes atinge os inocentes e pelo qual se pergunta por
que razão Deus não intervém. E o Bispo de Roma explicita:
“Tantos males vêm precisamente porque o
homem perdeu a capacidade de seguir as regras, mudou a natureza, mudou tantas
coisas, e também por causa das suas próprias fragilidades humanas. E Deus
permite que isto continue.”.
E o Papa,
que admitiu não conseguir encontrar explicação para a pergunta “Porque é que as crianças sofrem?”,
confessou.
“Eu tenho fé, tento amar a Deus que é meu
pai, mas pergunto-me: ‘Mas porque sofrem as crianças? E não há resposta. Ele é
forte, sim, omnipotente no amor. Em vez disso, o ódio, a destruição, estão nas
mãos de outro que semeou o Mal no mundo por inveja.”.
Porém, como
com o Mal “não se fala”, assegurou que “dialogar
com o Mal é perigoso”. E, porque muitas pessoas tentam dialogar com o Mal (disse já se
ter encontrado nessa situação), revelou
interrogar-se sobre o porquê dum diálogo com o Mal, o que é coisa má; e isso
vale para todas as tentações. E, quando chega a tentação de se questionar porque
sofrem as crianças, só encontra uma resposta: “sofrer com elas”. Nisso,
Dostoevsky foi “um grande mestre” – apontou.
O futuro do
mundo, como prefigurado na “Fratelli
tutti”, com o homem no centro das economias e das escolhas é uma prioridade
que o Bispo de Roma partilha com muitos chefes de Estado que têm bons ideais.
Porém, estes colidem com “condicionamentos políticos e sociais”, mesmo na
política mundial, “que impedem as boas intenções”. São “sombras” que pressionam
a sociedade, o povo e os que têm papéis de responsabilidade, pelo que “é preciso negociar muito”.
Sobre o
futuro da Igreja, Bergoglio recordou a imagem da Igreja delineada por São Paulo
VI na exortação apostólica “Evangelii
Nuntiandi”, que inspirou a sua “Evangelii
Gaudium”: uma Igreja em peregrinação.
“O maior mal da Igreja, o maior”, reitera o Papa, “é a mundanização espiritual” que faz crescer o clericalismo, “uma
perversão da Igreja”, que existe na rigidez, por baixo da qual se aninha a
podridão. E Francisco conta entre as “coisas feias” da Igreja de hoje as “posições rígidas, ideologicamente rígidas”
que usurpam o lugar do Evangelho. Em termos pastorais, menciona duas, que são
antigas: o pelagianismo e o gnosticismo. Segundo o pelagianismo, “com a minha
força posso avançar”. Ora, a Igreja avança com a força e a misericórdia de Deus
e o poder do Espírito Santo. Para o gnosticismo, Deus não Se encarnou, apenas
pareceu homem. E o Pontífice porfia que, sem Deus encarnado, a espiritualidade é
vazia; sem a carne de Cristo não há compreensão possível, não há redenção
possível. Temos de voltar ao centro: “O
Verbo tornou-se carne. Neste escândalo da cruz, do Verbo feito carne, está o
futuro da Igreja”, disse o Papa.
Depois,
explicou a importância da oração:
“Rezar é o que uma criança faz quando se
sente limitada, impotente [ela diz] ‘papá, mamã’. Rezar significa olhar para os
nossos limites, as nossas necessidades, os nossos pecados... Rezar é entrar com
força, para lá dos limites, para lá do horizonte; e, para nós, cristãos, rezar
é encontrar o pai’.”.
E insistiu o
Papa argentino:
“A criança não espera pela resposta do papá.
Quando o papá começa a responder, ela sai com outra pergunta. O que a criança
quer é que o olhar do pai esteja sobre ela. Não importa qual seja a explicação,
importa apenas que o papá olhe para ela. E isso dá-lhe segurança. Rezar é um
pouco isso.”.
Junto ao
final, tocaram-se áreas mais pessoais, como se “alguma vez se sente só”, “se
tem amigos verdadeiros”… E Bergoglio respondeu que tem amigos que o ajudam e conhecem
a sua vida como dum homem normal, que tem as suas “próprias anomalias” e, “como
um homem comum que tem amigos”, gosta de estar com os amigos até para lhes
contar as suas coisas, ouvir as deles, mas que, de facto, precisa de amigos,
sendo esta uma das razões por que não foi viver no apartamento papal (Os papas
que lá viveram antes eram santos. E ele não se considera tão santo). E reiterou:
“Preciso de relações humanas. É por isso que
vivo neste hotel de Santa Marta, onde se encontram pessoas que falam com todos,
se encontram amigos. É uma vida mais fácil para mim, não tenho vontade de fazer
outra, não tenho a força e as amizades dão-me força. Pelo contrário, preciso de
amigos, eles são poucos, mas verdadeiros.”.
Na
entrevista, houve ainda referências ao passado e à infância em Buenos Aires, ao
fraquinho pelo San Lorenzo, à “vocação” de açougueiro, às raízes piemontesas e
à experiência no laboratório de química, um estudo “que tanto me seduziu” mas
sobre o qual prevaleceu a chamada de Deus. O Papa recordou o voto que fez a
Nossa Senhora do Carmo, a 16 de julho de 1990, de não ver televisão (não vê
televisão, “não porque a condene”) e o seu amor
pela música, sobretudo a clássica. E vincou o sentido de humor que, diz, “é um
remédio” que “faz muito bem”.
Como em cada
um dos discursos, Francisco pediu orações por si, justificando:
“Eu preciso; e, se algum de vós não rezar
porque não crê, não sabe ou não pode, pelo menos envie-me bons pensamentos,
boas ondas. Preciso da proximidade das pessoas.”.
E a
entrevista concluiu com uma imagem retirada dum filme do pós-guerra:
“Para finalizar o diálogo, penso que foi
Vittorio De sica que fazia de cartomante, lia as mãos ‘obrigado, 100 liras’; eu
digo-vos: ‘100 orações’, ‘100 liras, 100 orações’. Obrigado!”.
***
É impressionante
como fala do perdão (em dia da Festa das Chagas de Cristo) e da oração, dos grandes temas e do aspeto simples
das relações interpessoais.
2022.02.07 – Louro de Carvalho
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