A
Sala de Imprensa da Santa Sé informou, neste dia 26, os jornalistas credenciados
de que, na terça-feira, 1 de março de
2022 , às 11,30 horas,
na Sala de Imprensa da Santa Sé, terá
lugar a apresentação da “História da
Evangelização do Japão. Os ‘documentos Marega’ da Biblioteca Apostólica do
Vaticano”, ficando, após algumas breves apresentações, à
disposição da imprensa para entrevistas: o Cardeal José Tolentino de Mendonça, Bibliotecário e Arquivista da SRC; Dom Cesare Pasini, Prefeito da Biblioteca
Apostólica do Vaticano; Dr. Delio Vania
Proverbio, investigador que descobriu os “documentos
Marega”; Dra. Angela Nuñez
Gaitán, Chefe do Laboratório de Restauração; e Prof. Silvio Vita, Universidade de Estudos Estrangeiros de
Kyoto.
Em relação
aos “documentos Marega”, é de recordar que o Cardeal Raffaele Farina, antigo responsável pela Biblioteca e Arquivo
Secreto do Vaticano – a quem o Governo japonês agraciou com a Ordem do Sol Nascente,
classe Estrela de Ouro e Prata, uma das mais importantes condecorações do país,
pela sua contribuição para a amizade entre o Japão e o Vaticano – deu um
relevante contributo para a reorganização dos documentos históricos do período
Edo, incluindo os relacionados com a proibição do cristianismo na antiga
província de Bungo, recolhidos pelo missionário italiano Mário Marega. Trata-se
de cerca de 10 mil documentos que
descrevem a presença e a
perseguição à comunidade católica do Japão, cobrindo os séculos XVII a XIX, que
o religioso levou para o Vaticano na década de 1940, permanecendo intocados até
2010, quando foram redescobertos pelo investigador Delio Proverbio.
A Biblioteca Apostólica do Vaticano assinou em 2014 um contrato de 6 anos com 4
instituições históricas japoneses para traduzir e catalogar os textos,
redigidos em frágil papel de arroz.
O primeiro
documento, de 1719, menciona a chegada do cristianismo ao Japão em 1549,
através de missionários jesuítas. Um dos relatos regista a visita de 4 nobres
japoneses a Roma, em 1585, para assistir à eleição do Papa Sisto V, atestando a
importância que o cristianismo adquiriu no país. Outros documentos referem-se à
perseguição da nova comunidade e descrevem ao detalhe o martírio de 26 cristãos
de Nagasaki, culminando com a proibição do cristianismo em 1612.
Os textos,
que constituem a maior coleção de documentos do género, revelam que as
autoridades japonesas forçaram o desaparecimento do cristianismo, confiando aos
budistas a tarefa de registar e documentar quando um cristão renunciava à sua
fé ou morria. E provam que o arquivo civil de Bungo recebeu relatórios oficiais
do ritual “fumi-e”, no qual os cristãos eram forçados a pisar um crucifixo ou imagens
de Jesus e Maria para provar que tinham renunciado à fé, tal como é mostrado no
filme “Silêncio”, do realizador
Martin Scorsese.
Espera a
comunidade interessada nos temas históricos e o público em geral este grande contributo
para a história da missionação a juntar a tantos mais, de que se destacam,
entre outros: Abe Toshihiko, Japan's Hidden Face. [S.l.]: Bainbridgebooks/Trans-Atlantic
Publications, 1998; Carlos Alfredo
Martínez Rodríguez, Alessandro Valignano
(1536-1606) e a missionação do Japão Um projeto de inculturação, dissertação
final, 1.º Ciclo, UCP-Porto, 2019; Charles R.
Boxer, The Christian Century in Japan
1549-1650, University of California Press, 1967; João Paulo A. Oliveira e Costa, “O Cristianismo no Japão e o Episcopado de D.
Luís Cerqueira”, tese de doutoramento, em História dos Descobrimentos e da
Expansão Portuguesa, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
de Lisboa, 1998; Michael Cooper, Rodrigues
the Interpreter= An Early Jesuit in Japan and China. [S.l.]: Weatherhill, Nova Iorque, em 1974; e Valdemar
Coutinho, O Fim da Presença portuguesa no
Japão, Lisboa, Sociedade Histórica da Independência de Portugal, 1999.
***
Os católicos japoneses realizaram uma das maiores façanhas da história da
salvação: resistir por 250 anos à campanha de aniquilação, sem nenhum
sacerdote, transmitindo fielmente a fé ao longo duma dúzia de gerações, em total
isolamento – uma das mais
extraordinárias e mais desconhecidas demonstrações de fidelidade de todos os tempos. Isso é trágico,
não só porque a história da Igreja Católica no Japão é importante por direito,
mas sobretudo pelo que ela tem a ensinar sobre a esperança.
O cristianismo (que durante séculos foi exclusivamente
católico) foi levado ao litoral japonês por São Francisco Xavier por
volta da metade do século XVI. Após algumas tentativas e erros, ao longo das 5
décadas seguintes, centenas de milhares de japoneses converteram-se à fé. E o catolicismo começou ali a prosperar e
florescer, com a cidade portuária de Nagasaki a tornar-se um próspero
centro para católicos. No entanto, essa era de ouro só foi possível porque o
Japão passava por uma enorme guerra civil que durava já um século: o
Período Sengoku. Senhores da guerra, os daimiôs,
estavam muito ocupados em lutas intestinas para se preocuparem com ameaças
externas. A chegada dos portugueses levou a muitos deles riqueza e armas de
fogo. Foram tolerados os europeus mercê do afluxo de riquezas e armamentos de
ponta que traziam consigo. E aonde quer que fossem, levavam o catolicismo, de
tal sorte que as comunidades cristãs
começaram a brotar em todas as partes das ilhas japonesas.
Entretanto, cristalizava a oposição ao catolicismo. Na Batalha de Nagashino
em 1575, mosquetes europeus foram decisivos para a derrota de Takeda Shingen e
seu clã, que facilitou o surgimento eventual do clã Tokugawa, o que viria a ser
catastrófico para os católicos.
Em 1600, o Período Sengoku estava a serenar e a violência
esporádica contra os cristãos já havia começado três anos antes. O clã Tokugawa
finalmente obteve o controlo de toda a nação e o seu líder foi transformado
em xogum, comandante do exército.
Com um Japão unido, o xogunato Tokugawa começou a estar atento ao que
ocorria no resto do Pacífico. Os poderes europeus apropriavam-se da riqueza
material da Ásia e colonizavam de forma agressiva a China e as Filipinas.
Temendo que o cristianismo fosse uma ferramenta das nações ocidentais e recordando
o papel dos europeus no Período Sengoku, os japoneses começaram a
reprimir os católicos. E, neste período, vem à tona a divergência entre os
franciscanos e os jesuítas na avaliação da situação (vd “Silêncio”, de Shūsaku Endō, Dom Quixote, 2010).
Por outro lado, o catolicismo também entrou em conflito com muitas
sensibilidades japonesas. O conceito de inferno e a dura condenação da
atividade homossexual, então muito comum no Japão, eram ofensivos para muitos
japoneses. Tais caraterísticas fizeram do catolicismo alvo fácil para
autoridades que desejavam classificá-las como não-japonesas. Os católicos no Japão seriam perseguidos, em
parte por causa da sua rejeição da homossexualidade. O catolicismo era
visto como afronta às religiões tradicionais predominantes, um ataque aos valores
japoneses.
Em 1614, a perseguição tornou-se política oficial. Foram expulsos todos os
missionários e clero; e todos os convertidos deveriam ser mortos. Qualquer
membro do clero que ousasse permanecer era executado. E o xogunato teve êxito
ao decapitar a Igreja Católica no Japão. Em poucos anos, todos os sacerdotes
foram assassinados ou banidos. Os
cristãos remanescentes obrigaram-se à clandestinidade. Os que eram
identificados eram torturados e executados.
Entretanto, na década de 1630, o Japão começou a fechar-se ao mundo
exterior, rompendo todo o contacto com nações estrangeiras. Qualquer
estrangeiro que desembarcasse em solo japonês era condenado à morte; e a todo o
japonês que deixasse o país era proibido retornar. Em 1644, o último jesuíta
remanescente foi arrancado do seu esconderijo e morto. A partir de então, os leigos católicos no Japão ficaram totalmente
sozinhos, sem sacerdotes e sem qualquer possibilidade de comunicação com
Roma. Nem o império romano ou o muçulmano ou qualquer regime totalitário e
policial suprimiram o cristianismo de forma tão absoluta. Para os católicos japoneses
sobreviventes, tais expurgos foram apenas o começo.
Todos os que se mantinham perseverantemente fiéis à fé eram condenados à
morte, logo que descobertos. As
execuções realizadas pelas autoridades japonesas eram brutais o suficiente para
causar desconforto no mais cruel torturador romano. Muitos métodos são
demasiado repulsivos para serem narrados. Os afortunados eram crucificados,
decapitados ou queimados vivos. Muitos outros tinham um fim terrível após dias
de tortura.
A hediondez da morte que os mártires sofreram só era igualada pela coragem
que demonstravam quando chegava a sua hora. Durante o extermínio do clero, os sacerdotes
abençoavam as multidões enquanto caminhavam para a execução, prometendo que
outros mestres viriam substituí-los. Ao fim e ao cabo, a promessa cumprir-se-ia.
Os que eram queimados beijavam a estaca a que eram atados, gratos por serem
considerados dignos de sofrer o martírio pela fé. São Paulo Miki, uma das
primeiras vítimas da violência anticristã, chegou a proferir um sermão da cruz,
façanha supostamente incrível se considerarmos os efeitos da crucifixão no
sistema respiratório. De facto, onde abundou o pecado, superabundou a
graça.
A Igreja no Japão teve de se adaptar para sobreviver. Entrou na
clandestinidade e os católicos passaram a ser conhecidos como Kakure
Kirishitans ou cristãos ocultos. As primeiras coisas a eliminar foram
a Bíblia e outros textos, inclusive os litúrgicos. Os católicos tiveram de
suprimir todas as provas físicas da sua existência. A Bíblia, os ritos litúrgicos e a própria fé
tiveram de ser memorizados e transmitidos oralmente. Todas as imagens ou
símbolos eram feitos de modo que parecessem artefactos budistas ou xintoístas.
Esculturas de Jesus eram feitas de modo que Ele ficasse parecido com Buda e toda
representação visual de Maria tinha análogo tratamento.
O culto litúrgico era camuflado. As celebrações litúrgicas, não havendo
sacerdotes para celebrar a Missa, assumiam várias superficialidades budistas,
mas conservavam sua essência católica.
Quando o rasto dos católicos esfriava, o Governo decidia expô-los. Exigia
que os cidadãos recebessem um certificado da hierarquia budista, afirmando a
sua conformidade religiosa.
Além disso, as autoridades começaram a instituir uma política chamada Fumi-e. A população era obrigada a pisar imagens de
Cristo e da Virgem Maria. Qualquer um que recusasse fazê-lo era
torturado até renunciar à fé. Os que não se submetiam eram executados. Os
católicos enfrentavam uma variedade repugnante de mortes. Eram inclusive
arremessados em vulcões ativos. Mas a Igreja resistia: os que eram forçados a
passar pelo Fumi-e “batizavam-no”, por assim dizer,
considerando-o uma prática litúrgica que celebrava o perdão de Cristo.
Essa situação permaneceu inalterada por 250 anos. A Igreja no Japão só saiu
das sombras quando o país voltou a abrir as portas para o mundo na segunda metade
do século XIX.
O Padre Bernard-Thadée Petitjean foi um dos primeiros a pisar solo japonês
após a reabertura das fronteiras. Quando lá chegou, em 1865, foi abordado por
uma mulher que lhe perguntou se era sacerdote do Papa em Roma. Surpreendido por
ela saber o que era um sacerdote e, mais ainda, o Papa, avançou. Uma vez
convencida da identidade dele, a mulher apresentou-o à Igreja
clandestina, uma comunidade
semiatrofiada espiritualmente, mas perseverante, que em dois séculos e meio
jamais havia visto um sacerdote.
O sacerdote descobriu que os católicos ocultos do Japão realizaram uma das
maiores façanhas da história da salvação. O rito romano do batismo e o
calendário litúrgico permaneceram intactos. Quando a interdição do catolicismo
foi suspensa em 1867, mais de 30 mil católicos saíram do anonimato. Hoje o
Japão tem 500 mil católicos. Estes são tempos obscuros e não se veem grandes bons
sinais quanto ao futuro. Porém, no Japão, os mártires e os católicos ocultos mostraram
que a fé pode perdurar mesmo
quando se está em minoria e em cerco cerrado.
Enfim, a história da Evangelização no Japão pode constituir verdadeira
lição para os crentes e para os decisores políticos. É precisa a tolerância.
2022.02.26 – Louro de Carvalho
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