sábado, 26 de fevereiro de 2022

A propósito dos “documentos Marega”

 

A Sala de Imprensa da Santa Sé informou, neste dia 26, os jornalistas credenciados de que, na terça-feira, 1 de março de 2022 , às 11,30 horas, na Sala de Imprensa da Santa Sé, terá lugar a apresentação da “História da Evangelização do Japão. Os ‘documentos Marega’ da Biblioteca Apostólica do Vaticano”, ficando, após algumas breves apresentações, à disposição da imprensa para entrevistas: o Cardeal José Tolentino de Mendonça, Bibliotecário e Arquivista da SRC; Dom Cesare Pasini, Prefeito da Biblioteca Apostólica do Vaticano; Dr. Delio Vania Proverbio, investigador que descobriu os “documentos Marega”; Dra. Angela Nuñez Gaitán, Chefe do Laboratório de Restauração; e Prof. Silvio Vita, Universidade de Estudos Estrangeiros de Kyoto.

Em relação aos “documentos Marega”, é de recordar que o Cardeal Raffaele Farina, antigo responsável pela Biblioteca e Arquivo Secreto do Vaticano – a quem o Governo japonês agraciou com a Ordem do Sol Nascente, classe Estrela de Ouro e Prata, uma das mais importantes condecorações do país, pela sua contribuição para a amizade entre o Japão e o Vaticano – deu um relevante contributo para a reorganização dos documentos históricos do período Edo, incluindo os relacionados com a proibição do cristianismo na antiga província de Bungo, recolhidos pelo missionário italiano Mário Marega. Trata-se de cerca de 10 mil documentos que descrevem a presença e a perseguição à comunidade católica do Japão, cobrindo os séculos XVII a XIX, que o religioso levou para o Vaticano na década de 1940, permanecendo intocados até 2010, quando foram redescobertos pelo investigador Delio Proverbio.

A Biblioteca Apostólica do Vaticano assinou em 2014 um contrato de 6 anos com 4 instituições históricas japoneses para traduzir e catalogar os textos, redigidos em frágil papel de arroz.

O primeiro documento, de 1719, menciona a chegada do cristianismo ao Japão em 1549, através de missionários jesuítas. Um dos relatos regista a visita de 4 nobres japoneses a Roma, em 1585, para assistir à eleição do Papa Sisto V, atestando a importância que o cristianismo adquiriu no país. Outros documentos referem-se à perseguição da nova comunidade e descrevem ao detalhe o martírio de 26 cristãos de Nagasaki, culminando com a proibição do cristianismo em 1612.

Os textos, que constituem a maior coleção de documentos do género, revelam que as autoridades japonesas forçaram o desaparecimento do cristianismo, confiando aos budistas a tarefa de registar e documentar quando um cristão renunciava à sua fé ou morria. E provam que o arquivo civil de Bungo recebeu relatórios oficiais do ritual “fumi-e”, no qual os cristãos eram forçados a pisar um crucifixo ou imagens de Jesus e Maria para provar que tinham renunciado à fé, tal como é mostrado no filme “Silêncio”, do realizador Martin Scorsese.

Espera a comunidade interessada nos temas históricos e o público em geral este grande contributo para a história da missionação a juntar a tantos mais, de que se destacam, entre outros: Abe Toshihiko, Japan's Hidden Face. [S.l.]: Bainbridgebooks/Trans-Atlantic Publications, 1998; Carlos Alfredo Martínez Rodríguez, Alessandro Valignano (1536-1606) e a missionação do Japão Um projeto de inculturação, dissertação final, 1.º Ciclo, UCP-Porto, 2019; Charles R. Boxer, The Christian Century in Japan 1549-1650, University of California Press, 1967; João Paulo A. Oliveira e Costa, “O Cristianismo no Japão e o Episcopado de D. Luís Cerqueira”, tese de doutoramento, em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa, 1998; Michael Cooper,  Rodrigues the Interpreter= An Early Jesuit in Japan and China. [S.l.]: Weatherhill, Nova Iorque, em 1974; e Valdemar Coutinho, O Fim da Presença portuguesa no Japão, Lisboa, Sociedade Histórica da Independência de Portugal, 1999.

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Os católicos japoneses realizaram uma das maiores façanhas da história da salvação: resistir por 250 anos à campanha de aniquilação, sem nenhum sacerdote, transmitindo fielmente a fé ao longo duma dúzia de gerações, em total isolamento – uma das mais extraordinárias e mais desconhecidas demonstrações de fidelidade de todos os tempos. Isso é trágico, não só porque a história da Igreja Católica no Japão é importante por direito, mas sobretudo pelo que ela tem a ensinar sobre a esperança.

O cristianismo (que durante séculos foi exclusivamente católico) foi levado ao litoral japonês por São Francisco Xavier por volta da metade do século XVI. Após algumas tentativas e erros, ao longo das 5 décadas seguintes, centenas de milhares de japoneses converteram-se à fé. E o catolicismo começou ali a prosperar e florescer, com a cidade portuária de Nagasaki a tornar-se um próspero centro para católicos. No entanto, essa era de ouro só foi possível porque o Japão passava por uma enorme guerra civil que durava já um século: o Período Sengoku. Senhores da guerra, os daimiôs, estavam muito ocupados em lutas intestinas para se preocuparem com ameaças externas. A chegada dos portugueses levou a muitos deles riqueza e armas de fogo. Foram tolerados os europeus mercê do afluxo de riquezas e armamentos de ponta que traziam consigo. E aonde quer que fossem, levavam o catolicismo, de tal sorte que as comunidades cristãs começaram a brotar em todas as partes das ilhas japonesas.

Entretanto, cristalizava a oposição ao catolicismo. Na Batalha de Nagashino em 1575, mosquetes europeus foram decisivos para a derrota de Takeda Shingen e seu clã, que facilitou o surgimento eventual do clã Tokugawa, o que viria a ser catastrófico para os católicos.

Em 1600, o Período Sengoku estava a serenar e a violência esporádica contra os cristãos já havia começado três anos antes. O clã Tokugawa finalmente obteve o controlo de toda a nação e o seu líder foi transformado em xogum, comandante do exército.

Com um Japão unido, o xogunato Tokugawa começou a estar atento ao que ocorria no resto do Pacífico. Os poderes europeus apropriavam-se da riqueza material da Ásia e colonizavam de forma agressiva a China e as Filipinas. Temendo que o cristianismo fosse uma ferramenta das nações ocidentais e recordando o papel dos europeus no Período Sengoku, os japoneses começaram a reprimir os católicos. E, neste período, vem à tona a divergência entre os franciscanos e os jesuítas na avaliação da situação (vd “Silêncio”, de Shūsaku Endō, Dom Quixote, 2010).  

Por outro lado, o catolicismo também entrou em conflito com muitas sensibilidades japonesas. O conceito de inferno e a dura condenação da atividade homossexual, então muito comum no Japão, eram ofensivos para muitos japoneses. Tais caraterísticas fizeram do catolicismo alvo fácil para autoridades que desejavam classificá-las como não-japonesas. Os católicos no Japão seriam perseguidos, em parte por causa da sua rejeição da homossexualidade. O catolicismo era visto como afronta às religiões tradicionais predominantes, um ataque aos valores japoneses.

Em 1614, a perseguição tornou-se política oficial. Foram expulsos todos os missionários e clero; e todos os convertidos deveriam ser mortos. Qualquer membro do clero que ousasse permanecer era executado. E o xogunato teve êxito ao decapitar a Igreja Católica no Japão. Em poucos anos, todos os sacerdotes foram assassinados ou banidos. Os cristãos remanescentes obrigaram-se à clandestinidade. Os que eram identificados eram torturados e executados.

Entretanto, na década de 1630, o Japão começou a fechar-se ao mundo exterior, rompendo todo o contacto com nações estrangeiras. Qualquer estrangeiro que desembarcasse em solo japonês era condenado à morte; e a todo o japonês que deixasse o país era proibido retornar. Em 1644, o último jesuíta remanescente foi arrancado do seu esconderijo e morto. A partir de então, os leigos católicos no Japão ficaram totalmente sozinhos, sem sacerdotes e sem qualquer possibilidade de comunicação com Roma. Nem o império romano ou o muçulmano ou qualquer regime totalitário e policial suprimiram o cristianismo de forma tão absoluta. Para os católicos japoneses sobreviventes, tais expurgos foram apenas o começo.

Todos os que se mantinham perseverantemente fiéis à fé eram condenados à morte, logo que descobertos. As execuções realizadas pelas autoridades japonesas eram brutais o suficiente para causar desconforto no mais cruel torturador romano. Muitos métodos são demasiado repulsivos para serem narrados. Os afortunados eram crucificados, decapitados ou queimados vivos. Muitos outros tinham um fim terrível após dias de tortura.

A hediondez da morte que os mártires sofreram só era igualada pela coragem que demonstravam quando chegava a sua hora. Durante o extermínio do clero, os sacerdotes abençoavam as multidões enquanto caminhavam para a execução, prometendo que outros mestres viriam substituí-los. Ao fim e ao cabo, a promessa cumprir-se-ia. Os que eram queimados beijavam a estaca a que eram atados, gratos por serem considerados dignos de sofrer o martírio pela fé. São Paulo Miki, uma das primeiras vítimas da violência anticristã, chegou a proferir um sermão da cruz, façanha supostamente incrível se considerarmos os efeitos da crucifixão no sistema respiratório. De facto, onde abundou o pecado, superabundou a graça.

A Igreja no Japão teve de se adaptar para sobreviver. Entrou na clandestinidade e os católicos passaram a ser conhecidos como Kakure Kirishitans ou cristãos ocultos. As primeiras coisas a eliminar foram a Bíblia e outros textos, inclusive os litúrgicos. Os católicos tiveram de suprimir todas as provas físicas da sua existência. A Bíblia, os ritos litúrgicos e a própria fé tiveram de ser memorizados e transmitidos oralmente. Todas as imagens ou símbolos eram feitos de modo que parecessem artefactos budistas ou xintoístas. Esculturas de Jesus eram feitas de modo que Ele ficasse parecido com Buda e toda representação visual de Maria tinha análogo tratamento.

O culto litúrgico era camuflado. As celebrações litúrgicas, não havendo sacerdotes para celebrar a Missa, assumiam várias superficialidades budistas, mas conservavam sua essência católica.

Quando o rasto dos católicos esfriava, o Governo decidia expô-los. Exigia que os cidadãos recebessem um certificado da hierarquia budista, afirmando a sua conformidade religiosa.

Além disso, as autoridades começaram a instituir uma política chamada Fumi-eA população era obrigada a pisar imagens de Cristo e da Virgem Maria. Qualquer um que recusasse fazê-lo era torturado até renunciar à fé. Os que não se submetiam eram executados. Os católicos enfrentavam uma variedade repugnante de mortes. Eram inclusive arremessados em vulcões ativos. Mas a Igreja resistia: os que eram forçados a passar pelo Fumi-e “batizavam-no”, por assim dizer, considerando-o uma prática litúrgica que celebrava o perdão de Cristo.

Essa situação permaneceu inalterada por 250 anos. A Igreja no Japão só saiu das sombras quando o país voltou a abrir as portas para o mundo na segunda metade do século XIX.

O Padre Bernard-Thadée Petitjean foi um dos primeiros a pisar solo japonês após a reabertura das fronteiras. Quando lá chegou, em 1865, foi abordado por uma mulher que lhe perguntou se era sacerdote do Papa em Roma. Surpreendido por ela saber o que era um sacerdote e, mais ainda, o Papa, avançou. Uma vez convencida da identidade dele, a mulher apresentou-o à Igreja clandestina, uma comunidade semiatrofiada espiritualmente, mas perseverante, que em dois séculos e meio jamais havia visto um sacerdote

O sacerdote descobriu que os católicos ocultos do Japão realizaram uma das maiores façanhas da história da salvação. O rito romano do batismo e o calendário litúrgico permaneceram intactos. Quando a interdição do catolicismo foi suspensa em 1867, mais de 30 mil católicos saíram do anonimato. Hoje o Japão tem 500 mil católicos. Estes são tempos obscuros e não se veem grandes bons sinais quanto ao futuro. Porém, no Japão, os mártires e os católicos ocultos mostraram que a fé pode perdurar mesmo quando se está em minoria e em cerco cerrado.

Enfim, a história da Evangelização no Japão pode constituir verdadeira lição para os crentes e para os decisores políticos. É precisa a tolerância.

2022.02.26 – Louro de Carvalho

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