O
Plenário do Tribunal Constitucional (TC) proferiu o Acórdão n.º 133/2022,
que apreciou o recurso contencioso interposto pelo Volt Portugal (VP), duma deliberação da Mesa de
Apuramento Geral da eleição do círculo eleitoral da Europa no âmbito das
eleições legislativas do passado dia 30 de janeiro, tomada na sequência de
protesto apresentado pelo PSD, de que veio a resultar a declaração da nulidade
de votos 151 mesas de voto daquele círculo, por ter havido boletins de voto não
acompanhados de cópia do documento de identificação do eleitor que entraram na
urna.
O
recorrente pediu ao TC a revogação de tal decisão e, por consequência, a
validação de todos os boletins de voto.
O
TC considerou que os votos remetidos por via postal cujos respetivos boletins
não foram acompanhados de fotocópia do documento de identificação do eleitor [cartão
de cidadão (CC) ou bilhete de identidade (BI)] inserida no interior do envelope branco, segundo o
disposto no art.º 79.º-G, n.º 6, da Lei n.º 14/79, de 16 maio, na redação que
lhe foi dada pela Lei Orgânica n.º 4/2020, de 11 de novembro (Lei
Eleitoral para a Assembleia da República, adiante designada por LEAR), devem ser considerados nulos,
nos termos do artigo 98.º, n.º 4, da mesma LEAR.
Mais
constatou que, por via da adoção de procedimentos anómalos nas operações de
contagem dos votos em cerca de 153 secções de voto, tais boletins de voto – em
número que se desconhece – foram inseridos em urna, juntamente com boletins que
haviam sido acompanhados de fotocópia do documento de identificação do eleitor,
o que impossibilitou a segregação de uns e os outros.
Em
virtude da impossibilidade dessa segregação entre votos nulos e votos válidos,
a assembleia geral de apuramento considerou nulos todos os votos das secções em
que tais procedimentos anómalos haviam sido adotados, o que teve por
consequência a declaração de nulidade de mais de 150.000 (cento
e cinquenta mil)
votos (mais
exatamente 150 205 dos 195 201),
sem que seja possível determinar, dentro desse universo, a proporção de votos
efetivamente válidos e a sua distribuição pelos partidos que concorreram às
eleições.
Em
face da grande desproporção entre o volume dos votos declarados nulos e o dos
que relevaram para a distribuição dos mandatos neste círculo eleitoral, é
perfeitamente possível que a decisão de declarar nulos todos os votos no
universo em que se tenha verificado a confusão entre votos válidos e inválidos
tenha influído no resultado geral da eleição no círculo, medida pela
distribuição de mandatos. Assim é por não ser possível extrapolar para o
primeiro o padrão de distribuição do sentido de voto que se verificou no
segundo.
A
deliberação impugnada, ainda que por razões compreensíveis, invalidou todos os
votos nas assembleias de voto do círculo eleitoral da Europa em que se deu a
confusão entre votos válidos e inválidos – ou seja, invalidou votos que
deveriam ter sido contabilizados no apuramento. Sendo impossível o apuramento
efetivo de todos e somente dos votos que devem ser considerados válidos, entendeu
o TC que resta proceder à repetição dos atos eleitorais em tais assembleias de
voto, segundo o previsto no n.º 2 do art.º 119.º da LEAR.
Por
último, o Tribunal fez notar que, nos termos do artigo da alínea c) do n.º 1 do
artigo 223.º da Constituição, compete ao TC “julgar em última instância a
regularidade e a validade dos atos de processo eleitoral, nos termos da lei”, e
que os recursos previstos na legislação eleitoral têm uma vocação objetivista, não
visando em primeira linha salvaguardar os interesses particulares dos
recorrentes, mas garantir a legalidade e integridade dos atos eleitorais, de
que depende a própria legitimidade democrática do poder político. É esse
interesse público fundamental, que transcende os interesses particulares dos
diversos intervenientes no processo eleitoral, que explica o universo alargado
de pessoas ou entidades com legitimidade processual ativa para interpor recurso,
nos casos do n.º 2 do art.º 117.º da LEAR.
Assim,
o TC decidiu conceder parcial
provimento ao recurso e, em consequência: revogar a deliberação da Assembleia de
Apuramento Geral do Círculo da Europa, na parte em que declara a
nulidade de todos os votos nas assembleias de voto do círculo eleitoral da
Europa em que se deu a confusão em urna entre votos cujos boletins foram
remetidos à administração eleitoral devidamente acompanhados de fotocópia de
documento de identificação do respetivo eleitor e votos em relação aos quais
tal não se verificou; declarar a nulidade da eleição nas
assembleias de voto do círculo eleitoral da Europa referidas no ponto
anterior; determinar a repetição dos atos eleitorais nas assembleias de voto
correspondentes, nos termos do n.º 2 do art.º 119.º da LEAR; e
determinar a comunicação imediata da presente
decisão à Comissão Nacional de Eleições (CNE).
Perante a notícia do teor do predito acórdão
difundida por comunicado do próprio TC, dizem alguns, nomeadamente Costa e
Marcelo que a decisão do TC é uma lição para todos.
Obviamente que as decisões dos tribunais
prevalecem sobre as das demais autoridades. Não obstante, pergunto-me em que o
TC está a dar lições ou esclarecer o quer que seja.
É obvio que o Presidente da República (PR) não se deveria ter pronunciado sobre o sucedido.
Houve uma decisão tomada pela respetiva mesa eleitoral por força dum
protesto/reclamação dum partido e o subsequente recurso para o TC por parte de
quatro partidos. E isso impunha esperar pelas decisões do TC. Em vez disso,
conjeturou sobre a improbabilidade de uma decisão útil do TC, revelou
insuficiente consideração pelos pequenos partidos e pensou que nada alteraria a
atual distribuição de mandatos no círculo eleitoral da Europa. E nisso se
escudou para garantir que não iria alterar a data da posse do Governo. Talvez a
primeira lição seja para o PR.
Porém, o TC teve entendimento em tudo contrário
ao do PR, que deu razão ao recorrente – foram 4 partidos a recorrer, mas só um
é mencionado no acórdão talvez por ter incluído todas as razões da interposição
dos recursos – ao revogar a decisão da Mesa de Apuramento Geral da eleição do círculo eleitoral
da Europa em 151 secções de voto e decidiu
mandar repetir a votação nas ditas secções de voto.
Assim, como não são publicados, porque não
apurados os resultados eleitorais, a Assembleia da República não pode
instalar-se e reunir para já e o Governo, que dela emana, não pode ser ainda nomeado
e empossado. Neste aspeto é excrescente saber que António Costa vai ser
indigitado como Primeiro-Ministro. Não sei é se o PR não terá de ouvir
novamente os partidos com assento parlamentar antes de nomear o Governo, pois o
fez sem estarem apurados em definitivo os resultados eleitorais, que ele deve
ter em conta por imperativo constitucional.
Todavia, reafirmando a pertinência do disposto no
n.º 6 do art.º 79.º-G da LEAR, o TC não explicou a razão da discrepância em
relação ao art.º 5.°, n.° 2, da Lei n.° 7/2007, de 5 de fevereiro, número inalterado
pelos diplomas de alteração desta lei que lhe seguiram, onde se lê:
“2 - É igualmente
interdita a reprodução do cartão de cidadão em fotocópia ou qualquer outro meio
sem consentimento do titular, salvo nos casos expressamente previstos na lei ou
mediante decisão de autoridade judiciária.”.
Além disso, o TC decidiu algo que não lhe foi solicitado
em sede de recurso, mas entendeu não se pronunciar sobre o mesmo procedimento
ocorrido no círculo eleitoral de Fora da Europa, só porque sobre tal situação
não houve recurso. Mas verificou-se a mesma irregularidade.
Se é tão relevante a norma que originou a
anulação de votos, como é que as entidades que têm a possibilidade de solicitar
ao TC a fiscalização da constitucionalidade das leis e da legalidade das
disposições que contrariem as leis de valor reforçado, foram insensíveis à
deliberação da CNE de 2019: “Descarga dos
eleitores – situações de ausência de cópia do documento de identificação ‘O
artigo 106.º-I, no seu n.º 4, determina que a mesa entrega os envelopes brancos
aos escrutinadores, que descarregam o voto, contando-se em seguida as descargas
(n.º 5) e,
só depois, os envelopes brancos são contados e imediatamente destruídos (n.º
6).”. Com efeito, foi base nesta deliberação que os partidos
acordaram por unanimidade, a 18 de janeiro passado, “aceitar como válidos todos os boletins cujos
envelopes permitam a identificação clara do eleitor e descarga nos cadernos
eleitores desmaterializados, mesmo que o envelope não contenha cópia do CC ou BI, já que a
‘remessa pelo eleitor de cópia de documento de identificação serve, afinal e
apenas, como reforço das garantias do exercício pessoal do voto’ (CNE, 2019).”.
Sobre isso, o TC apenas se limita a afirmar a
pertinência da junção da fotocópia do documento de identificação, quando a
pessoalidade do voto por correspondência e a identificação do eleitor fica já de
algum modo assegurada pelo código de barras do envelope branco e a simples
remessa da fotocópia do CC ou do BI nada garante que seja o eleitor a remeter o
dito envelope. E não responde à adução de que o eleitor se sente ilegalmente
coagido a fornecer a fotocópia do seu CC/BI para exercer um direito. Porém,
assinala que “o teor destes preceitos legais não deixa margem para dúvidas” (os dos art.º 79-ºB a 79.º-G).
Assim “um voto postal que não observe as exigências consignadas no artigo
79.º-G, designadamente no seu n.º 6, é irremediavelmente inválido”. Ora, se a norma
é tão premente, devia repetir-se a votação no outro círculo independentemente
de tal vir ou não alterar a distribuição de mandatos, pois há votos perdidos ingloriamente
ou ganhos indevidamente.
Resta saber que ilegitimidade haverá quando os
interessados acordem unanimemente num pacto sobre procedimentos só porque são
literalmente contra a lei, sobretudo quando ela pretensamente garante uma
segurança, que não o é, mas tem normas que pretendem assegurar o tratamento
igualitário e equitativo dos interessados e o interesse público. Pode uma lei
eleitoral ter normas e impor formas de proceder que se sobreponham à lei de
proteção de dados sem o explicitar?
Depois, fica-se a saber que a repetição da
votação é ordenada pelo facto de ter havido mistura de votos válidos e
inválidos nas mesmas urnas, mas é de notar que os pontos relevantes da fundamentação,
mais que responder às solicitações dos recorrentes, seguem a argumentação do
partido que protestou junto da entidade que fez o apuramento dos resultados da
votação emigrante. Factualmente tal partido protestou no círculo onde a votação
lhe foi menos favorável, abstendo-se de protestar naquele em que a votação lhe
foi mais favorável. E obviamente mesmo os pequenos partidos, apesar de não
esperarem nos círculos da emigração a conversão de votos em mandatos, podem
aumentar o pecúlio subvencional se conseguirem mais uns milhares de votos.
Quanto a lições, já sabíamos que todos os
partidos que se achem prejudicados por infrações à lei eleitoral têm o direito
de reclamar e de recorrer. Se alguém tem lições a colher da decisão do TC não
serão os cidadãos comuns. Os grandes partidos, que agora clamam pela alteração
da LEAR estavam no Parlamento antes de este ser dissolvido. Poderiam ter feito
as alterações por que se carpem. O Problema não é da CNE ou do MAI. E a
clamorosa falta de respeito pelo eleitorado emigrante tanto está na falta de
alteração da lei como no recuo em relação a um acordo que parecia válido e não
é superiormente considerado como tal. Mas esta falta de respeito não se repara
com a repetição da votação, mas apenas se repararia com a recontagem dos votos
e a validação excecional de todos eles, na margem de julgamento que o TC
poderia ter feito.
É pena que as nossas leis não permitam que a
sociedade vá fazendo o seu caminho e o legislador venha depois homologar por
lei tal caminhada. Taxativamente, mas abstrusamente algo que não esteja na lei
é mau, mas já é bom se estiver na lei. Fico sem saber se o que é mau ou bom:
fotocopiar o CC/BI e juntá-lo ao boletim de voto; ou não fazer fotocópia do CC
a menos que o juiz ou a lei o permitam. Neste caso, a lei não só o permite, mas
a isso obriga.
Segundo as notícias, parece que as eleições serão
a 12 e 13 de março. Ora o TC manda fazê-las nos termos do n.º 2 do art.º 119.º
da LEAR, que estabelece: “Declarada a nulidade da eleição
de uma assembleia de voto ou de todo o círculo, os atos eleitorais
correspondentes são repetidos no segundo domingo, posterior à decisão”. Deveriam ser a 27 de fevereiro.
Aqui a CNE já pôde fazer determinações? E não responde
pela sua predita deliberação de 2019?
2022.02.16 – Louro de Carvalho
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