sábado, 12 de fevereiro de 2022

Anulados 60% dos votos dos emigrantes nas legislativas de 2022

Protestos do PSD junto da CNE (Comissão Nacional de Eleições) induziram a anulação de 3 em cada 5 votos provindos da emigração, todos eles do círculo da Europa, mas a relação de forças mantém-se no como do costume: 2 deputados para o PS e 2 para o PSD.

O PSD sai destas eleições com menos um deputado. De 79 e passou a 78. Entre muita controvérsia, concluiu-se na madrugada do dia 10, na FIL (Feira Internacional de Lisboa), a contabilização dos votos emigrantes. Estava em causa a atribuição de 4 lugares de deputados: dois para o PS e dois para o PSD, cada um por cada círculo (Europa e Fora da Europa). O PS venceu no círculo europeu e o PSD no de Fora da Europa, o que é normal. Foram eleitos os deputados Paulo Pisco e Augusto Santos Silva (PS) e Maria Ester Vargas Silva e Maló de Abreu (PSD). A maioria absoluta do PS foi reforçada de 117 para 119.

Dado relevante foi o substancial aumento da participação  (sendo que o número de inscritos pouco mudou, rondando os 1,5 milhões): em 2019, votaram 158,3 mil portugueses residentes no estrangeiro e desta vez mais 100 mil o fizeram (257,8 mil), reduzindo-se a abstenção de 90% para 83%.

Jorge Arroteia, professor na Universidade de Aveiro e especialista na área, explicou à Lusa o fenómeno com a nova geração de emigrantes. E os números resultam dos fluxos migratórios mais recentes, que têm sido fundamentalmente constituídos pela nova geração de emigrantes, com maiores experiência política, participação cultural, participação associativa, envolvimento cívico.

A maior parte dos eleitores participantes votaram por correspondência. Só que muitos não enviaram no envelope a cópia do cartão de cidadão (CC) como indicado na lei eleitoral. Na contagem em Lisboa, muito desses votos foram misturados em urna com votos que preenchiam todas as exigências. O PSD protestou aduzindo que os votos sem cópia do CC não podiam ser contabilizados. Porque muitos foram misturados em Lisboa com votos regulares, todos acabaram anulados, uns e outros. Assim, de 195 701 votos, ficaram sem efeito 157 205, ou seja, 80,32% dos votos do Círculo da Europa e 60,9% da totalidade dos votos emigrantes (não se anularam votos do outro círculo). E o pedido de anulação dos votos foi corroborado pela CNE.

O PS, por considerar a situação totalmente inaceitável, ponderou recorrer para o Tribunal Constitucional (TC), escudado no acordo entre os partidos, no dia 18 de janeiro, na Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna, de que resultou a aceitação unânime dos votos sem a fotocópia do CC. Porém, acabou por decidir não recorrer para não contribuir mais para o prolongamento deste “grave e inútil incidente” provocado pelo PSD, desejando que “todo o processo eleitoral fique encerrado o mais rapidamente possível, para dar lugar à nova legislatura”. Segundo Paulo Pisco, um dos deputados agora eleitos “uma das prioridades do PS na Assembleia da República será a alteração da lei eleitoral, para que nunca mais se repita este episódio verdadeiramente a reprovável”. E, questionado sobre o motivo por que a lei não foi alterada na sequência das eleições legislativas de 2019, em que já tinham sido anulados 34 mil votos pelo mesmo motivo, lembrou que a pandemia e a interrupção da legislatura impediram a concretização dessa intenção.

Entretanto, PAN, Livre e Volt Portugal (VP) recorrem para o TC da anulação dos votos emigrantes.

O PAN recorreu, neste dia 11, junto do TC por considerar inconstitucional a exigência de fotocópia do CC junto ao boletim de voto. Assim, pede a declaração da inconstitucionalidade da norma e que aquele resultado eleitoral apurado seja declarado nulo para se proceder à recontagem dos votos. Aduz que a obrigação de os votos virem acompanhados de documentos de identificação restringe desnecessária e desproporcionadamente o direito fundamental dos cidadãos ao sufrágio, o próprio segredo do sufrágio, o direito à segurança e à preservação de dados pessoais. E a norma viola o princípio da igualdade, ao instituir para cidadãos nacionais residentes no estrangeiro procedimento mais difícil, oneroso, arriscado e prejudicial, sem que tal obedeça a racional de necessidade, equilíbrio, adequação e proporcionalidade e à custa da compressão injustificada e inconstitucional de direitos fundamentais.

Em nota enviada à Lusa, o Livre justifica ter decidido, contra as falhas dum sistema eleitoral que volta a silenciar a comunidade emigrante portuguesa, avançar com a impugnação junto do TC das decisões que anularam dezenas de milhares de votos de residentes no estrangeiro, vincando que a situação constitui profundo desrespeito pela comunidade emigrante, que respondeu ao dever cívico de voto apenas para ver a sua voz silenciada no processo, e defendendo a “necessidade imperativa de melhorar o acesso ao voto para as comunidades emigrantes”. Refere que “aos problemas com o voto por correspondência, já antes denunciados e repetidos em 2022, como o extravio de boletins de voto, adicionam-se os erros processuais nas mesas de voto que invalidam os votos emigrantes recebidos”. E lembra que já em 2019 o requisito da fotocópia do CC levou à anulação de votos nos círculos da emigração, mas não em todas as mesas de voto, o que põe em causa a igualdade de tratamento de cada voto.

Efetivamente, o entendimento de que a junção de cópia do CC é só um reforço das garantias de pessoalidade do voto, constava já de decisões anteriores da CNE e foi o entendimento transmitido aos membros das mesas eleitorais, constando do respetivo manual. E a Lei Eleitoral não identifica a omissão do envio da cópia do CC como causa para a nulidade do voto.

O VP, face à afronta à democracia e aos direitos civis dos portugueses residentes no estrangeiro, apresentou recurso junto do TC para impugnar a decisão tomada pela Mesa da Assembleia de Apuramento Geral do Círculo Eleitoral da Europa, aduzindo que a decisão da CNE, em 2019, considerava a cópia do CC apenas um reforço da identificação necessária.

O presidente do PSD, no dia 10, rejeitou que a responsabilidade da anulação dos votos da seja “de quem reclamou” o cumprimento da lei, admitindo a necessidade de revisitar a lei eleitoral.

E o VP defendeu, em comunicado, que um país, com 20% dos seus cidadãos a residir fora do território nacional, “deve esforçar-se por proteger os direitos desta população, bem como assegurar a sua participação nos processos democráticos”.

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Jorge Malheiros, especialista em migrações, advertiu, neste dia 11, que a anulação de milhares de votos dos emigrantes pode provocar um efeito de pêndulo e, após o aumento da participação, levar a desmobilização do eleitorado. Em entrevista à Lusa por telefone, o especialista em migrações classificou como “um péssimo sinal” a decisão da mesa da assembleia de apuramento geral dos votos da emigração de anular 80% dos votos do círculo da Europa.  

O especialista atribui o aumento da participação dos emigrantes nas legislativas a um conjunto de três fatores: aumento do universo eleitoral com a introdução do recenseamento automático, conjugado com o estímulo à participação; a nova geração de emigrantes com fortes práticas transnacionais; e eleições mais mediatizadas, com o contributo de partidos “um bocadinho histriónicos” como o Chega. Os votos dos círculos da emigração foram publicados e revelam um aumento da participação, de 12,05% nas legislativas de 2019 para 20,67% este ano no círculo da Europa e de 8,81% para 10,86% no de Fora da Europa. Assim, o número total de eleitores passou de 158.252 em 2019 para 257.791 em 2022, o que representa um aumento de 62%.

Em 2018 foi introduzido o recenseamento automático, que elevou de cerca de 300 mil para 1,4 milhões o número de cidadãos recenseados no estrangeiro, o primeiro passo para o aumento da participação. O segundo fator tem a ver com a imigração mais recente, a dos que emigraram na década passada, que “procuram manter uma ligação forte a Portugal e têm condições para manter essa ligação com toda a panóplia de instrumentos”, como a Internet e as redes sociais. Têm “práticas transnacionais fortes que implicam seguir o país à distância” e fazem com que a “maior ligação ao país se traduza no querer ter uma implicação nos processos de decisão”. E o terceiro fator relaciona-se com as caraterísticas destas eleições, que resultaram num aumento da participação também em Portugal.

Segundo Malheiros, estas eleições tiveram um nível de mediatização alto, destacando-se o papel de partidos pequenos como o Chega, que teve mais sucesso nos círculos do estrangeiro, com 9,86% dos votos, que no resultado global (7,28%). As legislativas de 30 de janeiro apareceram como eleições um pouco mais decisivas que outras, por surgirem como o momento em que podia haver mudança no poder político vigente, pois enfatizou-se a ideia de alternativa política, o que estimulou as pessoas a votar, sobretudo no estrangeiro, onde há às vezes alguma insatisfação.

A bipolarização, a existência de mais alternativas e a perspetiva de mudança mobilizaram os eleitores da oposição, mas também os outros, porque houve o apelo ao voto útil que acabou por dar a maioria absoluta do PS. E não há razão para que a população portuguesa que está fora, sobretudo na Europa – porque estamos no mesmo espaço de livre circulação – não tenha sido também atingida pelas caraterísticas destas eleições, que estimularam as pessoas a votar mais.

Sobre o papel do Chega no voto na emigração, o investigador considera que é “um dos elementos de explicação do aumento do número de votantes”. O partido tem, no dizer do especialista, um discurso que atrai os emigrantes, porque lhes diz, como em muitas outras coisas, o que eles querem ouvir, por exemplo, que gostava de criar um Ministério só para a emigração.

Embora haja transferência de votos PSD e do CDS para o Chega na emigração, como em Portugal, Malheiros acredita que há votantes que deixaram de votar e encontram no Chega o seu espaço. Tradicionalmente, isso aconteceria mais no círculo de Fora da Europa, onde há um conjunto de votantes mais conservadores, mais de direita (hoje menos), ainda ligado às saídas de Portugal a seguir ao 25 de Abril. Porém, há na emigração eleitores que, não sendo de extrema-direita, se sentiram desidentificados, desiludidos com as políticas seguidas e votaram Chega.

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O Presidente da República afirmou, neste dia 11, aos jornalistas em Brest, França, no final da cimeira internacional “Um Oceano”, que vários partidos estão disponíveis para alteração da lei eleitoral sobre o problema em causa. E disse que o recurso para o TC sobre votos da emigração não atrasa a posse do novo Governo, prevista para 23 deste mês.

Questionado se as eleições legislativas ficam manchadas por mais de cem mil votos do círculo da Europa não terem sido considerados válidos, Rebelo de Sousa respondeu:

Se há vontade de clarificar a lei, significa que era uma questão que podia levantar-se. Eu não vou comentar o processo eleitoral para a Assembleia da República.”.

Mais de 80% dos votos do círculo da Europa foram considerados nulos, após protestos do PSD, mas a distribuição de mandatos mantém-se, com PS e PSD a elegerem 2 deputados cada nos círculos da emigração. Atribuídos os mandatos da emigração, o PS conseguiu 119 dos 230 lugares, enquanto o PSD elegeu 73 deputados sozinho, subindo para 78 com os eleitos em coligação na Madeira e nos Açores.

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PSD vai apresentar queixa-crime sobre contagem de votos dos emigrantes, porque, segundo Rio, “alguém objetivamente cometeu um crime”, que o seu partido não deixará passar em claro. Mais frisou que houve dolo porque os responsáveis “sabiam o que estavam a fazer” (as pessoas nas mesas, “a maior parte delas do PS”, decidiram não cumprir a lei), o que, para Rui Rio, “é intolerável”, uma vez que se “violou uma série de pressupostos legais”. E sublinhou que a queixa “não tem nada de político”, até porque os 4 deputados, divididos entre o PS e o PSD, já foram eleitos, justificando a decisão com a frase: “isto não pode continuar assim”.

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É sabido que a norma em referência é um corpo estranho na lei eleitoral, sobretudo depois da publicação do Novo Regulamento da Proteção de Dados. E, se lei geral não revoga lei especial, a menos que outra coisa se estipule, os serviços de apoio ao Parlamento deviam, em circunstâncias análogas alertar os grupos parlamentares para alterações cirúrgicas das leis que delas carecessem. Recordo que, eliminada por lei a obrigação do reconhecimento notarial da assinatura, continuaram a estar abertos em dia de eleições cartórios notariais e delegações de saúde por a lei eleitoral exigir tal reconhecimento.

Porém, se a CNE entende – e bem – que a cópia do CC é só norma disciplinadora e reforço de segurança da pessoalidade do voto, porque é que contemporizou com a reclamação? Aliás, nada garante que a cópia do CC e o voto não foram emitidos por familiar do eleitor residente na mesma habitação ou mesmo fora.

Por fim, todos sabemos que, em linha com o princípio “pacta sunt servanda”, o decidido pelos partidos unanimemente na reunião de 18 de janeiro deveria manter-se. A lei não é tudo. Os acordos perante algumas normas legais têm que valer mais que elas, a menos que se tornem lesivas do interesse público, o que não parece aplicar-se no caso.

É certo que se mudam tempos e vontades, mas deveria ser mais devagar e não repentinamente.

2022.02.11 – Louro de Carvalho 

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