Protestos do
PSD junto da CNE (Comissão Nacional de Eleições) induziram a anulação de 3 em cada 5 votos provindos
da emigração, todos eles do círculo da Europa, mas a relação de forças mantém-se
no como do costume: 2 deputados para o PS e 2 para o PSD.
O PSD sai
destas eleições com menos um deputado. De 79 e passou a 78. Entre muita
controvérsia, concluiu-se na madrugada do dia 10, na FIL (Feira
Internacional de Lisboa), a
contabilização dos votos emigrantes. Estava em causa a atribuição de 4 lugares
de deputados: dois para o PS e dois para o PSD, cada um por cada círculo (Europa e
Fora da Europa). O PS
venceu no círculo europeu e o PSD no de Fora da Europa, o que é normal. Foram eleitos
os deputados Paulo Pisco e Augusto Santos Silva (PS) e Maria Ester Vargas Silva e Maló de Abreu (PSD). A maioria absoluta do PS foi reforçada de 117 para 119.
Dado
relevante foi o substancial aumento
da participação (sendo que o número de inscritos
pouco mudou, rondando os 1,5 milhões): em 2019,
votaram 158,3 mil portugueses residentes no estrangeiro e desta vez mais 100
mil o fizeram (257,8 mil), reduzindo-se a abstenção de 90% para 83%.
Jorge Arroteia,
professor na Universidade de Aveiro e especialista na área, explicou à Lusa o fenómeno com a nova geração de
emigrantes. E os números resultam dos fluxos migratórios mais recentes, que têm
sido fundamentalmente constituídos pela nova geração de emigrantes, com maiores
experiência política, participação cultural, participação associativa, envolvimento
cívico.
A maior
parte dos eleitores participantes votaram por correspondência. Só que muitos
não enviaram no envelope a cópia do cartão de cidadão (CC) como indicado na lei eleitoral. Na contagem em
Lisboa, muito desses votos foram misturados em urna com votos que preenchiam
todas as exigências. O PSD protestou aduzindo que os votos sem cópia do CC não
podiam ser contabilizados. Porque muitos foram misturados em Lisboa com votos
regulares, todos acabaram anulados, uns e outros. Assim, de 195 701 votos,
ficaram sem efeito 157 205, ou seja, 80,32% dos votos do Círculo da Europa e 60,9%
da totalidade dos votos emigrantes (não se anularam votos do outro
círculo). E o pedido de anulação dos votos
foi corroborado pela CNE.
O PS, por
considerar a situação totalmente inaceitável, ponderou recorrer para o Tribunal
Constitucional (TC), escudado no acordo entre os
partidos, no dia 18 de janeiro, na Secretaria-Geral do Ministério da
Administração Interna, de que resultou a aceitação unânime dos votos sem a
fotocópia do CC. Porém, acabou por decidir não recorrer para não contribuir mais
para o prolongamento deste “grave e inútil incidente” provocado pelo PSD,
desejando que “todo o processo eleitoral fique encerrado o mais rapidamente
possível, para dar lugar à nova legislatura”. Segundo Paulo Pisco, um dos
deputados agora eleitos “uma das prioridades do PS na Assembleia da República
será a alteração da lei eleitoral, para que nunca mais se repita este episódio
verdadeiramente a reprovável”. E, questionado sobre o motivo por que a lei não
foi alterada na sequência das eleições legislativas de 2019, em que já tinham
sido anulados 34 mil votos pelo mesmo motivo, lembrou que a pandemia e a
interrupção da legislatura impediram a concretização dessa intenção.
Entretanto, PAN, Livre e Volt Portugal (VP) recorrem para o TC da anulação dos votos emigrantes.
O PAN
recorreu, neste dia 11, junto do TC por considerar inconstitucional a exigência
de fotocópia do CC junto ao boletim de voto. Assim, pede a declaração da
inconstitucionalidade da norma e que aquele resultado eleitoral apurado seja
declarado nulo para se proceder à recontagem dos votos. Aduz que a obrigação de
os votos virem acompanhados de documentos de identificação restringe
desnecessária e desproporcionadamente o direito fundamental dos cidadãos ao
sufrágio, o próprio segredo do sufrágio, o direito à segurança e à preservação
de dados pessoais. E a norma viola o princípio da igualdade, ao instituir para
cidadãos nacionais residentes no estrangeiro procedimento mais difícil,
oneroso, arriscado e prejudicial, sem que tal obedeça a racional de
necessidade, equilíbrio, adequação e proporcionalidade e à custa da compressão
injustificada e inconstitucional de direitos fundamentais.
Em nota
enviada à Lusa, o Livre justifica ter
decidido, contra as falhas dum sistema eleitoral que volta a silenciar a
comunidade emigrante portuguesa, avançar com a impugnação junto do TC das
decisões que anularam dezenas de milhares de votos de residentes no
estrangeiro, vincando que a situação
constitui profundo desrespeito pela comunidade emigrante, que respondeu ao
dever cívico de voto apenas para ver a sua voz silenciada no processo, e
defendendo a “necessidade imperativa de melhorar o acesso ao voto para as
comunidades emigrantes”. Refere que “aos problemas com o voto por
correspondência, já antes denunciados e repetidos em 2022, como o extravio de
boletins de voto, adicionam-se os erros processuais nas mesas de voto que
invalidam os votos emigrantes recebidos”. E lembra que já em 2019 o requisito
da fotocópia do CC levou à anulação de votos nos círculos da emigração, mas não
em todas as mesas de voto, o que põe em causa a igualdade de tratamento de cada
voto.
Efetivamente,
o entendimento de que a junção de cópia do CC é só um reforço das garantias de
pessoalidade do voto, constava já de decisões anteriores da CNE e foi o entendimento
transmitido aos membros das mesas eleitorais, constando do respetivo manual. E a
Lei Eleitoral não identifica a omissão do envio da cópia do CC como causa para
a nulidade do voto.
O VP, face à
afronta à democracia e aos direitos civis dos portugueses residentes no
estrangeiro, apresentou recurso junto do TC para impugnar a decisão tomada pela
Mesa da Assembleia de Apuramento Geral do Círculo Eleitoral da Europa, aduzindo
que a decisão da CNE, em 2019, considerava a cópia do CC apenas um reforço da
identificação necessária.
O presidente
do PSD, no dia 10, rejeitou que a responsabilidade da anulação dos votos da seja
“de quem reclamou” o cumprimento da lei, admitindo a necessidade de revisitar a
lei eleitoral.
E o VP defendeu, em comunicado, que um país, com 20% dos seus cidadãos a
residir fora do território nacional, “deve esforçar-se por proteger os direitos
desta população, bem como assegurar a sua participação nos processos
democráticos”.
***
Jorge
Malheiros, especialista em migrações, advertiu, neste dia 11, que a anulação de
milhares de votos dos emigrantes pode provocar um efeito de pêndulo e, após o
aumento da participação, levar a desmobilização do eleitorado. Em entrevista à Lusa por telefone, o especialista em
migrações classificou como “um péssimo sinal” a decisão da mesa da assembleia de
apuramento geral dos votos da emigração de anular 80% dos votos do círculo da
Europa.
O
especialista atribui o aumento da participação dos emigrantes nas legislativas
a um conjunto de três fatores: aumento do universo eleitoral com a introdução
do recenseamento automático, conjugado com o estímulo à participação; a nova geração
de emigrantes com fortes práticas transnacionais; e eleições mais mediatizadas,
com o contributo de partidos “um bocadinho histriónicos” como o Chega. Os votos
dos círculos da emigração foram publicados e revelam um aumento da
participação, de 12,05% nas legislativas de 2019 para 20,67% este ano no
círculo da Europa e de 8,81% para 10,86% no de Fora da Europa. Assim, o número
total de eleitores passou de 158.252 em 2019 para 257.791 em 2022, o que
representa um aumento de 62%.
Em 2018 foi
introduzido o recenseamento automático, que elevou de cerca de 300 mil para 1,4
milhões o número de cidadãos recenseados no estrangeiro, o primeiro passo para
o aumento da participação. O segundo fator tem a ver com a imigração mais
recente, a dos que emigraram na década passada, que “procuram manter uma
ligação forte a Portugal e têm condições para manter essa ligação com toda a
panóplia de instrumentos”, como a Internet e as redes sociais. Têm “práticas
transnacionais fortes que implicam seguir o país à distância” e fazem com que a
“maior ligação ao país se traduza no querer ter uma implicação nos processos de
decisão”. E o terceiro fator relaciona-se com as caraterísticas destas
eleições, que resultaram num aumento da participação também em Portugal.
Segundo Malheiros, estas eleições tiveram um nível de mediatização alto, destacando-se o papel de partidos pequenos como o
Chega, que teve mais sucesso nos círculos do estrangeiro, com 9,86% dos votos, que
no resultado global (7,28%). As
legislativas de 30 de janeiro apareceram como eleições um pouco mais decisivas que
outras, por surgirem como o momento em que podia haver mudança no poder
político vigente, pois enfatizou-se a ideia
de alternativa política, o que estimulou as pessoas a votar, sobretudo
no estrangeiro, onde há às vezes alguma insatisfação.
A
bipolarização, a existência de mais alternativas e a perspetiva de mudança
mobilizaram os eleitores da oposição, mas também os outros, porque houve o
apelo ao voto útil que acabou por dar a maioria absoluta do PS. E não há razão para que a população
portuguesa que está fora, sobretudo na Europa – porque estamos no mesmo espaço
de livre circulação – não tenha sido também atingida pelas caraterísticas
destas eleições, que estimularam as pessoas a votar mais.
Sobre o papel
do Chega no voto na emigração, o investigador considera que é “um dos elementos
de explicação do aumento do número de votantes”. O partido tem, no dizer do especialista, um discurso
que atrai os emigrantes, porque lhes diz, como em muitas outras coisas, o que
eles querem ouvir, por exemplo, que gostava de criar um Ministério só para a
emigração.
Embora haja transferência
de votos PSD e do CDS para o Chega na emigração, como em Portugal, Malheiros
acredita que há votantes que deixaram de votar e encontram no Chega o seu
espaço. Tradicionalmente, isso
aconteceria mais no círculo de Fora da Europa, onde há um conjunto de votantes
mais conservadores, mais de direita (hoje
menos), ainda ligado
às saídas de Portugal a seguir ao 25 de Abril. Porém, há na emigração eleitores que, não sendo de extrema-direita, se
sentiram desidentificados, desiludidos com as políticas seguidas e votaram
Chega.
***
O Presidente
da República afirmou, neste dia 11, aos jornalistas em Brest, França, no final
da cimeira internacional “Um Oceano”,
que vários partidos estão disponíveis para alteração da lei eleitoral sobre o
problema em causa. E disse que o recurso para o TC sobre votos da emigração não
atrasa a posse do novo Governo, prevista para 23 deste mês.
Questionado
se as eleições legislativas ficam manchadas por mais de cem mil votos do
círculo da Europa não terem sido considerados válidos, Rebelo de Sousa
respondeu:
“Se há vontade de clarificar a lei,
significa que era uma questão que podia levantar-se. Eu não vou comentar o
processo eleitoral para a Assembleia da República.”.
Mais de 80%
dos votos do círculo da Europa foram considerados nulos, após protestos do PSD,
mas a distribuição de mandatos mantém-se, com PS e PSD a elegerem 2 deputados
cada nos círculos da emigração. Atribuídos
os mandatos da emigração, o PS conseguiu 119 dos 230 lugares, enquanto o PSD
elegeu 73 deputados sozinho, subindo para 78 com os eleitos em coligação na
Madeira e nos Açores.
***
PSD vai apresentar queixa-crime sobre contagem de
votos dos emigrantes, porque, segundo Rio, “alguém objetivamente cometeu um crime”, que o seu partido não deixará passar
em claro. Mais frisou que houve dolo porque os responsáveis “sabiam o que estavam a fazer” (as pessoas nas mesas, “a maior parte delas do
PS”, decidiram não cumprir a lei), o que, para
Rui Rio, “é intolerável”, uma vez que se “violou uma série de pressupostos
legais”. E sublinhou que a queixa “não tem nada de político”, até porque os 4
deputados, divididos entre o PS e o PSD, já foram eleitos, justificando a
decisão com a frase: “isto não pode
continuar assim”.
***
É sabido que
a norma em referência é um corpo estranho na lei eleitoral, sobretudo depois da
publicação do Novo Regulamento da Proteção de Dados. E, se lei geral não revoga
lei especial, a menos que outra coisa se estipule, os serviços de apoio ao
Parlamento deviam, em circunstâncias análogas alertar os grupos parlamentares
para alterações cirúrgicas das leis que delas carecessem. Recordo que,
eliminada por lei a obrigação do reconhecimento notarial da assinatura, continuaram
a estar abertos em dia de eleições cartórios notariais e delegações de saúde
por a lei eleitoral exigir tal reconhecimento.
Porém, se a
CNE entende – e bem – que a cópia do CC é só norma disciplinadora e reforço de
segurança da pessoalidade do voto, porque é que contemporizou com a reclamação?
Aliás, nada garante que a cópia do CC e o voto não foram emitidos por familiar do
eleitor residente na mesma habitação ou mesmo fora.
Por fim,
todos sabemos que, em linha com o princípio “pacta sunt servanda”, o decidido pelos partidos unanimemente na
reunião de 18 de janeiro deveria manter-se. A lei não é tudo. Os acordos
perante algumas normas legais têm que valer mais que elas, a menos que se
tornem lesivas do interesse público, o que não parece aplicar-se no caso.
É certo que
se mudam tempos e vontades, mas deveria ser mais devagar e não repentinamente.
2022.02.11 – Louro de Carvalho
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