Na
contemporaneidade as plataformas bélicas transformam-se com facilidade em situações
de profusão de escombros. Bombardear objetivos estratégicos ou simbólicos, para
não dizer cidades inteiras, gera inevitavelmente vítimas por morte ou ferimento
pessoas que nada têm a ver com a dinâmica estulta da guerra.
Casos
há em que, ao invés do afastamento de funcionários e outros cidadãos das zonas
de guerra, os decisores os utilizam como escudo humano. Por outro lado, as zonas
de conflito costumam exportar plêiades de desalojados e despojados expondo à
sorte do destino civis indefesos e crianças que se encaminham para a
subnutrição.
A
este respeito, é de ter em boa conta o forte apelo que a Amnistia Internacional
(AI) lançou, no passado dia 22, ao
respeito pelos direitos humanos e pelo direito internacional humanitário,
quando já parecia inevitável a escalada russa armada na Ucrânia.
Agnès Callamard, secretária-geral da AI, lembrava que, na
sequência do reconhecimento pela Rússia da autoproclamada independência das duas
regiões separatistas, “a proteção dos civis na Ucrânia deve agora ser a
prioridade absoluta” e desafiava todas as partes a “absterem-se de ataques
indiscriminados e do uso de armas proibidas”.
Como, após
semanas de negociações vãs e sem resultados, o risco de conflito se apresentava
como realidade devastadora, a AI advertia que devem “ser feitos todos os
esforços para minimizar o sofrimento civil” e garantia que “acompanhará de
perto a situação para expor as violações do direito internacional” por todos os
lados. Assim, o comunicado adrede distribuído rezava:
“Pedimos a todas as partes que cumpram estritamente a lei internacional
humanitária e de direitos humanos. Devem garantir a proteção das vidas dos
civis e abster-se de ataques indiscriminados e do uso de armas proibidas, como
munições de fragmentação. Também pedimos a todas as partes que permitam e
facilitem o acesso de agências humanitárias para prestar assistência a civis
afetados pelas hostilidades.”.
Também a AI
avisava que “monitorizará a situação de perto para expor as violações do
direito internacional” pelas diferentes partes.
Em reforço deste forte apelo, a
AI relembrava que, aquando da invasão e ocupação da Crimeia por militares russos, no
conflito de 2014-2015, documentou “o grave número de violações de direitos
humanos” e concluiu que “foram cometidos crimes de guerra e crimes contra a
humanidade”.
***
É de saudar a total disponibilidade do Governo de Portugal para
acolher todos os ucranianos que querem prosseguir a vida entre nós e a decisão
de conceder vistos imediatos para virem.
A este respeito, o Primeiro-Ministro falou aos jornalistas na
tarde deste dia 25, após a Cimeira Extraordinária de Chefes de Estado e de
Governo da NATO, afirmando que o mecanismo da concessão de vistos está operacionalizado
com os ministérios das finanças e economia e frisando que dados como os números
de Identificação da Segurança Social e de Identificação Fiscal serão de
imediato dados aos refugiados ucranianos, de modo que “podem prosseguir as suas
vidas”.
Considerou fundamental
reforçar as ações de dissuasão face a esta clara violação do direito
internacional pela coação militar totalmente injustificada e que constitui um
grave desafio à ordem internacional e clara violação dos valores da Carta das
Nações Unidas e valores estruturantes da aliança atlântica. Mais referiu que “esta
é uma guerra contra a liberdade de autodeterminação dum país democrático”.
Não é de
admirar a unanimidade dos diversos Estados que integram a NATO. Era o que
faltava estando em causa os interesses comuns. Todavia, esta escalada russa não
é a única violação dos interesses dum “país democrático”. E reforçar a presença
na NATO nas fronteiras da Ucrânia e em todos os países da aliança que estão
perto por forma a dissuadir de qualquer tentativa de prossecução da escalada
militar só aumentará o combustível da guerra.
Só pelo
compromisso de Portugal com a NATO se justifica que Portugal, para lá das
forças que este ano tem afetas ao comando europeu da NATO, tenha decidido “antecipar
do 2.º semestre para o 1.º a mobilização e o empenho duma companhia de
infantaria que estará na Roménia e será projetada nas próximas semanas”. Isto,
no alinhamento com “vários outros países” que já estão “a antecipar, a reforçar
ou decidir reforçar a sua participação junto destes países de forma a ter
unidade e dissuasão relativamente à atuação da Rússia”.
Tem razão Costa
ao reiterar e reforçar “a profunda solidariedade para com o povo ucraniano, a
principal vítima” e ao reafirmar a necessidade de a aliança e a UE terem uma visão
de 360 graus quanto à necessidade de reforçar a sua segurança energética
de forma a não ficar tão dependente da Rússia, como é louvável que o Governo se
mostre solidário “para com os países que, estando na fronteira, serão destino
para refugiados que pretendam proteção internacional”.
***
Após semanas de tensão, as quase 200.000 tropas russas
estacionadas na fronteira da Ucrânia iniciaram na madrugada de 24 de fevereiro,
ampla ofensiva militar, com alguns líderes mundiais a advertir que esta
série de ataques pode induzir o maior conflito na Europa desde a II Guerra
Mundial. Atingindo uma série de locais militares chave (muitos
localizados em algumas das cidades mais populosas do país), já houve casos de morte na capital e noutras
cidades do país.
Para Joe Biden, que regista que “as orações de todo o
mundo” estão com o povo da Ucrânia, que “sofre um ataque não provocado e
injustificado pelas forças militares russas”, Putin “escolheu uma guerra
premeditada que trará uma perda catastrófica de vidas e sofrimento humano”, pelo
que os EUA têm a Rússia como a única responsável pela morte e destruição que
este ataque trará, sendo que os EUA e os seus aliados e parceiros responderão
de forma unida e decisiva.
Nas últimas duas décadas, políticos progressistas
ucranianos exprimiram a ambição de integrar a NATO e a UE, que Putin e comitiva
veem como ameaça existencial ao seu domínio na região, aduzindo pela propaganda
estatal que se trata de tentativa do Ocidente intimidar a Rússia ou de se
intrometer nos seus assuntos. Embora as tensões entre os dois países se tenham
intensificado antes do conflito militar – mormente após a destituição, em 2014,
do antigo presidente russo Viktor Yanukovych, que levou à anexação da Crimeia
pelos russos – a ameaça de guerra aumentou de forma dramática após a aprovação
pelo presidente ucraniano Volodymyr Zelensky duma estratégia de segurança
em setembro de 2020 que preparava a via de adesão do país à NATO, induzindo
duras repreensões da parte de Putin. Desde a primavera passada, foi deslocado um
fluxo constante de tropas russas para as fronteiras da Ucrânia, conduzindo
exercícios militares e, ocasionalmente, envolvendo-se em confrontos de
fronteira.
Agora a primeira ronda de ataques visava infraestruturas
militares, segundo a afirmação de Putin de que o objetivo era desmilitarizar o
país e, fazendo-o, anular as ameaças ao domínio da Rússia. Porém, o próximo
passo era capturar Kiev, na tentativa de controlar o país e as suas contestadas
fronteiras. A crença putiniana de que os destinos da Rússia e da Ucrânia
estão indissociavelmente ligados tem sido apresentada como um grave
mal-entendido da história, mas que poderia ter sérias ramificações para o
futuro da Europa.
As raízes da crise Ucrânia-Rússia podem ser traçadas
até às histórias de origem dos dois países, com muitos dos nacionalistas russos
a apoiarem Putin evocando um especial laço histórico já do mundo antigo. Só que
o mundo muda e a História muda com ele. Todavia, o mais importante é a forte
convicção entre os russos conservadores de que a Ucrânia nunca foi merecedora
do direito de se autogovernar após a dissolução do Bloco de Leste em 1991.
No dia 21, Putin reconheceu formalmente as disputadas
regiões ucranianas orientais de Donetsk e Luhansk como repúblicas
independentes. Encarada tal declaração como sinal da iminência duma invasão em
grande escala, o Presidente norte-americano concluiu pelo “início de uma
invasão russa da Ucrânia”. Na sequência de apelos sem êxito à Rússia, quer de
Zelenskyy quer do Conselho de Segurança da ONU, ao amanhecer do dia 24, Vladimir
Putin lançou uma série de mísseis e ataques aéreos através de dezenas de
posições militares em redor da Ucrânia, com uma segunda vaga pouco depois.
O Presidente russo está quase sempre disposto a
exprimir abertamente os seus objetivos finais, mas raramente diz como ou porque
espera atingi-los. Numa emissão transmitida manhã cedo do dia 24 para a nação
russa, o anúncio duma “operação militar especial” na Ucrânia foi amplamente
visto como declaração de guerra. Aí Putin evocou o contexto histórico da
intervenção americana no Médio Oriente como um exemplo de hipocrisia e declarou
que qualquer país estrangeiro que tente interferir no conflito enfrentará “consequências
que nunca viu”.
Putin, desde o início da sua carreira política, mantém
a ambição de fazer a Ucrânia voltar à esfera de influência da Rússia, afirmando
recorrentemente que sempre foram uma nação única e que na dissolução da União
Soviética, a Ucrânia foi corrompida pelas potências ocidentais e voltou-se
contra os aliados históricos.
Em contraponto, é de referir que sondagens recentes
revelam que a maioria dos ucranianos é favorável à aliança militar
transatlântica com o Ocidente. No entanto, para Putin, os motivos da invasão são
o sentimento de orgulho nacional sentimental, o revisionismo histórico e os benefícios
tangíveis a alcançar pelo acesso aos recursos da Ucrânia.
Embora muitos estejam relutantes em prever os próximos
passos na crise por medo de catástrofes em torno do que já é bem trágico, é
provável que o conflito se agrave. Os ataques deste dia 25 mostram que as
intenções de Putin não são apenas anexar as contestadas regiões fronteiriças,
mas atingir a Ucrânia como um todo. Alguns preveem que o principal objetivo
seja derrubar a atual liderança e instalar um regime solidário com os
interesses russos.
Não é provável que o Ocidente se envolva num conflito
armado físico, mas é expectável que o conflito inaugure uma nova era de guerra
cibernética. Espera-se que os Estados-membros do G7 e os seus aliados ponham em
prática uma vasta gama de sanções económicas, depois de políticos de todo
o mundo coordenarem os seus planos. Estas sanções podem ir até ao impacto da
riqueza pessoal de Putin e dos seus associados mais próximos, muitos dos quais
possuem grandes ativos e investimentos em países como os EUA e o Reino Unido,
que se opõem à intervenção da Rússia. Resta saber se os esforços diplomáticos contribuem
para a resolução do conflito ou se o agravam.
Já começaram os protestos e manifestações de apoio ao
direito à independência da Ucrânia fora das embaixadas russas nas principais
cidades do mundo, esperando-se que mais se sigam neste fim de semana. Entretanto,
em apoio concreto às comunidades deslocadas ou vulneráveis no terreno na
Ucrânia, várias ONG e organizações já estão a trabalhar ativamente no sentido
de fornecer alimentos, abrigo e material médico para os civis afetados pelos
conflitos.
As iniciativas abertas a contribuições financeiras
incluem a Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), que está a prestar ajuda de emergência às famílias de
refugiados no país através dum fundo de doação restrito, e a CARE, organização
sem fins lucrativos sediada em Genebra que está a angariar dinheiro para kits
de higiene, água e assistência em dinheiro nas regiões afetadas. E o Ukraine
Crisis Media Center tem vários meios alternativos de apoio aos esforços do país
para resistir à invasão, incluindo a participação em boicotes e em comícios
locais, bem como no estender da mão aos seus representantes políticos.
***
Enfim, estamos num ambiente de guerra, que não será a
III Guerra Mundial, a menos que a loucura entonteça os decisores, mas as
sanções económicas (localizadas ou generalizadas) vêm perturbar os orçamentos estatais, pôr em ataque de
nervos o tecido empresarial, fragilizar a vida das famílias e emagrecer a carteira
dos cidadãos. Os governos têm de cuidar do povo nestas circunstâncias e fazer
tudo para que os danos colaterais não alastrem em civis, crianças e património
significativo.
2022.02.25 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário