sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Um mínimo de exigências em tempo de guerra

 

Na contemporaneidade as plataformas bélicas transformam-se com facilidade em situações de profusão de escombros. Bombardear objetivos estratégicos ou simbólicos, para não dizer cidades inteiras, gera inevitavelmente vítimas por morte ou ferimento pessoas que nada têm a ver com a dinâmica estulta da guerra.

Casos há em que, ao invés do afastamento de funcionários e outros cidadãos das zonas de guerra, os decisores os utilizam como escudo humano. Por outro lado, as zonas de conflito costumam exportar plêiades de desalojados e despojados expondo à sorte do destino civis indefesos e crianças que se encaminham para a subnutrição.

A este respeito, é de ter em boa conta o forte apelo que a Amnistia Internacional (AI) lançou, no passado dia 22, ao respeito pelos direitos humanos e pelo direito internacional humanitário, quando já parecia inevitável a escalada russa armada na Ucrânia.

Agnès Callamard, secretária-geral da AI, lembrava que, na sequência do reconhecimento pela Rússia da autoproclamada independência das duas regiões separatistas, “a proteção dos civis na Ucrânia deve agora ser a prioridade absoluta” e desafiava todas as partes a “absterem-se de ataques indiscriminados e do uso de armas proibidas”. 

Como, após semanas de negociações vãs e sem resultados, o risco de conflito se apresentava como realidade devastadora, a AI advertia que devem “ser feitos todos os esforços para minimizar o sofrimento civil” e garantia que “acompanhará de perto a situação para expor as violações do direito internacional” por todos os lados. Assim, o comunicado adrede distribuído rezava:

Pedimos a todas as partes que cumpram estritamente a lei internacional humanitária e de direitos humanos. Devem garantir a proteção das vidas dos civis e abster-se de ataques indiscriminados e do uso de armas proibidas, como munições de fragmentação. Também pedimos a todas as partes que permitam e facilitem o acesso de agências humanitárias para prestar assistência a civis afetados pelas hostilidades.”.

Também a AI avisava que “monitorizará a situação de perto para expor as violações do direito internacional” pelas diferentes partes. 

Em reforço deste forte apelo, a AI relembrava que, aquando da invasão e ocupação da Crimeia por militares russos, no conflito de 2014-2015, documentou “o grave número de violações de direitos humanos” e concluiu que “foram cometidos crimes de guerra e crimes contra a humanidade”.

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É de saudar a total disponibilidade do Governo de Portugal para acolher todos os ucranianos que querem prosseguir a vida entre nós e a decisão de conceder vistos imediatos para virem.

A este respeito, o Primeiro-Ministro falou aos jornalistas na tarde deste dia 25, após a Cimeira Extraordinária de Chefes de Estado e de Governo da NATO, afirmando que o mecanismo da concessão de vistos está operacionalizado com os ministérios das finanças e economia e frisando que dados como os números de Identificação da Segurança Social e de Identificação Fiscal serão de imediato dados aos refugiados ucranianos, de modo que “podem prosseguir as suas vidas”.

Considerou fundamental reforçar as ações de dissuasão face a esta clara violação do direito internacional pela coação militar totalmente injustificada e que constitui um grave desafio à ordem internacional e clara violação dos valores da Carta das Nações Unidas e valores estruturantes da aliança atlântica. Mais referiu que “esta é uma guerra contra a liberdade de autodeterminação dum país democrático”.

Não é de admirar a unanimidade dos diversos Estados que integram a NATO. Era o que faltava estando em causa os interesses comuns. Todavia, esta escalada russa não é a única violação dos interesses dum “país democrático”. E reforçar a presença na NATO nas fronteiras da Ucrânia e em todos os países da aliança que estão perto por forma a dissuadir de qualquer tentativa de prossecução da escalada militar só aumentará o combustível da guerra.

Só pelo compromisso de Portugal com a NATO se justifica que Portugal, para lá das forças que este ano tem afetas ao comando europeu da NATO, tenha decidido “antecipar do 2.º semestre para o 1.º a mobilização e o empenho duma companhia de infantaria que estará na Roménia e será projetada nas próximas semanas”. Isto, no alinhamento com “vários outros países” que já estão “a antecipar, a reforçar ou decidir reforçar a sua participação junto destes países de forma a ter unidade e dissuasão relativamente à atuação da Rússia”.

Tem razão Costa ao reiterar e reforçar “a profunda solidariedade para com o povo ucraniano, a principal vítima” e ao reafirmar a necessidade de a aliança e a UE terem uma visão de 360 graus quanto à necessidade de reforçar a sua segurança energética de forma a não ficar tão dependente da Rússia, como é louvável que o Governo se mostre solidário “para com os países que, estando na fronteira, serão destino para refugiados que pretendam proteção internacional”.

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Após semanas de tensão, as quase 200.000 tropas russas estacionadas na fronteira da Ucrânia iniciaram na madrugada de 24 de fevereiro, ampla ofensiva militar, com alguns líderes mundiais a advertir que esta série de ataques pode induzir o maior conflito na Europa desde a II Guerra Mundial. Atingindo uma série de locais militares chave (muitos localizados em algumas das cidades mais populosas do país), já houve casos de morte na capital e noutras cidades do país.

Para Joe Biden, que regista que “as orações de todo o mundo” estão com o povo da Ucrânia, que “sofre um ataque não provocado e injustificado pelas forças militares russas”, Putin “escolheu uma guerra premeditada que trará uma perda catastrófica de vidas e sofrimento humano”, pelo que os EUA têm a Rússia como a única responsável pela morte e destruição que este ataque trará, sendo que os EUA e os seus aliados e parceiros responderão de forma unida e decisiva.

Nas últimas duas décadas, políticos progressistas ucranianos exprimiram a ambição de integrar a NATO e a UE, que Putin e comitiva veem como ameaça existencial ao seu domínio na região, aduzindo pela propaganda estatal que se trata de tentativa do Ocidente intimidar a Rússia ou de se intrometer nos seus assuntos. Embora as tensões entre os dois países se tenham intensificado antes do conflito militar – mormente após a destituição, em 2014, do antigo presidente russo Viktor Yanukovych, que levou à anexação da Crimeia pelos russos – a ameaça de guerra aumentou de forma dramática após a aprovação pelo presidente ucraniano Volodymyr Zelensky duma estratégia de segurança em setembro de 2020 que preparava a via de adesão do país à NATO, induzindo duras repreensões da parte de Putin. Desde a primavera passada, foi deslocado um fluxo constante de tropas russas para as fronteiras da Ucrânia, conduzindo exercícios militares e, ocasionalmente, envolvendo-se em confrontos de fronteira.   

Agora a primeira ronda de ataques visava infraestruturas militares, segundo a afirmação de Putin de que o objetivo era desmilitarizar o país e, fazendo-o, anular as ameaças ao domínio da Rússia. Porém, o próximo passo era capturar Kiev, na tentativa de controlar o país e as suas contestadas fronteiras. A crença putiniana de que os destinos da Rússia e da Ucrânia estão indissociavelmente ligados tem sido apresentada como um grave mal-entendido da história, mas que poderia ter sérias ramificações para o futuro da Europa.

As raízes da crise Ucrânia-Rússia podem ser traçadas até às histórias de origem dos dois países, com muitos dos nacionalistas russos a apoiarem Putin evocando um especial laço histórico já do mundo antigo. Só que o mundo muda e a História muda com ele. Todavia, o mais importante é a forte convicção entre os russos conservadores de que a Ucrânia nunca foi merecedora do direito de se autogovernar após a dissolução do Bloco de Leste em 1991.

No dia 21, Putin reconheceu formalmente as disputadas regiões ucranianas orientais de Donetsk e Luhansk como repúblicas independentes. Encarada tal declaração como sinal da iminência duma invasão em grande escala, o Presidente norte-americano concluiu pelo “início de uma invasão russa da Ucrânia”. Na sequência de apelos sem êxito à Rússia, quer de Zelenskyy quer do Conselho de Segurança da ONU, ao amanhecer do dia 24, Vladimir Putin lançou uma série de mísseis e ataques aéreos através de dezenas de posições militares em redor da Ucrânia, com uma segunda vaga pouco depois.

O Presidente russo está quase sempre disposto a exprimir abertamente os seus objetivos finais, mas raramente diz como ou porque espera atingi-los. Numa emissão transmitida manhã cedo do dia 24 para a nação russa, o anúncio duma “operação militar especial” na Ucrânia foi amplamente visto como declaração de guerra. Aí Putin evocou o contexto histórico da intervenção americana no Médio Oriente como um exemplo de hipocrisia e declarou que qualquer país estrangeiro que tente interferir no conflito enfrentará “consequências que nunca viu”.

Putin, desde o início da sua carreira política, mantém a ambição de fazer a Ucrânia voltar à esfera de influência da Rússia, afirmando recorrentemente que sempre foram uma nação única e que na dissolução da União Soviética, a Ucrânia foi corrompida pelas potências ocidentais e voltou-se contra os aliados históricos.

Em contraponto, é de referir que sondagens recentes revelam que a maioria dos ucranianos é favorável à aliança militar transatlântica com o Ocidente. No entanto, para Putin, os motivos da invasão são o sentimento de orgulho nacional sentimental, o revisionismo histórico e os benefícios tangíveis a alcançar pelo acesso aos recursos da Ucrânia.

Embora muitos estejam relutantes em prever os próximos passos na crise por medo de catástrofes em torno do que já é bem trágico, é provável que o conflito se agrave. Os ataques deste dia 25 mostram que as intenções de Putin não são apenas anexar as contestadas regiões fronteiriças, mas atingir a Ucrânia como um todo. Alguns preveem que o principal objetivo seja derrubar a atual liderança e instalar um regime solidário com os interesses russos. 

Não é provável que o Ocidente se envolva num conflito armado físico, mas é expectável que o conflito inaugure uma nova era de guerra cibernética. Espera-se que os Estados-membros do G7 e os seus aliados ponham em prática uma vasta gama de sanções económicas, depois de políticos de todo o mundo coordenarem os seus planos. Estas sanções podem ir até ao impacto da riqueza pessoal de Putin e dos seus associados mais próximos, muitos dos quais possuem grandes ativos e investimentos em países como os EUA e o Reino Unido, que se opõem à intervenção da Rússia. Resta saber se os esforços diplomáticos contribuem para a resolução do conflito ou se o agravam. 

Já começaram os protestos e manifestações de apoio ao direito à independência da Ucrânia fora das embaixadas russas nas principais cidades do mundo, esperando-se que mais se sigam neste fim de semana. Entretanto, em apoio concreto às comunidades deslocadas ou vulneráveis no terreno na Ucrânia, várias ONG e organizações já estão a trabalhar ativamente no sentido de fornecer alimentos, abrigo e material médico para os civis afetados pelos conflitos.

As iniciativas abertas a contribuições financeiras incluem a Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), que está a prestar ajuda de emergência às famílias de refugiados no país através dum fundo de doação restrito, e a CARE, organização sem fins lucrativos sediada em Genebra que está a angariar dinheiro para kits de higiene, água e assistência em dinheiro nas regiões afetadas. E o Ukraine Crisis Media Center tem vários meios alternativos de apoio aos esforços do país para resistir à invasão, incluindo a participação em boicotes e em comícios locais, bem como no estender da mão aos seus representantes políticos.

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Enfim, estamos num ambiente de guerra, que não será a III Guerra Mundial, a menos que a loucura entonteça os decisores, mas as sanções económicas (localizadas ou generalizadas) vêm perturbar os orçamentos estatais, pôr em ataque de nervos o tecido empresarial, fragilizar a vida das famílias e emagrecer a carteira dos cidadãos. Os governos têm de cuidar do povo nestas circunstâncias e fazer tudo para que os danos colaterais não alastrem em civis, crianças e património significativo. 

2022.02.25 – Louro de Carvalho

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