domingo, 20 de fevereiro de 2022

A humanidade é campeã em fazer guerra, uma vergonha para todos

 

No passado dia 18 de fevereiro, Francisco recebeu em audiência, na Sala Clementina, no Vaticano, os participantes na Assembleia Plenária da Congregação para as Igrejas Orientais, a decorrer de 16 a 22 de fevereiro, no Augustinianum de Roma.

Após agradecer ao Cardeal Leonardo Sandri, prefeito daquele Dicastério, as palavras que lhe dirigira e às pessoas que vieram de longe a sua presença, o Pontífice evocou a memória do Papa Bento XV, fundador da Congregação para as Igrejas Orientais e do Pontifício Instituto Oriental, no centenário da sua morte, destacando uma das suas asserções na Encíclica “Dei Providentis”:

Na Igreja de Jesus Cristo, que não é nem latina, nem grega, nem eslava, mas católica, não há discriminação entre os seus filhos e que todos, latinos, gregos, eslavos e de outras nacionalidades têm a mesma importância”.

Mais referiu que Bento XV “denunciou a incivilidade da guerra como massacre inútil”, mas “a sua advertência foi ignorada pelos Chefes das Nações envolvidas na I Guerra Mundial”, aliás como veio a ser ignorado foi o apelo de São João Paulo II para evitar o conflito no Iraque.

Frisando que a humanidade retrocede no tecimento da paz, Francisco lamentou que, num momento em que “há tantas guerras por toda parte”, não seja ouvido o apelo tanto dos Papas como dos homens e mulheres de boa vontade. Ironicamente, parece que o maior prémio da paz deverá ser dado às guerras, pois estamos tragicamente apegados a elas. E o Papa apontou que a humanidade se orgulha de avançar na ciência, no pensamento, em tantas coisas belas, mas retrocede na construção da paz, antes se torna “campeã em fazer guerra”, o que é “uma vergonha para todos”, pelo que “devemos rezar e pedir perdão por este comportamento”.

Na verdade, já o dia 16, no final da audiência geral, o Santo Padre recordou a celebração da memória litúrgica, no dia 14 de fevereiro, de São Cirilo e São Metódio, padroeiros da Europa, pedindo orações pelo continente. Neste sentido encorajou a que “rezemos a Deus para que, pela sua intercessão, as nações deste continente, conscientes das suas raízes cristãs, despertem o espírito de reconciliação, de fraternidade, de solidariedade e de respeito, de cada país, pela liberdade de todos os países”.

Depois, no dia 18, Francisco recordou os conflitos no Oriente Médio, na Síria, no Iraque e no Tigrai, bem como os ventos ameaçadores que sopram nas estepes da Europa Oriental, “acendendo estopins e fogos de armas, gelando os corações dos pobres e inocentes”. E mencionou a continuidade do drama do Líbano, que deixa muitas pessoas sem pão e jovens e vê adultos que, tendo perdido a esperança, deixaram aquelas terras. Porém, assegurou que “eles são a pátria-mãe das Igrejas Católicas Orientais”, que ali se desenvolveram preservando tradições milenares”, sendo seus filhos e herdeiros alguns membros do Dicastério em referência.

Lembrou o Papa argentino que “os católicos orientais vivem em continentes distantes há décadas, cruzaram mares e oceanos e atravessaram planícies” de tal modo que já foram estabelecidas Eparquias no Canadá, Estados Unidos, América Latina, Europa, Oceânia e muitas outras, sendo confiadas, pelo menos por enquanto, aos Bispos latinos que coordenam a ação pastoral através dos sacerdotes enviados segundo os procedimentos dos respetivos Chefes das Igrejas, Patriarcas, Arcebispos Maiores ou Metropolitas sui iuris. E os seus trabalhos visam a evangelização, que “constitui a identidade da Igreja em todas as suas partes”, aliás é a vocação de cada batizado, pelo que em ordem à missão “devemos escutar mais a riqueza das várias tradições”.

Ao falar da liturgia, Francisco recordou o percurso sinodal que “não é um parlamento, não é nos dizer opiniões diferentes e depois fazer uma síntese ou uma votação”. Ao invés, “é caminhar juntos sob a orientação do Espírito Santo”; e os católicos orientais são testemunhas disso, pois têm, em suas Igrejas, Sínodos e antigas tradições sinodais. De facto, na sinodalidade há o Espírito; e, se não houver o Espírito na sinodalidade, haverá apenas parlamento ou pesquisa de opinião. Ora, como afirma o Papa, esta experiência sinodal é o céu na terra e espelha-se na liturgia acontece isso, mas “a beleza dos ritos orientais está longe de ser um oásis de evasão ou conservação”. Antes, a assembleia litúrgica reconhece-se como tal não tanto porque se convoca, mas porque “escuta a voz de um Outro, permanecendo voltada para Ele”, pelo que “sente a urgência de ir ao irmão e irmã levando o anúncio de Cristo”.

Francisco observou que o trabalho dos presentes nestes dias é “uma oportunidade para se conhecer dentro das comissões litúrgicas das diferentes Igrejas sui iuris” e um convite a “caminhar junto com o Dicastério e os seus Consultores segundo o caminho indicado pelo Concílio Ecuménico Vaticano II”. A este respeito, considerou:

Podemos perguntar-nos sobre a possível introdução de edições da liturgia nas línguas dos países onde os fiéis se difundiram, mas na forma da celebração é necessário viver a unidade de acordo com o que foi estabelecido pelo Sínodos e aprovado pela Sé Apostólica, evitando particularismos litúrgicos que, na realidade, manifestam divisões dentro das respetivas Igrejas”.

E concluiu exortando os participantes na assembleia plenária a estarem atentos “às experiências que podem prejudicar o caminho rumo à unidade visível de todos os discípulos de Cristo”, pois o mundo precisa do testemunho da comunhão. Ora, “se escandalizarmos com as disputas litúrgicas, estamos no jogo daquele que é o mestre da divisão” (o demónio).

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Também os participantes na Assembleia Plenária da Congregação para as Igrejas Orientais e oito Patriarcas e Arcebispos-mores das Igrejas do Oriente recordaram as palavras fortes de Bento XV, em favor da paz, em 1917, ante as “ameaças de novos conflitos na tão sofrida Ucrânia”:

A Europa correrá para o abismo, indo ao encontro um verdadeiro suicídio? O mundo civilizado deverá ser reduzido a um campo de extermínio?”.

E, inspirados nestas questões, levantadas por Bento XV na “Carta aos líderes dos povos beligerantes”, em agosto de 1917, fizeram um apelo para a Paz na Ucrânia, onde ainda sopram ventos de guerra.

Dirigimos o nosso pensamento e coração aos nossos irmãos na Ucrânia”. Foi com estas palavras que o Cardeal Leonardo Sandri concluiu a sua saudação ao Papa na audiência que concedeu aos participantes na Assembleia Plenária do seu Dicastério, por ocasião do 25.º aniversário da Instrução “O Pai incompreensível”.

Entretanto, o purpurado recordou que a Congregação para as Igrejas Orientais foi instituída, por expresso desejo de Bento XV, a 1 de maio de 1917. Junto com os participantes na nesta Assembleia Plenária, o Cardeal Sandri dirigiu o “seu pensamento e coração aos irmãos na Ucrânia, sobretudo ao Arcebispo-mor da Igreja Greco-Católica ucraniana, Sviatoslav Shevchuk, que, nestes dias, quis ficar ao lado do seu povo, bem como aos filhos e filhas Greco-católicos, Latino-católicos, Ortodoxos e de outras Confissões religiosas.

Assim, os Patriarcas e Arcebispos-mores das Igrejas Orientais Católicas, presentes no encontro com os delegados das suas Comissões litúrgicas e os membros do Dicastério vaticano, retomaram as palavras de Bento XV e dos seus Sucessores até Francisco, contra a “loucura universal”, que ameaça dominar a Europa:

Diante das ameaças de novos sofrimentos e conflitos, na tão sofrida Ucrânia elevamos, mais uma vez, nosso grito de paz e renovamos um premente apelo aos que detêm nas mãos o destino das Nações”.

Segundo o Cardeal Sandri, os líderes religiosos fazem o apelo movidos pelo dever de consciência e ouvindo o grito da humanidade: “A guerra, nunca mais”.

Durante a audiência papal, Sandri leu a mensagem dos participantes na Assembleia Plenária, que recordam as palavras de Bento XV no seu apelo aos poderosos da terra:

Vós tendes uma gravíssima responsabilidade diante de Deus e dos homens; das vossas decisões dependem a paz e a alegria de inúmeras famílias, a vida de milhares de jovens, a felicidade dos povos. Que o Senhor, Rei da Justiça e da Paz possa inspirar-vos sábias decisões em prol da humanidade apreensiva. Lembrem-se de que nada se perde com a paz, mas tudo se perde com a guerra!”.

E o Cardeal concluiu:

Que no futuro, vós possais ser chamados bem-aventurados, porque construístes a paz e transformastes as armas de hoje em foices e ferramentas de prosperidade e bem-estar para os povos”.

No término da audiência aos participantes na Assembleia, o Cardeal Leonardo Sandri agradeceu ao Pontífice “por ser, para nós e nossas Igrejas Orientais Católicas, Pai e arquiteto da paz e da reconciliação”. E recordou que a Assembleia está na esperança de que “o espírito de partilha e de escuta possa caraterizar, não apenas estes dias, mas o quotidiano do nosso ser Igreja”.

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Entre as diversas posições de apelo à paz por parte dos episcopados europeus sobressai a do Conselho Pan-Ucraniano de Igrejas e de Organizações Religiosas que pediu, em 17 de fevereiro, à Rússia e à Ucrânia que demonstrem “boa vontade”, implementando efetivamente o acordo sobre a troca de prisioneiros, nas condições previamente acordadas no formato Normandia. Na verdade, o texto do apelo do Conselho de Igrejas aos presidentes da Rússia e da Ucrânia, Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky, respetivamente, reza:

Exortando todos os participantes no processo a mostrarem determinação e a fazerem os esforços necessários para a troca de pessoas, detidas devido ao conflito, como um primeiro passo na implementação da estratégia geral de distensão do conflito, dirigimo-nos a vós com o pedido de tomardes, sem mais tardar, todas as ações necessárias para a libertação de todos os detidos, por misericórdia e em vista de considerações humanitárias”.

Os responsáveis religiosos apelam ao diálogo diplomático para “evitar o terrível derramamento de sangue” e promover “uma paz duradoura e justa”. E o bispo católico de rito latino de Kiev e Zhytomyr, Dom Vitalii Kryvytskyi, pediu à comunidade internacional que não use a Ucrânia para “resolver os seus próprios problemas”. Em declarações aos jornalistas na Catedral de Santo Alexandre, na capital ucraniana, o bispo disse que “a Ucrânia deve permanecer totalmente independente, rejeitando os pensamentos e desejos imperialistas de todo e qualquer vizinho”.

Kryvytskyi, de 49 anos, natural da cidade ucraniana de Odessa, observou que a Ucrânia precisa do apoio a “vários níveis daqueles que estão envolvidos na política”, mas advertiu que, como Igreja, vê que “hoje em cada discurso informativo há também muitas mentiras”.

O bispo, sustentando que os conflitos só dão origem a novos conflitos, evocou os acontecimentos de 2014, desde a anexação da Crimeia pela Rússia, e desenvolveu:

Enquanto, por um lado, não vemos razões políticas para o início de uma guerra, existem aqueles que afirmam que a guerra já começou, embora possam ser os mesmos meios de comunicação que há um ou dois anos negavam que houvesse um conflito na Ucrânia, que na verdade começou há oito anos”.

No dizer do prelado, a consequência deste conflito é que a Ucrânia e o seu povo “já estão a sofrer” e aos muitos migrantes que deixaram o país de leste no passado “poderiam agora juntar-se outros que já estão a pensar em deixar o país”. O bispo deu como exemplo os confrontos entre o exército e os rebeldes separatistas na região ucraniana de Donbass que, segundo estimativas da ONU, causaram até agora pelo menos 14 mil vítimas e sete mil feridos.

A partir da Catedral de Santo Alexandre, local de referência para o quase milhão de católicos de rito latino da Ucrânia, Dom Vitalii Kryvytskyi salientou que o diálogo para “um processo de paz parece continuar” e acredita “muito que a guerra não está a começar” e lamentou que “também vejamos os investidores a tentar tirar o capital do país, as companhias aéreas estejam a fechar voos e muitas embaixadas a retirar os seus funcionários”.

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Enfim, a pré-guerra que já faz sofrer muita gente e que está na iminência de se transformar em guerra cruel cujas consequências são incalculáveis. Pede-se o reforço e a persistência da diplomacia, postula-se a oração confiante e perseverante dos crentes e a generosidade das pessoas boa vontade, que mais numerosas, embora humanamente menos poderosas, que os semeadores da discórdia.

2022.02.20 – Louro de Carvalho

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