Sofia Teixeira escreveu, a 26 de janeiro passado,
para a “Notícias Magazine” um artigo intitulado
“Escrita à mão. Crónica de uma morte
anunciada?”, que penso dever servir para reflexão.
Atualmente, com a invasão da vida académica, profissional
e social pelo digital corremos o risco, não da castração química, mas na
limitação da leitura e da escrita.
Já em tempos fiz levantamento das vantagens e
desvantagens da leitura de materiais digitalizados; hoje vou refletir sobre a
escrita à mão. Não quero dizer que seja útil para a posteridade a produção e a
multiplicação de manuscritos só para que venham a ter valor histórico ou arqueológico,
como sucede com muitos anteriores ao advento da imprensa e mesmo da generalização
da litografia, linotipia e tipografia. Importa manter a tipologia do manuscrito
sobretudo para o desenvolvimento psicomotor, nomeadamente ao nível das mãos e
dos dedos.
Recordo-me de que numa escola profissional com o
curso técnico de construção civil, na especificação de desenho técnico, o
professor queria pôr os alunos logo a praticar em AutoCad. Obviamente o caminho
era esse. No entanto, instei para que os alunos começassem pelo desenho no
estirador com candeeiro e carro. Tinha as suas vantagens a nível psicomotor,
obrigando a pensamento e a destrezas.
As
crianças, quando eu era estudante pegavam nos lápis de ardósia e escreviam e
desenhavam na ardósia preta com moldura de madeira, fazendo o mesmo com giz branco
no quadro de ardósia preto fixado numa das paredes da sala de aula. Cedo se
abandou a ardósia ou lousa individual, os quadros de ardósia deram lugar a
quadros de material sintético pretos ou verdes até aos quadros brancos em que
se escrevia a marcador e, depois, aos quadros interativos. E ainda dizem que há
iliteracia nos professores!
Entretanto,
as crianças continuavam, ainda em tenras idades, a pegar em lápis, a desenhar
ou garatujar e a pintar, o que está em vias de ser substituído pelo ecrã tátil
do tablet e telemóvel.
As cartas de amor escritas em suspiros e lágrimas foram trocadas por
emojis no WhatsApp. Os manuscritos rasurados, em que se admirava a paciência e perfecionismo
dos grandes escritores, eclipsaram-se ante os diversos tipos e tamanhos de
carateres do computador. As garatujas infantis passaram do papel para o tablet.
Para assinalar a importância de pegar no lápis ou na caneta e desenhar
as letras numa folha de papel, celebrou-se a 23 de janeiro o “Dia Mundial da
Escrita à Mão”. Com efeito, convém saber o que a escrita pode dizer de nós e o que distingue a
escrita normal da arte da caligrafia.
A linguista Adriana Baptista, sentindo que a tecnologia está
a afastar a escrita do manuscrito, inventada há mais de 3.500 na Suméria,
teme que isso seja um problema para a aprendizagem duma competência motora e
criativa, como é a escrita à mão.
Em mais de 30 anos, a linguista deu aulas a futuros
professores e educadores de infância e não acredita que a escrita à mão acabe,
mas chama a atenção para os programas do 1.º ciclo que estão organizados em
torno da digitalização. E afirma que a escrita à mão de cada aluno pode mostrar
caraterísticas de personalidade, como aliás peritos em investigação criminal
sabem, já que recorrem aos préstimos dos grafologistas.
O calígrafo José Braz (há cerca de
100 calígrafos quase todos aprenderam com ele) é um dos últimos mestres e afirma que a escrita à mão é como uma impressão
digital. Não vê o computador como ameaça, antes garante que manuscrito e
computador “complementam-se na perfeição”.
Porém, verificando que a rara profissão de calígrafo corre o risco de acabar, vai
terminar um manual de caligrafia, pois escrever “à mão todos escrevemos”, mas a
caligrafia “exige arte e anos de dedicação”.
A 23 de
novembro de 2021, no.º 9 da Avenue Matignon, em Paris (morada da
leiloeira Christie’s na capital francesa), foi
arrematado em leilão um manuscrito por mais de 13 milhões de euros. O conjunto
de 54 páginas manuscritas em papéis soltos data de 1913 e 1914 e foi escrito
pelo punho de Albert Einstein e do colega e amigo Michele Besso. Contém os
trabalhos preparatórios para a Teoria da Relatividade Geral, publicada em 1915,
e encapsulada na famosa equação E=mc2; e oferece uma “fascinante imersão na
mente do maior cientista do século XX”.
Ao invés do
texto digital, padronizado, assético, definitivo, um manuscrito mostra o
processo mental e emotivo do seu criador: rasuras e correções, erros e notas à
margem, o início de raciocínios abandonados e substituídos por outros. É um pouco
a pessoa e o que ela pensou que chega até nós, no que há um enorme lirismo.
Alexandre
Castro Caldas, neurologista e diretor do Instituto de Ciências de Saúde da
Universidade Católica Portuguesa, aponta que a leitura de manuscritos dá muita
informação sobre o escrevente, não por se ver a sua personalidade pelo tipo de
letra (o neurologista
crê pouco na segurança da grafologia), mas pelo
conteúdo. E refere ter conhecido muito melhor Egas Moniz lendo os livros da sua
biblioteca, pois ele tomava muitas e imensas notas nas margens. Aquele homem
teve mil ideias na vida: anotava constantemente a nas margens “e ‘se’, seguido
de hipóteses”.
O
também ex-diretor do Serviço de Neurologia do Hospital de Santa Maria, Lisboa,
acredita que “vamos deixar de escrever à mão”. E, apesar de escrever à mão e depois
passar para computador, a morte da escrita caligráfica não o assusta, nem julga
que daí venha tragédia. O receio das novas possibilidades é um dos mais velhos
problemas do Mundo. Sócrates achava que era perigoso aprender a escrever porque
deixávamos de pôr as coisas na cabeça quando as púnhamos no papel. As pessoas
ficaram aflitas com a ferrovia, com medo do mal que lhes faria um comboio a andar
a 30 quilómetros por hora, quando hoje os comboios andam a mais de 300 (em
Portugal ainda não).
E sentencia sem dramas: “Os humanos
adaptam-se às coisas que foram eles que inventaram”.
A
literacia e competência digital são importantes e devem ser valorizadas,
contudo, Mónica Pinto lembra que a “escrita
manuscrita envolve uma quantidade de funções cerebrais muito maior do que
apenas pressionar teclas”. A quantidade de músculos envolvidos na escrita
manual, a adaptação da pega ao instrumento de escrita e a pressão exercida são
alguns dos aspetos que levam a que “haja
a estimulação de múltiplas áreas cerebrais, tornando o ato da escrita mais
físico, multissensorial e multidimensional”.
O
que inúmeros estudos mostram que escrever à mão não é só importante do ponto de
vista das capacidades de escrita, mas também das de leitura. A psicóloga
experimental Tânia Fernandes, da Faculdade de Psicologia da Universidade de
Lisboa, onde coordena o grupo de investigação “Cognição em Contexto” diz que “sabemos
há 50 anos que escrever à mão potencia a aprendizagem da leitura mais do que
treinar só a leitura” e que, mesmo agora, com as novas tecnologias (tablet
ou teclado) ampla
literatura mostra que “a aprendizagem
usando a escrita à mão tem maior benefício na capacidade de reconhecermos as
letras e de lermos palavras”. E estes resultados de investigação, na sua
opinião, têm uma aplicação muito linear:
“O treino da escrita à mão, seja em
crianças, seja em adultos que estão a aprender a ler, é muito importante e deve
ser mantido”.
Várias
pesquisas demonstram que as crianças bem treinadas na escrita à mão escrevem
mais depressa e com boa legibilidade e produzem melhores textos. A psicóloga explica-o
com uma analogia: o cérebro é como o carro que precisa de combustível e o
combustível é a atenção. Se a atenção se foca no desenho das letras ou na
sílaba que vem a seguir, não está centrada no conteúdo. Escrevendo-se quase
mecanicamente, a atenção centra-se no teor do texto. Entretanto, vão-se
desenvolvendo os músculos dos membros superiores, nomeadamente das mãos e dos dedos.
O
algo similar acontece com a leitura. E a psicóloga menciona um relatório da OCDE
(Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) que mostra a correlação do nível de leitura de
palavras com a produtividade laboral em adultos. Com efeito, um leitor
proficiente e rápido gasta menos tempo na leitura e fica com mais tempo para se
dedicar a outros processos cognitivos.
Apesar
de tudo, discute-se se vale ou não a pena treinar as crianças na escrita à mão.
Em países como a Finlândia, desde 2016 as escolas desinvestiram no ensino da
letra cursiva e os alunos passaram a ter mais atividades de digitação em
teclado. A investigadora reconhece que o debate é legítimo, mas adverte que,
além de a atual investigação mostrar benefícios na escrita à mão, a questão
extravasa o campo da Psicologia Experimental:
“Penso que a eliminação do treino de escrita
caligráfica pelo sistema educativo é perversa, principalmente, quando existem
variações socioeconómicas muito grandes”.
A
dificuldade em escrever à mão no adulto podem ser sintomas de doença, grave em
muitos casos. Por isso, a neurologista Ana Castro Caldas, coordenadora clínica
do CNS – Campus Neurológico Sénior, Lisboa, onde trabalha sobretudo com doenças
do movimento, avisa que dificuldades ou alterações na escrita devem motivar a
ida ao médico. De facto, segundo a médica, “as pessoas com doença de Parkinson
podem apresentar queixas de alteração da escrita, tipicamente, a micrografia ou
redução gradual do tamanho da caligrafia”. E várias doenças podem impactar a
escrita. Uma das mais frequentes é o acidente vascular cerebral (AVC); e uma das mais curiosas é a
distonia, caraterizada por “movimentos involuntários tipo contração ou torção
dos músculos dos dedos, mão e antebraço”. E, “quando aparecem apenas na
escrita, chamam-se cãibra do Escrivão”.
Na
ausência de doenças, a escrita manuscrita é, sobretudo, um sinal de saúde e uma
forma de a promover, pois escrever é uma ação terapêutica. A psicóloga clínica
Sílvia de Jesus Coutinho, recorda que a psicoterapia foi muitos anos
considerada a cura pela fala, “já que a
linguagem torna o indizível expresso, o invisível mais visível, o
incompreendido mais acessível à mente e passível de ser compreendido”. Mas atribuindo
também à escrita esse papel, explica:
“Muitos estudos confirmam que a escrita pode
apresentar um importante papel no decorrer do processo terapêutico: é uma via
de externalização para emoções e pensamentos, que tantas vezes bloqueiam as
pessoas e que acabam por assumir um impacto nocivo para a sua saúde física e
mental”.
O
paciente pode ser instado a escrever de vários modos: escrita livre diária, diário
de gratidão ou de sonhos e mesmo exercícios mais concretos, como escrita de
carta a alguém. O objetivo é ganhar “clareza sobre o seu sentir”, sobre o Mundo
e os outros, pôr tudo em perspetiva, “ganhar autoconhecimento e reequilíbrio emocional”.
E escrever cumpre tal papel mesmo fora do contexto da terapia. Sílvia Coutinho exemplifica,
citando o “Diário de Anne Frank”, pelo
qual a menina “conseguia sentir-se menos
isolada do Mundo, exteriorizar as suas emoções e obter algum alívio e conforto
através do processo de escrita”. Para a psicóloga e psicoterapeuta, não há
nada de errado em escrever tudo isto num computador, mas deve manter-se a
escrita à mão, pelas suas vantagens: “estimula
a memória e criatividade”, “obriga a
um maior exercício de atenção”, “potencia
a compreensão” e “é por norma uma
escrita mais fluida e mais emotiva”.
Apesar
das vantagens, a prática está a cair em desuso, sobretudo entre as novas
gerações. Um estudo recente no Reino Unido mostra que um terço dos adolescentes
do país nunca escreveu uma carta. Os pequenos momentos quotidianos de escrita
manuscrita, como atualização
da agenda, um bilhete, lista de compras, dão lugar a aplicações de telemóvel. A
manter-se a tendência, é possível que a escrita à mão venha a ser uma relíquia
do passado.
Lembro-me
de que um dos Padres da Igreja referia que as mãos constituem uma vantagem para
o homem em comparação com os animais no atinente à capacidade da fala: como os outros
animais não têm mãos, alongam maxilares e lábios para procurar e puxar os
alimentos, ao passo que o homem, possuindo as mãos para agarrar e manipular os alimentos
e os levar à boca, tem os maxilares, os lábios, os dentes e a língua para processar
a fala. Pode, assim, dizer-se que o homem fala porque tem mãos, que substituem
a linguagem verbal na mímica e acompanham o discurso oral e os jogos
fisionómicos com os gestos adequados. Também a leitura pelo livro, jornal,
revista ou simples folheto promove uma diversificada leitura muscular: mãos,
dedos, olhar, pescoço… E a escrita manual promove análoga desenvoltura psicomotora,
como foi assaz explicitado.
Não
se trata de não aderir ao digital, mas de evitar que monopolize a atividade
humana da leitura e da escrita. Que seja facilitador, mas não inibidor.
2022.02.06 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário