domingo, 6 de fevereiro de 2022

A escrita à mão não pode desaparecer

 

Sofia Teixeira escreveu, a 26 de janeiro passado, para a “Notícias Magazine” um artigo intitulado “Escrita à mão. Crónica de uma morte anunciada?”, que penso dever servir para reflexão.

Atualmente, com a invasão da vida académica, profissional e social pelo digital corremos o risco, não da castração química, mas na limitação da leitura e da escrita.

Já em tempos fiz levantamento das vantagens e desvantagens da leitura de materiais digitalizados; hoje vou refletir sobre a escrita à mão. Não quero dizer que seja útil para a posteridade a produção e a multiplicação de manuscritos só para que venham a ter valor histórico ou arqueológico, como sucede com muitos anteriores ao advento da imprensa e mesmo da generalização da litografia, linotipia e tipografia. Importa manter a tipologia do manuscrito sobretudo para o desenvolvimento psicomotor, nomeadamente ao nível das mãos e dos dedos.

Recordo-me de que numa escola profissional com o curso técnico de construção civil, na especificação de desenho técnico, o professor queria pôr os alunos logo a praticar em AutoCad. Obviamente o caminho era esse. No entanto, instei para que os alunos começassem pelo desenho no estirador com candeeiro e carro. Tinha as suas vantagens a nível psicomotor, obrigando a pensamento e a destrezas.      

As crianças, quando eu era estudante pegavam nos lápis de ardósia e escreviam e desenhavam na ardósia preta com moldura de madeira, fazendo o mesmo com giz branco no quadro de ardósia preto fixado numa das paredes da sala de aula. Cedo se abandou a ardósia ou lousa individual, os quadros de ardósia deram lugar a quadros de material sintético pretos ou verdes até aos quadros brancos em que se escrevia a marcador e, depois, aos quadros interativos. E ainda dizem que há iliteracia nos professores!  

Entretanto, as crianças continuavam, ainda em tenras idades, a pegar em lápis, a desenhar ou garatujar e a pintar, o que está em vias de ser substituído pelo ecrã tátil do tablet e telemóvel.

As cartas de amor escritas em suspiros e lágrimas foram trocadas por emojis no WhatsApp. Os manuscritos rasurados, em que se admirava a paciência e perfecionismo dos grandes escritores, eclipsaram-se ante os diversos tipos e tamanhos de carateres do computador. As garatujas infantis passaram do papel para o tablet.

Para assinalar a importância de pegar no lápis ou na caneta e desenhar as letras numa folha de papel, celebrou-se a 23 de janeiro o “Dia Mundial da Escrita à Mão”. Com efeito, convém saber o que a escrita pode dizer de nós e o que distingue a escrita normal da arte da caligrafia.

A linguista Adriana Baptista, sentindo que a tecnologia está a afastar a escrita do manuscrito, inventada há mais de 3.500 na Suméria, teme que isso seja um problema para a aprendizagem duma competência motora e criativa, como é a escrita à mão.

Em mais de 30 anos, a linguista deu aulas a futuros professores e educadores de infância e não acredita que a escrita à mão acabe, mas chama a atenção para os programas do 1.º ciclo que estão organizados em torno da digitalização. E afirma que a escrita à mão de cada aluno pode mostrar caraterísticas de personalidade, como aliás peritos em investigação criminal sabem, já que recorrem aos préstimos dos grafologistas.

O calígrafo José Braz (há cerca de 100 calígrafos quase todos aprenderam com ele) é um dos últimos mestres e afirma que a escrita à mão é como uma impressão digital. Não vê o computador como ameaça, antes garante que manuscrito e computador “complementam-se na perfeição”. Porém, verificando que a rara profissão de calígrafo corre o risco de acabar, vai terminar um manual de caligrafia, pois escrever “à mão todos escrevemos”, mas a caligrafia “exige arte e anos de dedicação”.

A 23 de novembro de 2021, no.º 9 da Avenue Matignon, em Paris (morada da leiloeira Christie’s na capital francesa), foi arrematado em leilão um manuscrito por mais de 13 milhões de euros. O conjunto de 54 páginas manuscritas em papéis soltos data de 1913 e 1914 e foi escrito pelo punho de Albert Einstein e do colega e amigo Michele Besso. Contém os trabalhos preparatórios para a Teoria da Relatividade Geral, publicada em 1915, e encapsulada na famosa equação E=mc2; e oferece uma “fascinante imersão na mente do maior cientista do século XX”.

Ao invés do texto digital, padronizado, assético, definitivo, um manuscrito mostra o processo mental e emotivo do seu criador: rasuras e correções, erros e notas à margem, o início de raciocínios abandonados e substituídos por outros. É um pouco a pessoa e o que ela pensou que chega até nós, no que há um enorme lirismo.

Alexandre Castro Caldas, neurologista e diretor do Instituto de Ciências de Saúde da Universidade Católica Portuguesa, aponta que a leitura de manuscritos dá muita informação sobre o escrevente, não por se ver a sua personalidade pelo tipo de letra (o neurologista crê pouco na segurança da grafologia), mas pelo conteúdo. E refere ter conhecido muito melhor Egas Moniz lendo os livros da sua biblioteca, pois ele tomava muitas e imensas notas nas margens. Aquele homem teve mil ideias na vida: anotava constantemente a nas margens “e ‘se’, seguido de hipóteses”.

O também ex-diretor do Serviço de Neurologia do Hospital de Santa Maria, Lisboa, acredita que “vamos deixar de escrever à mão”. E, apesar de escrever à mão e depois passar para computador, a morte da escrita caligráfica não o assusta, nem julga que daí venha tragédia. O receio das novas possibilidades é um dos mais velhos problemas do Mundo. Sócrates achava que era perigoso aprender a escrever porque deixávamos de pôr as coisas na cabeça quando as púnhamos no papel. As pessoas ficaram aflitas com a ferrovia, com medo do mal que lhes faria um comboio a andar a 30 quilómetros por hora, quando hoje os comboios andam a mais de 300 (em Portugal ainda não). E sentencia sem dramas: “Os humanos adaptam-se às coisas que foram eles que inventaram”.

A literacia e competência digital são importantes e devem ser valorizadas, contudo, Mónica Pinto lembra que a “escrita manuscrita envolve uma quantidade de funções cerebrais muito maior do que apenas pressionar teclas”. A quantidade de músculos envolvidos na escrita manual, a adaptação da pega ao instrumento de escrita e a pressão exercida são alguns dos aspetos que levam a que “haja a estimulação de múltiplas áreas cerebrais, tornando o ato da escrita mais físico, multissensorial e multidimensional”.

O que inúmeros estudos mostram que escrever à mão não é só importante do ponto de vista das capacidades de escrita, mas também das de leitura. A psicóloga experimental Tânia Fernandes, da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, onde coordena o grupo de investigação “Cognição em Contexto” diz que “sabemos há 50 anos que escrever à mão potencia a aprendizagem da leitura mais do que treinar só a leitura” e que, mesmo agora, com as novas tecnologias (tablet ou teclado) ampla literatura mostra que “a aprendizagem usando a escrita à mão tem maior benefício na capacidade de reconhecermos as letras e de lermos palavras”. E estes resultados de investigação, na sua opinião, têm uma aplicação muito linear:

O treino da escrita à mão, seja em crianças, seja em adultos que estão a aprender a ler, é muito importante e deve ser mantido”.

Várias pesquisas demonstram que as crianças bem treinadas na escrita à mão escrevem mais depressa e com boa legibilidade e produzem melhores textos. A psicóloga explica-o com uma analogia: o cérebro é como o carro que precisa de combustível e o combustível é a atenção. Se a atenção se foca no desenho das letras ou na sílaba que vem a seguir, não está centrada no conteúdo. Escrevendo-se quase mecanicamente, a atenção centra-se no teor do texto. Entretanto, vão-se desenvolvendo os músculos dos membros superiores, nomeadamente das mãos e dos dedos.

O algo similar acontece com a leitura. E a psicóloga menciona um relatório da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) que mostra a correlação do nível de leitura de palavras com a produtividade laboral em adultos. Com efeito, um leitor proficiente e rápido gasta menos tempo na leitura e fica com mais tempo para se dedicar a outros processos cognitivos.

Apesar de tudo, discute-se se vale ou não a pena treinar as crianças na escrita à mão. Em países como a Finlândia, desde 2016 as escolas desinvestiram no ensino da letra cursiva e os alunos passaram a ter mais atividades de digitação em teclado. A investigadora reconhece que o debate é legítimo, mas adverte que, além de a atual investigação mostrar benefícios na escrita à mão, a questão extravasa o campo da Psicologia Experimental:

Penso que a eliminação do treino de escrita caligráfica pelo sistema educativo é perversa, principalmente, quando existem variações socioeconómicas muito grandes”.

A dificuldade em escrever à mão no adulto podem ser sintomas de doença, grave em muitos casos. Por isso, a neurologista Ana Castro Caldas, coordenadora clínica do CNS – Campus Neurológico Sénior, Lisboa, onde trabalha sobretudo com doenças do movimento, avisa que dificuldades ou alterações na escrita devem motivar a ida ao médico. De facto, segundo a médica, “as pessoas com doença de Parkinson podem apresentar queixas de alteração da escrita, tipicamente, a micrografia ou redução gradual do tamanho da caligrafia”. E várias doenças podem impactar a escrita. Uma das mais frequentes é o acidente vascular cerebral (AVC); e uma das mais curiosas é a distonia, caraterizada por “movimentos involuntários tipo contração ou torção dos músculos dos dedos, mão e antebraço”. E, “quando aparecem apenas na escrita, chamam-se cãibra do Escrivão”.

Na ausência de doenças, a escrita manuscrita é, sobretudo, um sinal de saúde e uma forma de a promover, pois escrever é uma ação terapêutica. A psicóloga clínica Sílvia de Jesus Coutinho, recorda que a psicoterapia foi muitos anos considerada a cura pela fala, “já que a linguagem torna o indizível expresso, o invisível mais visível, o incompreendido mais acessível à mente e passível de ser compreendido”. Mas atribuindo também à escrita esse papel, explica:

Muitos estudos confirmam que a escrita pode apresentar um importante papel no decorrer do processo terapêutico: é uma via de externalização para emoções e pensamentos, que tantas vezes bloqueiam as pessoas e que acabam por assumir um impacto nocivo para a sua saúde física e mental”.

O paciente pode ser instado a escrever de vários modos: escrita livre diária, diário de gratidão ou de sonhos e mesmo exercícios mais concretos, como escrita de carta a alguém. O objetivo é ganhar “clareza sobre o seu sentir”, sobre o Mundo e os outros, pôr tudo em perspetiva, “ganhar autoconhecimento e reequilíbrio emocional”. E escrever cumpre tal papel mesmo fora do contexto da terapia. Sílvia Coutinho exemplifica, citando o “Diário de Anne Frank”, pelo qual a menina “conseguia sentir-se menos isolada do Mundo, exteriorizar as suas emoções e obter algum alívio e conforto através do processo de escrita”. Para a psicóloga e psicoterapeuta, não há nada de errado em escrever tudo isto num computador, mas deve manter-se a escrita à mão, pelas suas vantagens: “estimula a memória e criatividade”, “obriga a um maior exercício de atenção”, “potencia a compreensão” e “é por norma uma escrita mais fluida e mais emotiva”.

Apesar das vantagens, a prática está a cair em desuso, sobretudo entre as novas gerações. Um estudo recente no Reino Unido mostra que um terço dos adolescentes do país nunca escreveu uma carta. Os pequenos momentos quotidianos de escrita manuscrita, como atualização da agenda, um bilhete, lista de compras, dão lugar a aplicações de telemóvel. A manter-se a tendência, é possível que a escrita à mão venha a ser uma relíquia do passado.

Lembro-me de que um dos Padres da Igreja referia que as mãos constituem uma vantagem para o homem em comparação com os animais no atinente à capacidade da fala: como os outros animais não têm mãos, alongam maxilares e lábios para procurar e puxar os alimentos, ao passo que o homem, possuindo as mãos para agarrar e manipular os alimentos e os levar à boca, tem os maxilares, os lábios, os dentes e a língua para processar a fala. Pode, assim, dizer-se que o homem fala porque tem mãos, que substituem a linguagem verbal na mímica e acompanham o discurso oral e os jogos fisionómicos com os gestos adequados. Também a leitura pelo livro, jornal, revista ou simples folheto promove uma diversificada leitura muscular: mãos, dedos, olhar, pescoço… E a escrita manual promove análoga desenvoltura psicomotora, como foi assaz explicitado.

Não se trata de não aderir ao digital, mas de evitar que monopolize a atividade humana da leitura e da escrita. Que seja facilitador, mas não inibidor.

2022.02.06 – Louro de Carvalho

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