quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

“Não deve ser ignorada” a autoridade moral do Papa

 

Antonio Almeida Lima, após a sua exoneração do cargo de embaixador de Portugal junto da Santa Sé e nomeação como representante de Portugal em Haia, Países Baixos (dantes, Holanda), visitou o Papa Francisco para apresentação de cumprimentos de despedida. E fez, em entrevista à “Renascença” e à “Ecclesia”, publicada a 30 de janeiro, um balanço da sua atividade diplomática de quatro anos e meio na Cidade-Estado onde está sediada a cúpula da Igreja Católica.   

O balanço que faz tem, como acentua, duas componentes: a oficial, política e diplomática, a que mais interessa ao público; e a pessoal, humana, também relevante. Porém, tratando-se da representação junto do chefe da Igreja Católica, as duas componentes misturam-se um pouco.

Agradeceu ao Papa o facto de ele, neste mandato, ter tomado decisões que reforçam a presença de Portugal na relação diplomática com a Santa Sé e que exaltam “a nossa vocação e o nosso contributo como Nação e como indivíduos que fazem essa Nação”, nomeadamente, a eleição dos cardeais António Marto, Bispo de Leiria-Fátima, e José Tolentino de Mendonça, Arquivista do Arquivo Apostólico do Vaticano e Bibliotecário da Biblioteca Apostólica Vaticana. Com efeito, crê ser a primeira vez na história que Portugal tem 5 cardeais no sacro colégio cardinalício, o que “muito admira” muitos dos outros embaixadores que “ficam impressionados com isso”.

Na apresentação de credenciais, em novembro de 2017, disse ao Santo Padre que “era uma grande honra poder ser o continuador de uma longa história de relações entre Portugal e a Santa Sé, que tem 900 anos”. E o Papa falou-lhe da grande admiração por Portugal e pelos portugueses, pois conhecia-os pessoalmente na sua vida familiar a partir de Buenos Aires, onde contactava com colaboradores do pai que eram portugueses. E tinha ficado com grande respeito e admiração pelo sentido de família, seriedade e entrega ao trabalho dos portugueses. Por isso, para o embaixador, devemos ler nessa ótica a escolha de Lisboa para as próximas JMJ (Jornadas Mundiais da Juventude).

Acerca das JMJ em Lisboa e da anunciada presença do Papa, acha que tudo isso pode servir de estímulo para o país na pós-pandemia. Revela ter acompanhado a preparação junto dos dicastérios romanos e do Patriarcado de Lisboa. Sente que a pandemia introduziu uma perturbação na organização, mas espera que as coisas evoluam no sentido mais tranquilo permitindo agora apressar mais essa preparação, que é fundamental. Regista o imenso desejo que vê de retoma da normalidade até para se poderem realizar as JMJ – esse reencontro dos jovens com o Papa em grande massa, que será “um bom sinal de esperança”.

Crê estarmos perante atrasos recuperáveis, mas refere que esta é uma organização que depende do respetivo dicastério de Roma, do Patriarcado de Lisboa e das autoridades civis nacionais, nomeadamente municipais, mas também da preparação que em cada diocese no mundo se vai fazendo para estas jornadas. E o grande desejo é que venha o maior número possível de jovens do mundo inteiro. E, como as dificuldades que a pandemia vem provocando a vários níveis podem condicionar isso, há que apressar a preparação para não se perder mais tempo, devendo cada diocese fazer o que puder na medida das suas circunstâncias, capacidades e possibilidades.

Em relação à incontornável figura de Francisco nesta equação e às mensagens fortes que guarda das suas intervenções, em particular neste momento de várias crises, julga que as intervenções do Papa “são sempre pautadas por uma enorme experiência, uma enorme ponderação e uma enorme preocupação pelas grandes questões e os grandes problemas e grandes crises que a humanidade enfrenta”. Recorda que São Paulo VI, na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque nos anos 60, disse que “a Igreja Católica é perita em humanidade”, para acentuar que é “essa preocupação e essa experiência” que o Santo Padre “transmite em todas as suas comunicações”, nas quais sobressai “a preocupação com as pessoas em concreto”. Com efeito, a Igreja Católica e Francisco não têm preferidos nem interesses investidos, antes a Igreja Católica tem como escopo “tratar, não em conceitos abstratos, mas no concreto”, porque “a humanidade são pessoas concretas”. Assim, quando há um problema num país ou numa região, Francisco está ali a dizer “palavras de justiça, palavras de respeito pela dignidade humana”. Tal é claro, por exemplo, no atinente a refugiados e imigrantes, preocupação que vai contra muitos interesses instalados.

Questionado sobre se as preocupações do Papa quanto a cenários de guerra, fome, migrações forçadas, são acompanhadas por Portugal e se deviam ser mais ouvidas pelos responsáveis internacionais, Almeida Lima responde que sim e em absoluto. Admite que cada país tenha os seus interesses e que nem todos estão nas mesmas circunstâncias, mas preconiza que “o apelo de uma voz com a autoridade moral que o Papa Francisco tem no mundo em geral para as preocupações concretas das pessoas” não deve ser ignorado pelos responsáveis políticos, “se querem cuidar do bem-estar das suas populações e do desenvolvimento do seu próprio país”. E menciona um comentário que ouviu, há meses, ao Dr. António Vitorino, diretor-geral da Organização Mundial das Migrações numa conferência para a qual o convidara, na Universidade Antoniana, a propósito dos 800 anos do encontro entre Santo António e São Francisco. O tema era a migração e o acolhimento das migrações, muito caro a este Papa. Aí, António Vitorino frisou que, durante a pandemia se houve setor afetado, foi o dos migrantes e refugiados, pois “muitos deles perderam empregos e rendimentos”. Porém, “as remessas de dinheiro que os emigrantes fizeram para os seus próprios países e para sustentar as suas famílias permaneceram ao mesmo nível”, sem redução. Assim, o embaixador enaltece o sentido da solidariedade humana dos migrantes, bem presente nos portugueses. De facto, mesmo em grandes dificuldades a essência básica das necessidades das populações de origem puderam ser ajudadas com essas remessas, o representa é um sentido de solidariedade extraordinário de que Francisco tem falado muito.

Da crise humana em Cabo Delgado, norte de Moçambique, provocada pelo autoproclamado ‘estado islâmico’, uma das situações para que o Papa chamou a atenção numa das suas mensagens ‘Urbi et Orbi’, o embaixador supõe ter havido preocupações imediatas e pressões do Governo português junto da UE, embora a situação seja muito delicada para Portugal como ex-potência colonial, que não pode intrometer-se excessivamente na questão, mas deve manifestar as suas preocupações. O país está, pois, em total sintonia com o Santo Padre, aliás como está sempre, até porque faz parte dos primeiros artigos da Concordata o entendimento comum entre a República Portuguesa e a Santa Sé, no respeitante à defesa da justiça, da paz, da dignidade humana.

Vozes autorizadas que falam sobre o tema ajudam e a voz do Papa ajuda sobremaneira. Com efeito, segundo Almeida Lima, “a capilaridade da Igreja fá-la chegar mais cedo e mais perto das populações do que a maior parte, senão qualquer um dos outros Estados”, pelo que é de ter em boa conta a mais-valia da Igreja, adveniente do conhecimento atual da realidade “que a comunidade internacional deve aproveitar e tem aproveitado”. 

No discurso ao corpo diplomático de 10 de janeiro, o Papa lamentava a “crise de confiança” na diplomacia, pedindo a aposta da comunidade internacional no multilateralismo. Sobre o tema, o embaixador sublinha a grande consonância da Santa Sé com a nossa própria posição como país, sendo fundamental a advocacia papal do multilateralismo, visto que é fulcral manter vivas as instituições internacionais que promovem “o entendimento entre as nações, a concertação, a cooperação internacional”, como antídoto às “tendências nacionalistas e populistas que afastam da centralidade da cooperação”. O Papa ajuda bastante, pois os seus discursos são ouvidos e a Santa Sé “tem relações diplomáticas com cerca de 200 países (90 dos quais ao nível de embaixador), praticamente a totalidade da comunidade internacional”, o que significa “um auscultar internacional muito vivo, muito atento àquilo que Santa Sé diz, sabe, conhece e promove”.

Sobre a falta de diplomacia e de aposta no diálogo na tensão entre Rússia e Ucrânia, o embaixador escusa-se a referir-se em concreto a qualquer conflito no mundo, por não ser da sua competência, mas regista que “o Papa se preocupa imediatamente com todos as erupções de conflito que acontecem no mundo e as catástrofes”. Tanto assim é que não há oração do Angelus ou Bênção ‘Urbi et Orbi’ em que os temas concretos da atualidade não sejam equacionados.

Sobre a convocação de um dia de oração pela paz, lembrando a Ucrânia, da parte de Francisco, Almeida Lima sublinha que o Pontífice o faz pela pressão que sente “da consciência e do conhecimento que tem diretamente, das populações”; e não olha por cima desses temas, antes “vai diretamente a eles, fala e pede orações”. Assim, na audiência geral do dia 26, fê-lo com mais ênfase, rezou em conjunto o Pai-Nosso pela paz na região, o que revela “a preocupação atenta do Santo Padre em relações às crises que estão a rebentar, a surgir, e que podem ser devastadoras”.

No concernente às relações entre Portugal e a Santa Sé, considera que “são estupendas”. Mais disse que não é só ele a achá-lo, mas também a própria Secretaria de Estado do Vaticano o menciona. Assim, Monsenhor Gallagher, o equivalente a “Ministro dos Negócios Estrangeiros” de Sua Santidade, esteve em Lisboa em novembro, a convite do Ministro Augusto Santos Silva, um desejo há muito formulado e que acabou por ser realizado após vários adiamentos, e ficou muito contente com essa visita pelo grande entendimento de posições verificado.

Referiu, ainda, que o Presidente da República esteve no Vaticano em março de 2021 e que, em fevereiro, Dom Edgar Peña Parra, o substituto da Secretaria de Estado do Vaticano, virá ao Porto e, em maio, presidirá às celebrações em Fátima, uma ótima ocasião, pelas suas responsabilidades políticas e administrativas na Santa Sé, de falar com as autoridades portuguesas, com a Igreja em Portugal, sobre temas que nos interessam, como a organização da JMJ.

Tendo, na sessão de cumprimentos de Ano Novo, com o corpo diplomático, o Presidente da República elogiado o “exemplo inspirador” de Francisco no combate pela dignidade das pessoas, a sua vida, liberdade e igualdade, o embaixador vê nisto caraterísticas a destacar na personalidade do Papa, “até pela sua origem e formação como religioso latino-americano e jesuíta”. Entende que, desde o início, se perfila como “um sacerdote com vocação missionária”, o que o faz “uma pessoa atenta aos outros, atenta aos pobres, atenta aos marginalizados”, como sobressai na “orientação das suas viagens pastorais, indo às margens do mundo, da Cristandade, visitando países onde há pequenas comunidades católicas”, bem como no enfrentamento das dificuldades duma visita ao Iraque, “contra a opinião de toda a estrutura da Cúria e de muita gente”, mas em que insistiu pessoalmente porque “faz parte da sua vocação missionária ir ao encontro das pessoas e preocupar-se com os que mais sofrem”.

Por fim, no atinente à valorização da língua portuguesa no Vaticano, o embaixador porfia ter procurado sempre manter com os colegas de língua portuguesa uma articulação sobre a matéria, como fizeram os seus antecessores. Houve mesmo diligências concretas junto dos dicastérios para que a língua portuguesa não deixe de ser uma língua de trabalho, que ainda é em várias componentes da divulgação oficial das intervenções de Sua Santidade. Todavia, adverte que “há um caminho longo a percorrer”. E observa que não se pode estar à espera de que seja a Cúria a fazê-lo, mas temos de contribuir para isso, porque a Cúria é formada pelo contributo das próprias Igrejas no mundo inteiro, devendo todos estar disponíveis para dar o próprio contributo à Santa Sé, para que a nossa língua seja tratada a um nível consentâneo com a sua dimensão. Por isso, compete aos diplomatas, religiosos, comunicação social chamar a atenção para o facto de que “também somos Igreja”.

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Sim, é preciso escutar o Papa, mas também contribuir para que a Igreja seja sempre mais dialogante e solidária e consiga um mundo mais justo, solidário e fraterno.

2022.02.02 – Louro de Carvalho

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