sábado, 26 de fevereiro de 2022

Uma profecia da não-violência, um desafio para os jovens

 

O Papa passou mais de uma hora em diálogo virtual com os estudantes universitários da América do Norte, do Sul e Central, tendo sido os temas principais a não-violência, a migração, o cuidado com a Criação, a sinodalidade da Igreja, o relacionamento com os idosos e as novas tecnologias. Denunciou a violência que destrói, como o demonstram as ditaduras na história, e citou Gandhi para salientar que “é difícil dar a outra face”, mas apontando que a gentileza é “uma das coisas humanas mais bonitas”.

A abrir o diálogo emergiu a prece inicial a Santa Maria, Rainha da Paz, para que proteja a Ucrânia, as famílias, os jovens e, em geral, as vítimas dos ataques recentes.

O diálogo, que decorreu a seguir às saudações do Cardeal Blaise Cupich, Arcebispo de Chicago, e de Emilce Cuda, secretária da CAL (Pontifícia Comissão para a América Latina), teve como horizonte o encontro sinodal “Construir Pontes Norte Sul”, pensado e organizado pelo Departamento de Teologia da Loyola University, um ateneu jesuíta em Chicago, em colaboração com a CAL. Francisco, que saudou os jovens com o “bom dia”, boa tarde” e “boa noite” em referência aos vários fusos horários, permaneceu ligado, das 19 horas às 20,45, desde a sala da Casa Santa Marta para perguntas e respostas com Lorena, Leo, Paco, Alejandro, Priscilla, Jefferson e outros jovens de diferentes lugares: brasileiros, canadenses, estadunidenses, argentinos e alguns, que são migrantes fugidos dum país para outro ou transferidos da periferia para o centro das suas cidades à busca de melhores oportunidades de vida. Conectados com telemóveis, tablets e computadores, divididos em 4 blocos, contaram resumidamente ao Papa a sua história, denunciaram as emergências nos seus países e apresentaram projetos desenvolvidos nos últimos anos.

“Construir pontes é parte da integrante da identidade cristã”, destacou o Santo Padre, que recordou que Jesus Cristo “veio para construir pontes entre o Pai e nós”; porfiou que “um cristão que não sabe construir pontes esqueceu o seu Batismo”; e disse que o caminho para construir as “pontes” é compartilhar ideias e iniciativas desenvolvidas em várias latitudes da América.

Bergoglio ia tomando nota das perguntas dos jovens, que foram instados a falar em primeiro lugar. Depois, foi intervindo oferecendo sugestões e indicações para o futuro. Apontou que seria bom que esse espaço sinodal se tornasse constante entre os jovens estudantes e os Papas.

Em resposta a uma jovem brasileira que denunciou a “violência dura e selvagem” que viveu e vive o seu país, enfatizou que devemos responder com a “não-violência ativa”, sendo o maior desafio lançado aos jovens “a denúncia da violência”. Na verdade, como disse prosseguindo, “a violência destrói, a violência não constrói; e vemos isso nas ditaduras militares e não militares ao longo da história”. Insistiu no tema frisando que “precisamos da profecia da não-violência”, pois é mais fácil dar uma bofetada quando se leva uma bofetada do que oferecer a outra face”. E, evocando Gandhi, sublinhou que “a bondade é uma das coisas humanas mais bonitas, nasce da ternura” e alertou contra o jogo da hipocrisia, que envenena a vida, ao passo que a sinceridade custa, mas projeta-nos na conversão para a harmonia com o mundo, com Deus e com todos os irmãos e irmãs.

O Bispo de Roma falou da harmonia na criação, problema levantado por mais de um estudante. Foram citados números dramáticos: 20 milhões de pessoas por ano fogem das suas terras devido às mudanças climáticas; e há uma previsão de mil e 400 milhões de refugiados climáticos até 2060. Por isso, reiterou o apelo ao cuidado da Casa comum e lembrou o ditado espanhol: “O Senhor sempre perdoa, nós perdoamos às vezes, a natureza nunca perdoa”.

No diálogo, foi dedicado amplo espaço ao tema da migração. Tocante foi quando uma jovem sul-americana disse que emigrou com a família e denunciou o tratamento recebido:

Não somos estupradores, assassinos, viciados em drogas. Somos sonhadores trabalhadores que oferecem a este país o melhor de nós mesmos.”.

O Santo Padre respondeu reiterando a tetralogia de verbos, útil para enfrentar o que descreveu como “um dos dramas mais graves” do século:

Estamos a ver pessoas que deixam as suas terras por problemas políticos, guerras, problemas económicos e culturais. O princípio é muito claro: o migrante deve ser acolhido, acompanhado, promovido e integrado,”.

Reiterou que os países devem dizer honestamente quantas pessoas podem acolher, para que outros países possam intervir, pois, deste modo, se aciona a “fraternidade” necessária para este mundo dividido, pelo que é bom insistir no tema da migração porque diz respeito a todos, já que muitos são filhos de migrantes. Recordou a sua condição de “filho de migrantes”, membro duma família que deixou o Piemonte quando o pai “era um jovem de 22 anos”, como acentuou que os EUA são um país de migrantes (irlandeses, italianos...) e até a sua terra, a Argentina, “é um coquetel de migrantes”. Assim, no seu dizer, a questão interpela cada um de nós, especialmente os estudantes universitários que, devem enfrentar, estudar e assumir o problema através de três linguagens – “da cabeça, do coração e das mãos” –, sem correr o risco de nos tornarmos frios, sem coração.

Não faltou na conversa o apelo ao diálogo entre as gerações sob o signo das “raízes” a palavra pronunciada por um jovem, que inspirou Bergoglio a frisar:

Uma das coisas suicidas para uma sociedade é quando ela nega suas raízes. Todos devem cuidar de suas raízes. Por isso, insisto no diálogo entre idosos e jovens. Os idosos são as raízes, todos os frutos vêm das raízes.”.

Paralelamente à ótica das raízes, de que não se despegam os migrantes, é de observar que devem integrar-se nos países de acolhimento, mas sem esquecerem as suas raízes, caso contrário “viverão com a culpa disso”. Por fim, refletindo sobre o tema da sinodalidade, o Papa apelou a toda a Igreja a que seja Igreja “para a rua”, “em saída”, não “Igreja de museu estático”, em que tudo está limpo e em ordem, mas nada funciona, uma Igreja que se questiona. A este respeito, contou um episódio de quando, há anos atrás, num bairro de Buenos Aires, viu um padre transformar a paróquia num refeitório aberto aos imigrantes e aos que não tinham com quem passar as festas de Natal e Páscoa, o que o chocou, mas serviu de bofetada na sua cara que lhe “mudou o coração”.

E ao serviço disto hão de pôr-se as tecnologias, que nos devem aproximar, sem nos tornarem tecnodependentes.

***

Como declarou o Padre Modino, do CELAM, ao Vatican News, em estilo de repórter, o encontro foi um momento de agitação, mas com a esperança que não dececiona, e o fio condutor dum encontro histórico que aspira a ser hábito para o futuro, permitindo um maior diálogo entre os Papas e os estudantes universitários; e foi uma oportunidade para promover a sinodalidade como forma colaborativa de enfrentar a injustiça, quando o mundo, a 24 de fevereiro, já olhava para a Ucrânia, para quem foi pedida a oração para ajudar a construir pontes para evitar a violência.

Seria impossível resumir o que foi vivido em “um quadrado virtual que nos faz iguais a todos em quadrinhos”, nas palavras de Emilce Cuda, que definiu o momento como “um gesto sinodal concreto”, em que o Papa falou do seu espírito jovem e da sua capacidade de amar e se apaixonar.

Já o Arcebispo de Chicago afirmou que o Espírito Santo precisa de nós e convidou todos a “não terem medo dos desafios que enfrentamos, das perguntas que são muito difíceis de responder”.

O projeto, em que participaram 121 estudantes de 21 países e 58 universidades, constituiu uma oportunidade para todos, mas sobretudo para o Papa, que garantiu aos estudantes que aquilo que disseram lhe fez bem, pelo que saiu diferente do que entrou e vai ver se mudar um pouco.

Segundo Modino, Francisco salientou a importância decisiva da construção de pontes, que se concretiza aprendendo a entender as perguntas mais que a dar respostas, já que nos pedem o acolhimento de perguntas com a mente e o coração, perguntas que a vida nos faz, a cultura nos pede, os problemas humanos nos exigem, de modo que sejam recebidos com a mente e o coração e as respostas sejam inteligentes, cordiais com o coração e pragmáticas com as mãos. O Papa, filho de migrantes, chamou os estudantes para se perguntarem como cuidar dos migrantes, incitando o mundo universitário a cultivar a transdisciplinaridade, a fazer barulho e ter a esperança como âncora. E foi estabelecido um rico diálogo entre os estudantes universitários e um Papa que às vezes era visto como professor, mas também como estudante que anotou com atenção o que os 16 estudantes universitários e 4 professores, divididos em 4 grupos, expressaram abordando diferentes questões a que Francisco respondeu com a sabedoria do ancião que guia as novas gerações na construção de um futuro melhor.

Cada um dos professores apresentou os alunos, que explicitaram algumas questões presentes na vida dos migrantes, a começar pela falta de oportunidades, que geram desafios e criam situações desumanizantes, manifestadas na pobreza extrema, que é uma das causas da migração, na acumulação de riqueza, algo fortemente denunciado pelos representantes brasileiros num país onde 20 homens brancos concentram tanta riqueza como os 60% mais pobres da população, a mudança climática e o pouco envolvimento dos bispos e do clero estadunidense, com grande desinteresse por estas questões, o que desilude os jovens com a Igreja, como eles denunciaram, pedindo treino na espiritualidade e na ética da conversão ecológica e assumindo a não-violência ativa como um modo de vida. Os jovens falaram das dificuldades da língua por parte dos migrantes, da dificuldade dos pastores e comunidades em serem sinais de hospitalidade, ouvirem e aprenderem com o povo o cuidado dos pobres. Há pessoas, que obrigadas a migrar em busca de oportunidades que lhes foram negadas na sua pátria, desafiam os jovens a “criar um mundo mais justo do que aquele que encontramos”, sendo dever dos jovens procurar economias alternativas e solidárias, espaços de diálogo em busca de políticas públicas.

Dos líderes mundiais os universitários dizem que “eles só cuidam dos seus próprios interesses, mesmo que isso signifique gerar guerras”, o que fez vítimas dum sistema de exclusão, marcado por causas que provocam a migração, como a falta de cuidado com a Casa comum, a violência ou a burocracia das instituições governamentais. Tudo isto motiva os jovens a pedir “uma Igreja peregrina e não estática” para os migrantes e requer que as universidades católicas se tornem centros de encontro que ajudem a abrir portas para eles e a superar uma narrativa tóxica em torno dos migrantes, que não devem ser temidos, mas escutados.

O Papa assumiu o desafio e declarou que “seria bom se este diálogo entre Papas e estudantes pudesse ser repetido”, já que “precisa de alguém que o faça pensar, algo que os estudantes podem fazer”. E, assumindo a condição de ancião, apresentou os idosos como as raízes da sociedade e os jovens como a parte visível da árvore, como os frutos, desafiando os migrantes a não esquecer as raízes, migrantes que, com as suas remessas, sustentam a economia dos seus países de origem.

Um dos desafios, no dizer do Papa, é “passar da violência e da condenação à construção de atitudes não violentas como uma atitude mais desafiadora para os jovens”. Por isso, afirmou a necessidade da “profecia da não-violência”, incitando os estudantes universitários a realizá-la. Com efeito, a não-violência, que “tem a força da doçura”, é algo que nasce de Deus, próximo, misericordioso e terno, ao ponto de que, “se alguém pensa num Deus que não é terno”, não pensa no nosso Deus cristão, pois Deus apresenta-Se “com ternura e compaixão.

O Papa disse que a Igreja ainda não assumiu o problema ecológico na totalidade, apontando que é visto como comunista quem o faz. Porém, a mensagem do Evangelho é muito clara a este respeito. E Francisco, que pretende os pastores próximos do rebanho, alertou contra “pastores que não se aproximam, que transformam a sua Igreja num refúgio conformista para pessoas incapazes de se comprometerem”. Mais disse que o modo de lidar com os migrantes está em Mateus 25, que é a atitude mais que necessária em relação aos migrantes, estigmatizados, explorados, não pagos com um salário justo, vítimas de desigualdades estruturais, vítimas de violência que assusta e faz com que se seja tentado a “ficar fora do caminho”. Por isso, Francisco pede à Igreja que abra o seu coração, que não seja estática, que não se defenda atrás de muros, que seja uma Igreja que saia para a rua, pois “Jesus bate à porta por dentro para que o deixemos sair”.

Tudo isto gerou uma infinidade de perspetivas que exigem uma análise mais detalhada, de que surgirão certamente muitas reflexões para o futuro.

E o Papa deu a bênção insistindo no já famoso “Não se esqueçam de rezar por mim”.

2022.02.25 – Louro de Carvalho

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