As empresas podem escolher cumprir apenas aquilo a que são obrigadas, mas
que as que optam por esta estratégia, não passam da mediocridade. A vai mais
fácil para a garantia do lucro imediato é a da má atuação, mas é pela vontade
genuína de fazer bem e o bem que se vai mais longe.
Tudo isto
vem na linha do que defendeu Domènec Melé, renomado especialista mundial
em Ética Empresarial e responsável pela sua investigação e lecionação no
IESE-Business School, Navarra, num seminário organizado pela AESE-Business
School, Lisboa, em fevereiro de 2016.
Como a ética
continua a ser objeto mais de teoria que de prática efetiva, há que revisitar os
seus fundamentos, os caminhos percorridos e as falhas subsistentes na sua aplicação
por parte das empresas, sejam pequenas, médias, grandes ou gigantes, as quais,
mais vezes que seria desejável, continuam a ser notícia por más razões.
O predito
especialista abordou dois temas: “Ética
para uma boa gestão de empresas” e a “Ética
na organização e no trato com as pessoas”, enquanto dimensão intrínseca de
qualquer tomada de decisão na medida em que são as pessoas que por ela são afetadas.
De vez em
quando, emerge um interesse renovado no atinente à ética empresarial. Mas, em
termos de evolução, o movimento pela ética empresarial pode ser compartimentado
em décadas.
A pressão
social, na década de 70 do século XX, o caso da “Lockheed”, empresa aerospacial
envolvida em casos graves de corrupção que atingiram vários países como o
Japão, a Alemanha, a Itália e a Holanda, e a ascensão do movimento dos direitos
civis e dos consumidores marcaram o início dum interesse mais amplo pela ética
das empresas. Porém, só nos anos 80 a disciplina se converteu num movimento de
peso, com um impulso genuíno no mundo académico e empresarial, que viria a
cimentar-se mais na década de 90 e inícios dos anos 2000, com os escândalos da
consultora Arthur Andersen, da WorldCom, da Enron, entre outros, que originaram
um interesse crescente pelas boas práticas e pelas questões éticas do governo
corporativo.
Vieram,
depois, os escândalos da banca americana e a consequente crise financeira e
económica que abalou o mundo tal como o conhecíamos e com impacto direto na
vida de milhões de pessoas e nas economias nacionais e regionais. Ainda na
década de 90, mas com expressão mais vincada desde o início do novo século, as
empresas começam a introduzir práticas corporativas estribadas em códigos de
conduta e na formação em ética empresarial; e os valores ganharam notoriedade com
a assunção da responsabilidade social das empresas, os movimentos de
sustentabilidade e uma visão holística da noção “multi-stakeholders” a
que as organizações devem prestar atenção e contas, apesar de, não raro, a
questão ser tratada mais como “retórica do que como gramática”.
Para Melé,
já muitas empresas começam a perceber que a atividade económica tem uma
dimensão ética e compreendem que um comportamento ético e responsável não é
alheio aos resultados, visto que produz aceitação social e gera confiança. Além
disso, estes e outros fatores influenciam o desempenho económico da empresa a
médio e longo prazo. Todavia, as empresas que seguem a tendência economicista
podem aceitar os mínimos éticos ou por imposição legal ou por pressão da
opinião pública, aumentando as exigências de ética com a perceção da corrupção.
É certo que os escândalos empresariais de grande envergadura têm influenciado a
correção de desvios éticos, mas há já muitas empresas que se esforçam por ter
boa reputação ou o fazem devido a um elevado sentido de responsabilidade.
Como a tendência
para integrar a ética na eficiência da empresa é fruto do desenvolvimento dos
tempos, vivemos atualmente a era em que a gestão é muito baseada na missão da
empresa, que tem de ser congruente com o bem comum da sociedade e de todos os
seus stakeholders. Para lá das questões de reputação e boa imagem,
as empresas sabem que são cada vez mais escrutinadas e que têm de obedecer a
regras e normas que visam o seu bom comportamento.
Melé não
está seguro da eficácia dos mecanismos criados para as empresas se manterem na
linha, apesar de considerar que rankings, certificações e relatórios ajudarão a
melhorar certos aspetos a que anteriormente não se dava a devida atenção.
Todavia, o risco está em reduzir a ética ao mensurável, mas, antes ou agora,
sempre houve empresas éticas por convicção e que não precisam de nenhum código
ou de escrutínio externo para assim se manterem.
Como tudo,
também o cumprimento da ética pode ser hierarquizado, sendo opção cumprir
aquilo a que se é obrigado, o que já é aceitável, ou ir mais longe na qualidade
da ética.
O
planeamento de mínimos (ou mero compliance) consiste, entre outras regras básicas, em cumprir os
contratos legítimos; respeitar as pessoas e os seus direitos; não explorar,
maltratar ou manipular; não subornar ou aceitar subornos; atuar com
transparência; evitar conflitos de interesse; não fugir ao pagamento de
impostos; não abusar do poder em proveito próprio. Em termos de implicações
para as empresas que não têm pretensões de ir além da mediocridade, o seu
planeamento não postula mais que o cumprimento dos princípios e normas, que se
baseiem em códigos de conduta e em comités ou que, na prática, apostem numa
formação baseada apenas no evitar do que é proibido e na mera resolução de
problemas.
No entanto,
muitas empresas já investiram no aumento qualitativo dos seus níveis de ética. As
empresas que buscam a excelência ética atuam no mercado em atitude de serviço,
visando assegurar as necessidades dos demais e a tarefa de se colocar no lugar
do outro; alteram a lógica de intercâmbio (dar para receber em troca), substituindo-a pela lógica da gratuitidade (dar sem
esperar nada em troca); promovem a
formação, participação e desenvolvimento dos demais; desenham organizações que
respeitam a iniciativa e a responsabilidade; desenvolvem a sabedoria prática e
as demais virtudes para decidirem o que é melhor e não só o que lhes é mais
útil e economicamente favorável e promovem culturas éticas com especial enfoque
na justiça, verdade, ajuda reciproca e cooperação, com vista a alcançar o bem
para toda a empresa.
No respeitante
ao panorama geral do ambiente empresarial da atualidade, ao desenvolvimento
para lá dos mínimos e, sobretudo, às multinacionais, Melé sustenta que o
problema reside na condição de multinacional e de as empresas estarem, por
isso, submetidas a diversas legislações. Algumas multinacionais e outras
empresas são objeto de muitas críticas por abusos cometidos contra populações
indígenas, por falta de sensibilidade no concernente ao meio ambiente ou por
ausência de respeito pelos direitos humanos, bem como por capturarem os Estados
ou os eclipsarem no meio dos interesses particulares, fugirem aos impostos pela
injustificada falência, deslocalização de sedes e unidades de produção e pela
criação de fundações e empresas-fantasma. A ONU tem tomado medidas sobre estes
casos, embora ao nível de recomendações e de adesões e participações
voluntárias, sucedendo o mesmo com algumas associações empresariais que
acordaram certas práticas éticas. Entretanto, há multinacionais que fazem bem as
coisas e aplicam, de forma regular, as normas éticas.
O
planeamento que busca a maior qualidade ética inclui os mesmos princípios e
normas comuns, mas tem por objetivo a excelência, concretizada em valores e
virtudes desejadas, sendo de crucial importância o exemplo dos líderes e demais
executivos de topo, que devem evitar não só o que é proibido, mas tentar o
melhor possível, promovendo melhorias contínuas na organização.
Evocando o
escândalo da Volkswagen – multinacional de cultura de ética alegadamente bem
desenvolvida – Melé observou que, apesar de então não se conhecerem bem as
causas, é possível que a pressão para colocar rapidamente no mercado um modelo,
a par de dificuldades técnicas, tenha induzido engenheiros a adotarem o
mecanismo que, de imediato, causou a fraude, adotando a solução mais fácil,
ainda que enganosa. Na manipulação dos testes de emissões poluentes, o que
falhou foi uma boa integração da ética individual com a ética institucional. De
facto, com uma forte cultura ética e com um sistema eficaz de denúncia interna,
podia ter sido evitada a fraude. Se a causa não esteve no topo da organização,
poderá ter havido choque entre a consciência moral de algumas pessoas e a
pressão para se alcançarem determinadas metas.
Neste mundo
competitivo é natural que abundem os dilemas éticos. E é na complexa escolha
entre o ético e o lucrativo que as empresas falham, seja pela pressão do tempo
e dos resultados, seja por mera ambição. Todavia, há sempre a possibilidade de
se procurarem soluções alternativas e criativas. E, nesse campo, as empresas
podem marcar a diferença pela motivação para se alcançar a excelência: a
imaginação moral procura soluções que vão além do dilema ‘ou atuamos mal e ganhamos dinheiro ou atuamos bem e aumentamos os
custos’. Em caso de conflito, têm de ser prioritárias as exigências éticas face
aos custos, sobretudo se estão em risco vidas humanas. Mas com imaginação moral
(desejo de
agir bem) podem-se encontrar soluções éticas
e simultaneamente rentáveis. A motivação ética consiste em procurar estas
soluções.
Na
Antiguidade Clássica, Sócrates, Platão e Aristóteles concentraram-se nas
virtudes e na premissa de que “a ética
busca a excelência humana”; na Idade Média, em particular, pelas mãos de
Tomás de Aquino, além das virtudes, contempla-se a lei moral; com a
modernidade, começam a desenvolver-se princípios e normas para determinar que ações
são eticamente aceitáveis ou não, contribuindo Kant para esta determinação; e, na
pós-modernidade, onde se inclui o século XX, a ética é definida como um
conjunto de impulsos morais e valores, enfatizando-se situações particulares e
a responsabilidade de acordo com situações concretas e através de procedimentos
que visam o consenso. Atualmente, chegámos a uma visão integral da ética, de virtudes
e normas, mas essencialmente, de valores, estes mais consentâneos com o respeito
pelas pessoas e sob a máxima “trata os
outros como gostarias que te tratassem a ti”.
É o enfoque
na pessoa que assume prioridade, quer na dimensão individual, quer na social,
pois é a dignidade humana, os direitos humanos, a benevolência e o bem comum
das comunidades que promovem o desenvolvimento humano. Assim, as empresas devem
assumir como centro da sua ética as pessoas e procurar uma integração
consistente entre bens, princípios éticos e virtudes. O mesmo sucede na tomada
de decisão, de que a ética é uma dimensão intrínseca, porque afeta as pessoas,
e muito importante, pelo valor determinante do caráter do líder, o qual se deve
pautar pela honradez, generosidade, justiça e lealdade. Com efeito, a decisão,
que inclui a moralidade de meios e fins, é da responsabilidade de quem a toma,
bem como o são as suas consequências.
No atinente à
“ética na organização e ao trato das pessoas”, Melé deu uma definição de empresa
diferente do habitual. A empresa tenta adaptar-se ao ambiente que a rodeia,
mas, às vezes, por via da criatividade e da inovação, sofre mutações. A empresa
é muito mais que um organismo. Podendo entender-se como um mecanismo ou sistema
produtivo para criar riqueza, é muito mais que um mecanismo. Estabelece
contratos, mas não é só um conjunto de contratos. Nela coexistem interesses
diversos, mas não é mero centro de coordenação de interesses. A empresa é muito
mais que tudo isto. Uma aproximação realista leva a empresa a ser vista como
uma associação de pessoas, com uma unidade duradoura, formada por vínculos
distintos (contratuais, afetivos, morais) e envolvida
numa ação comum, para atingir um propósito partilhado, mesmo que as motivações
individuais dos que formam tal comunidade possam ser mais ou menos
diversificadas. Enfim, a empresa “é uma comunidade humana e, como tal, formada
por pessoas”.
Melé recordou
o devir da visão das pessoas na empresa: desde a mão-de-obra, em que os
obreiros eram auxiliares das máquinas, à noção de fator produtivo como
contributo para o trabalho e encarado como custos laborais, até à expressão
recursos humanos, de Peter Drucker, vigente em muitas empresas e que tem em conta
o contributo destes para os lucros. Porém, hoje devia ser a visão
ético-humanista a imperar considerando as pessoas exatamente como pessoas.
Tendo por
mote o facto de a qualidade humana fazer, ou dever fazer, parte da cultura da
empresa, Melé chegou aos seis níveis de “trato” seguintes, em crescendo
qualitativo: exploração, com o
tratamento conferido às pessoas pautado pela opressão e pelo despotismo; maus
tratos, em que são
frequentes as ofensas e as injúrias; indiferença, pela qual as pessoas são tratadas como meros recursos;
respeito, sendo os trabalhadores tratados
de forma justa e atenciosa; cuidado, em que é real a oferta de ajuda a problemas alheios;
e desenvolvimento, pelo
qual a empresa tem por objetivo favorecer o progresso pessoal de todos os seus
colaboradores.
No
seguimento da frase de Kant “as coisas
têm preço, as pessoas têm dignidade”, Melé admite que já haja relativamente
poucas empresas em que abundem os maus tratos sobre os trabalhadores, mas que
há muitas outras onde grassa a indiferença, que ocorre por as pessoas serem
vistas apenas como recursos produtivos. Em muitas, já se testemunha a
existência de trato respeitoso e, em alguns casos, atenção aos problemas dos
empregados e seus legítimos interesses. Porém, são ainda poucas as que se
preocupam a sério com o facto de os empregados poderem desenvolver-se pessoal e
socialmente trabalhando na empresa.
E, porque o
último dos níveis elencados deverá ser o almejado, impõe-se uma peculiar
atenção à noção de subsidiariedade, um dos fins últimos que a empresa deverá
pretender atingir. Trata-se de conferir iniciativa e responsabilidade,
incluindo capacidade de decisão, contando com o apoio dos colaboradores na
perspetiva da visão do bem da empresa no seu conjunto. Neste sentido de
responsabilidade, cultiva-se o respeito e apreço pela liberdade, rendibilizam-se
os talentos das pessoas, promove-se o seu maior desenvolvimento e assume-se o papel
social da empresa.
Enfim, uma boa política de ética empresarial
redundará nos seguintes resultados: humanização da empresa; incremento
da confiança; diminuição dos custos de transação; desenvolvimento profissional;
promoção da lealdade; favorecimento da aceitação social; reforço da preocupação
pelos resultados; fomento da imaginação moral; reforço dos hábitos morais, a
nível pessoal e social; desenvolvimento de culturas organizacionais éticas; e
fortalecimento da sociedade.
Face a estes
pressupostos, como é possível termos tantas empresas em ténue laboração, tão
pouca produtividade, salários tão baixos, tão magras condições de trabalho,
tanta evasão fiscal, tanta corrupção, tanta precariedade, tanta externalização, tanta falsa restruturação, tanto enriquecimento de tão poucos, tantos contratos com o Estado lesivos do
interesse público? Onde para a ética empresarial?
2022.02.09 – Louro de Carvalho
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