quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Da ética dos mínimos à excelência na empresa

 

 

As empresas podem escolher cumprir apenas aquilo a que são obrigadas, mas que as que optam por esta estratégia, não passam da mediocridade. A vai mais fácil para a garantia do lucro imediato é a da má atuação, mas é pela vontade genuína de fazer bem e o bem que se vai mais longe.

Tudo isto vem na linha do que defendeu Domènec Melé, renomado especialista mundial em Ética Empresarial e responsável pela sua investigação e lecionação no IESE-Business School, Navarra, num seminário organizado pela AESE-Business School, Lisboa, em fevereiro de 2016.

Como a ética continua a ser objeto mais de teoria que de prática efetiva, há que revisitar os seus fundamentos, os caminhos percorridos e as falhas subsistentes na sua aplicação por parte das empresas, sejam pequenas, médias, grandes ou gigantes, as quais, mais vezes que seria desejável, continuam a ser notícia por más razões.

O predito especialista abordou dois temas: “Ética para uma boa gestão de empresas” e a “Ética na organização e no trato com as pessoas”, enquanto dimensão intrínseca de qualquer tomada de decisão na medida em que são as pessoas que por ela são afetadas.

De vez em quando, emerge um interesse renovado no atinente à ética empresarial. Mas, em termos de evolução, o movimento pela ética empresarial pode ser compartimentado em décadas.

A pressão social, na década de 70 do século XX, o caso da “Lockheed”, empresa aerospacial envolvida em casos graves de corrupção que atingiram vários países como o Japão, a Alemanha, a Itália e a Holanda, e a ascensão do movimento dos direitos civis e dos consumidores marcaram o início dum interesse mais amplo pela ética das empresas. Porém, só nos anos 80 a disciplina se converteu num movimento de peso, com um impulso genuíno no mundo académico e empresarial, que viria a cimentar-se mais na década de 90 e inícios dos anos 2000, com os escândalos da consultora Arthur Andersen, da WorldCom, da Enron, entre outros, que originaram um interesse crescente pelas boas práticas e pelas questões éticas do governo corporativo.

Vieram, depois, os escândalos da banca americana e a consequente crise financeira e económica que abalou o mundo tal como o conhecíamos e com impacto direto na vida de milhões de pessoas e nas economias nacionais e regionais. Ainda na década de 90, mas com expressão mais vincada desde o início do novo século, as empresas começam a introduzir práticas corporativas estribadas em códigos de conduta e na formação em ética empresarial; e os valores ganharam notoriedade com a assunção da responsabilidade social das empresas, os movimentos de sustentabilidade e uma visão holística da noção “multi-stakeholders” a que as organizações devem prestar atenção e contas, apesar de, não raro, a questão ser tratada mais como “retórica do que como gramática”.

Para Melé, já muitas empresas começam a perceber que a atividade económica tem uma dimensão ética e compreendem que um comportamento ético e responsável não é alheio aos resultados, visto que produz aceitação social e gera confiança. Além disso, estes e outros fatores influenciam o desempenho económico da empresa a médio e longo prazo. Todavia, as empresas que seguem a tendência economicista podem aceitar os mínimos éticos ou por imposição legal ou por pressão da opinião pública, aumentando as exigências de ética com a perceção da corrupção. É certo que os escândalos empresariais de grande envergadura têm influenciado a correção de desvios éticos, mas há já muitas empresas que se esforçam por ter boa reputação ou o fazem devido a um elevado sentido de responsabilidade.

Como a tendência para integrar a ética na eficiência da empresa é fruto do desenvolvimento dos tempos, vivemos atualmente a era em que a gestão é muito baseada na missão da empresa, que tem de ser congruente com o bem comum da sociedade e de todos os seus stakeholders. Para lá das questões de reputação e boa imagem, as empresas sabem que são cada vez mais escrutinadas e que têm de obedecer a regras e normas que visam o seu bom comportamento.

Melé não está seguro da eficácia dos mecanismos criados para as empresas se manterem na linha, apesar de considerar que rankings, certificações e relatórios ajudarão a melhorar certos aspetos a que anteriormente não se dava a devida atenção. Todavia, o risco está em reduzir a ética ao mensurável, mas, antes ou agora, sempre houve empresas éticas por convicção e que não precisam de nenhum código ou de escrutínio externo para assim se manterem.

Como tudo, também o cumprimento da ética pode ser hierarquizado, sendo opção cumprir aquilo a que se é obrigado, o que já é aceitável, ou ir mais longe na qualidade da ética.

O planeamento de mínimos (ou mero compliance) consiste, entre outras regras básicas, em cumprir os contratos legítimos; respeitar as pessoas e os seus direitos; não explorar, maltratar ou manipular; não subornar ou aceitar subornos; atuar com transparência; evitar conflitos de interesse; não fugir ao pagamento de impostos; não abusar do poder em proveito próprio. Em termos de implicações para as empresas que não têm pretensões de ir além da mediocridade, o seu planeamento não postula mais que o cumprimento dos princípios e normas, que se baseiem em códigos de conduta e em comités ou que, na prática, apostem numa formação baseada apenas no evitar do que é proibido e na mera resolução de problemas.

No entanto, muitas empresas já investiram no aumento qualitativo dos seus níveis de ética. As empresas que buscam a excelência ética atuam no mercado em atitude de serviço, visando assegurar as necessidades dos demais e a tarefa de se colocar no lugar do outro; alteram a lógica de intercâmbio (dar para receber em troca), substituindo-a pela lógica da gratuitidade (dar sem esperar nada em troca); promovem a formação, participação e desenvolvimento dos demais; desenham organizações que respeitam a iniciativa e a responsabilidade; desenvolvem a sabedoria prática e as demais virtudes para decidirem o que é melhor e não só o que lhes é mais útil e economicamente favorável e promovem culturas éticas com especial enfoque na justiça, verdade, ajuda reciproca e cooperação, com vista a alcançar o bem para toda a empresa.

No respeitante ao panorama geral do ambiente empresarial da atualidade, ao desenvolvimento para lá dos mínimos e, sobretudo, às multinacionais, Melé sustenta que o problema reside na condição de multinacional e de as empresas estarem, por isso, submetidas a diversas legislações. Algumas multinacionais e outras empresas são objeto de muitas críticas por abusos cometidos contra populações indígenas, por falta de sensibilidade no concernente ao meio ambiente ou por ausência de respeito pelos direitos humanos, bem como por capturarem os Estados ou os eclipsarem no meio dos interesses particulares, fugirem aos impostos pela injustificada falência, deslocalização de sedes e unidades de produção e pela criação de fundações e empresas-fantasma. A ONU tem tomado medidas sobre estes casos, embora ao nível de recomendações e de adesões e participações voluntárias, sucedendo o mesmo com algumas associações empresariais que acordaram certas práticas éticas. Entretanto, há multinacionais que fazem bem as coisas e aplicam, de forma regular, as normas éticas.

O planeamento que busca a maior qualidade ética inclui os mesmos princípios e normas comuns, mas tem por objetivo a excelência, concretizada em valores e virtudes desejadas, sendo de crucial importância o exemplo dos líderes e demais executivos de topo, que devem evitar não só o que é proibido, mas tentar o melhor possível, promovendo melhorias contínuas na organização.

Evocando o escândalo da Volkswagen – multinacional de cultura de ética alegadamente bem desenvolvida – Melé observou que, apesar de então não se conhecerem bem as causas, é possível que a pressão para colocar rapidamente no mercado um modelo, a par de dificuldades técnicas, tenha induzido engenheiros a adotarem o mecanismo que, de imediato, causou a fraude, adotando a solução mais fácil, ainda que enganosa. Na manipulação dos testes de emissões poluentes, o que falhou foi uma boa integração da ética individual com a ética institucional. De facto, com uma forte cultura ética e com um sistema eficaz de denúncia interna, podia ter sido evitada a fraude. Se a causa não esteve no topo da organização, poderá ter havido choque entre a consciência moral de algumas pessoas e a pressão para se alcançarem determinadas metas.

Neste mundo competitivo é natural que abundem os dilemas éticos. E é na complexa escolha entre o ético e o lucrativo que as empresas falham, seja pela pressão do tempo e dos resultados, seja por mera ambição. Todavia, há sempre a possibilidade de se procurarem soluções alternativas e criativas. E, nesse campo, as empresas podem marcar a diferença pela motivação para se alcançar a excelência: a imaginação moral procura soluções que vão além do dilema ‘ou atuamos mal e ganhamos dinheiro ou atuamos bem e aumentamos os custos’. Em caso de conflito, têm de ser prioritárias as exigências éticas face aos custos, sobretudo se estão em risco vidas humanas. Mas com imaginação moral (desejo de agir bem) podem-se encontrar soluções éticas e simultaneamente rentáveis. A motivação ética consiste em procurar estas soluções.

Na Antiguidade Clássica, Sócrates, Platão e Aristóteles concentraram-se nas virtudes e na premissa de que “a ética busca a excelência humana”; na Idade Média, em particular, pelas mãos de Tomás de Aquino, além das virtudes, contempla-se a lei moral; com a modernidade, começam a desenvolver-se princípios e normas para determinar que ações são eticamente aceitáveis ou não, contribuindo Kant para esta determinação; e, na pós-modernidade, onde se inclui o século XX, a ética é definida como um conjunto de impulsos morais e valores, enfatizando-se situações particulares e a responsabilidade de acordo com situações concretas e através de procedimentos que visam o consenso. Atualmente, chegámos a uma visão integral da ética, de virtudes e normas, mas essencialmente, de valores, estes mais consentâneos com o respeito pelas pessoas e sob a máxima “trata os outros como gostarias que te tratassem a ti”.

É o enfoque na pessoa que assume prioridade, quer na dimensão individual, quer na social, pois é a dignidade humana, os direitos humanos, a benevolência e o bem comum das comunidades que promovem o desenvolvimento humano. Assim, as empresas devem assumir como centro da sua ética as pessoas e procurar uma integração consistente entre bens, princípios éticos e virtudes. O mesmo sucede na tomada de decisão, de que a ética é uma dimensão intrínseca, porque afeta as pessoas, e muito importante, pelo valor determinante do caráter do líder, o qual se deve pautar pela honradez, generosidade, justiça e lealdade. Com efeito, a decisão, que inclui a moralidade de meios e fins, é da responsabilidade de quem a toma, bem como o são as suas consequências.

No atinente à “ética na organização e ao trato das pessoas”, Melé deu uma definição de empresa diferente do habitual. A empresa tenta adaptar-se ao ambiente que a rodeia, mas, às vezes, por via da criatividade e da inovação, sofre mutações. A empresa é muito mais que um organismo. Podendo entender-se como um mecanismo ou sistema produtivo para criar riqueza, é muito mais que um mecanismo. Estabelece contratos, mas não é só um conjunto de contratos. Nela coexistem interesses diversos, mas não é mero centro de coordenação de interesses. A empresa é muito mais que tudo isto. Uma aproximação realista leva a empresa a ser vista como uma associação de pessoas, com uma unidade duradoura, formada por vínculos distintos (contratuais, afetivos, morais) e envolvida numa ação comum, para atingir um propósito partilhado, mesmo que as motivações individuais dos que formam tal comunidade possam ser mais ou menos diversificadas. Enfim, a empresa “é uma comunidade humana e, como tal, formada por pessoas”.

Melé recordou o devir da visão das pessoas na empresa: desde a mão-de-obra, em que os obreiros eram auxiliares das máquinas, à noção de fator produtivo como contributo para o trabalho e encarado como custos laborais, até à expressão recursos humanos, de Peter Drucker, vigente em muitas empresas e que tem em conta o contributo destes para os lucros. Porém, hoje devia ser a visão ético-humanista a imperar considerando as pessoas exatamente como pessoas.

Tendo por mote o facto de a qualidade humana fazer, ou dever fazer, parte da cultura da empresa, Melé chegou aos seis níveis de “trato” seguintes, em crescendo qualitativo: exploração, com o tratamento conferido às pessoas pautado pela opressão e pelo despotismo; maus tratosem que são frequentes as ofensas e as injúrias; indiferença, pela qual as pessoas são tratadas como meros recursos; respeitosendo os trabalhadores tratados de forma justa e atenciosa; cuidado, em que é real a oferta de ajuda a problemas alheios; e desenvolvimento, pelo qual a empresa tem por objetivo favorecer o progresso pessoal de todos os seus colaboradores.

No seguimento da frase de Kant “as coisas têm preço, as pessoas têm dignidade”, Melé admite que já haja relativamente poucas empresas em que abundem os maus tratos sobre os trabalhadores, mas que há muitas outras onde grassa a indiferença, que ocorre por as pessoas serem vistas apenas como recursos produtivos. Em muitas, já se testemunha a existência de trato respeitoso e, em alguns casos, atenção aos problemas dos empregados e seus legítimos interesses. Porém, são ainda poucas as que se preocupam a sério com o facto de os empregados poderem desenvolver-se pessoal e socialmente trabalhando na empresa.

E, porque o último dos níveis elencados deverá ser o almejado, impõe-se uma peculiar atenção à noção de subsidiariedade, um dos fins últimos que a empresa deverá pretender atingir. Trata-se de conferir iniciativa e responsabilidade, incluindo capacidade de decisão, contando com o apoio dos colaboradores na perspetiva da visão do bem da empresa no seu conjunto. Neste sentido de responsabilidade, cultiva-se o respeito e apreço pela liberdade, rendibilizam-se os talentos das pessoas, promove-se o seu maior desenvolvimento e assume-se o papel social da empresa.

Enfim, uma boa política de ética empresarial redundará nos seguintes resultados: humanização da empresa; incremento da confiança; diminuição dos custos de transação; desenvolvimento profissional; promoção da lealdade; favorecimento da aceitação social; reforço da preocupação pelos resultados; fomento da imaginação moral; reforço dos hábitos morais, a nível pessoal e social; desenvolvimento de culturas organizacionais éticas; e fortalecimento da sociedade.

Face a estes pressupostos, como é possível termos tantas empresas em ténue laboração, tão pouca produtividade, salários tão baixos, tão magras condições de trabalho, tanta evasão fiscal, tanta corrupção, tanta precariedade, tanta externalização, tanta falsa restruturação, tanto enriquecimento de tão poucos, tantos contratos com o Estado lesivos do interesse público? Onde para a ética empresarial?   

2022.02.09 – Louro de Carvalho

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