terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Ética aplicada, modelos e âmbitos de aplicação

 

 

A ética é requisito basilar para a educação da pessoa, para a relação social, para a lei, para a atividade política qua tali e para o estudo do direito e administração da justiça.

O termo “ética” (éthos) vem dos vocábulos gregos [~,Ηθος] – morada, maneira de ser, caráter – e [,´Εθος] – uso, costume, hábito – e corresponde-lhe o latino mos (no plural mores – costumes, donde se derivou a palavra moral). O primeiro vocábulo, escrito com eta (ê longo), é realidade da ordem dos fins (morar bem), de valores imprescindíveis, como a defesa da vida, com princípios fundadores de ação, como “dar de comer a quem tem fome” ou “socorrer os feridos”. Para Sócrates, a ética terá de responder à questão como deve o homem agir e proceder; para Aristóteles, o centro da ética é a felicidade como autonomia e autorrealização do cidadão na dimensão pessoal e social, cuja concretização postula as virtudes (hábitos positivos) e os estatutos jurídicos. E é à luz do “ethopoiós” [,Ηθοποιοóς] – educador dos costumes ou do caráter – que se ligam habitualmente à ética as palavras “personalidade” e “caráter”, passíveis de educação nas vertentes de construção e progressão. Para tanto, é necessária a elucidação, a explicação, pelo que se fala da ética como a arte de formar ou como conformidade com a oratória ou doutrina explicada. O segundo vocábulo, grafado com épsilon breve) abarca os meios ordenados para aquele fim (bem, felicidade ou autorrealização) e que significam os costumes ou conjunto de valores e de hábitos consagrados pela tradição cultural de um povo. Neste sentido o termo aproxima-se de [,´Εθνος] – povo, raça, nação. Neste sentido, a ética tem sido entendida como moral – os costumes e valores fundadores de uma determinada cultura – ou, se quisermos, como alguma das várias morais, já que há vários povos e várias culturas.

Em Filosofia, “ética” significa o bom para o indivíduo e para a sociedade e o seu estudo contribui para estabelecer a natureza de deveres no relacionamento indivíduo/sociedade. É a ciência ou arte descritiva e normativa referida à conduta humana. Contrapõe-se-lhe a “moral”, que é o complexo de princípios, normas, preceitos, costumes, valores que norteiam o comportamento do indivíduo no seu grupo social. A ética não tem como tarefa só o esclarecimento e a fundamentação do fenómeno da moralidade, mas também a aplicação das suas descobertas aos diferentes âmbitos da vida social. Assim, a par da tarefa de fundamentação há a da aplicação, ou seja, averiguar como os princípios ajudam a orientar os diversos tipos de atividade, não bastando refletir sobre como se aplicam os princípios em concreto, mas sobretudo levar em conta a especificidade de cada atividade com as suas exigências morais e valores. Importa, pois, averiguar os bens internos que cada tipo de atividade traz à sociedade e os valores e hábitos a incorporar para os atingir.

Para tanto, devem os eticistas trabalhar interdisciplinarmente com os especialistas de cada área e ampliar a visão ética para a moral cívica que rege o tipo de sociedade em que vivemos.

Há três modelos possíveis: o dedutivo; o indutivo; a aplicação do princípio procedimental da ética do discurso; e a ética aplicada como hermenêutica crítica.

O primeiro consiste em aplicar qualquer tipo de princípios morais disponíveis aos casos concretos, por estes serem uma particularização dos princípios gerais. Privilegia-se a teoria, a dedução e a busca da certeza moral. É o método do silogismo prático cuja premissa maior é a lei, a menor o caso concreto e a conclusão o juízo moral da consciência. O problema é ter de se contar com princípios materiais universais, o que nenhuma ética oferece e quando as situações concretas não são mera particularização de princípios universais.

A proposta indutiva carateriza-se pelo procedimento indutivo. A. Jonsen e St. Toulmin, na obra “The abuse of casuistry”, querem substituir os princípios por máximas, tidas por critérios sábios e prudentes de ação prática com que a maioria dos especialistas concorda, pois as máximas resultam da sabedoria prática e valem para decidir mais que os pretensos princípios universais. É um método de aplicação retórico e prático (retórica é a arte de buscar argumentos para juízos prováveis sobre situações concretas). Os conflitos são solucionados, não com a aplicação de axiomas formulados a priori, mas pelo critério convergente de pessoas de bom senso moral, expressos em máximas de atuação. Os óbices ao modelo serão: o facto de que não é certo de que não haja nenhum princípio universal, pois, não há um princípio material universal, mas existe o princípio procedimental, universalizável; e a dúvida sobre o que fazer quando as máximas práticas entram em conflito, mostrando que não é verdade que não haja nenhum princípio universal, pois alguns são necessários para sair do impasse.

Depois, a aplicação do princípio procedimental da ética do discurso identifica-se com a ética do discurso de K.O. Appel e J. Habermas e oferece um fundamento moral que transforma o princípio formal kantiano da autonomia da vontade (entendido individualmente) no princípio procedimental dialógico: “não se pode renunciar a nenhum interlocutor e a nenhuma das suas contribuições virtuais para a discussão”. Nesta ótica, Appel reconstrói os conceitos de pessoa e igualdade. A pessoa é interlocutor válido reconhecido por os todos participantes da comunidade de falantes; a igualdade significa que nenhum interlocutor pode ser excluído da argumentação quando se discute algo que o afete. Appel e Habermas concordam que a ética tem a tarefa de fundamentar dimensão normativa da moral. Mas Appel difere de Habermas ao distinguir duas partes na ética do discurso. Uma trata da fundamentação racional da correção das normas; a outra visa desenhar um quadro racional de princípios que permitem aplicar na vida cotidiana os princípios descobertos na primeira. A primeira pauta-se pela ideia de fundamentação; e a segunda, pela de responsabilidade. Uma coisa é descobrir o princípio ético ideal e outra aplicá-lo em concreto. Assim, a máxima ideal seria “Age sempre como se fosses membro de uma comunidade ideal de comunicação”, que, à luz da segunda parte, se transforma em “Age sempre de tal modo que a tua ação se encaminhe para assentar as bases, na medida do possível, de uma comunidade ideal de comunicação”.

Appel insere a ética da responsabilidade na do discurso, fazendo uso da racionalidade estratégica com a meta da conservação do sujeito falante e de quantos dele dependem na comunidade de comunicação e a do estabelecimento de bases materiais e culturais para atuar comunicativa e dialogicamente na solução dos conflitos morais. E a ética do discurso, acusada de irrealista pela sua fundamentação no ideal da comunidade comunicativa adquire mais realismo pela introdução da racionalidade estratégica que tenta criar as condições materiais para que esta comunidade seja possível. Todavia, o uso de estratégias não é fator necessário em todos os âmbitos como, por exemplo, o da bioética. Nos campos onde a estratégia é relevante, por exemplo, na empresa, ela não pode ser o critério único, pois há os valores que orientam esta atividade específica. Ora, descoberto o princípio, é necessário criar o quadro para a aplicação ao caso concreto.  

Por fim, surge a proposta do modelo de ética aplicada como hermenêutica crítica (Adela Cortina), assente num quadro deontológico, não na dedução ou na indução, desfrutando da circularidade hermenêutica; não aplica princípios universais nem induz máximas práticas, mas visa descobrir, nos diferentes âmbitos da atividade, a modulação peculiar do princípio comum, pois cada campo da atividade humana tem a sua especificidade, obrigando a postura interdisciplinar. Não há alguém com visão sistémica que possa oferecer sozinho a orientação. É preciso consultar os especialistas de cada área para ver quais os princípios de alcance médio e os valores da respetiva atividade. O princípio procedimental da ética do discurso é uma orientação a complementar com outras tradições éticas, considerando os diferentes modelos de ética e a ética do discurso como coordenadora por oferecer o modo de argumentar eticamente pela ação comunicativa.

É a ética das atividades sociais, interessando saber como descobrir em cada campo de atividade os valores e as máximas exigidos, sendo necessário superar a perspetiva da ética individual, pois a boa vontade individual pode trazer consequências nefastas para coletividade. Por isso, importa mais a inteligência que a vontade e é necessário assumir a lógica da atividade coletiva, ou seja, a moralidade das práticas desenvolvidas nas instituições e organizações. Não se trata só de refletir eticamente sobre as instituições e organizações, pois estas são cristalizações de ações humanas, mas sobretudo de refletir nas práticas institucionais e organizativas, examinando as atividades cooperativas e sociais das pessoas. Para desenvolver moralmente uma atividade na sociedade, é de atender a 5 pontos de referência:

- As metas sociais que dão sentido a esse tipo de atividade identificam-se com os bens internos deste campo de atividade e conferem sentido e legitimidade social às ações. Portanto, as diferentes atividades sociais caraterizam-se pelos bens que se obtêm por meio delas, pelos valores que inspiram a busca dos fins e pelas virtudes que apontam as atitudes necessárias na busca dos bens. As diferentes éticas averiguam que valores e virtudes permitem obter os bens alcançáveis com aquela atividade social. Assim, o bem interno buscado na atividade do profissional da saúde é o benefício do paciente, pelo que é de questionar valores e virtudes que pautam a busca desse bem.

- Com vista aos bens internos de cada atividade é de contar com mecanismos específicos da sociedade. Assim, para atingir a meta social ou produzir o bem da empresa, a busca do lucro é meio com legitimidade social. Mas, se o meio se torna fim, a atividade fica desmoralizada.

- A legitimidade da atividade social deve ater-se às leis vigentes que definem as regras do jogo na sociedade. Mas a legalidade não esgota a moralidade porque a legislação, que é dinâmica, necessita de interpretação e nunca logra submeter uma atividade totalmente à sua jurisdição.

- Por isso, há que ter como referência também a ética civil ou a consciência moral cívica, atingida naquela sociedade, identificando-se com os valores que os cidadãos duma sociedade pluralista já compartilham, independentemente das suas conceções morais e religiosas. Trata-se de levar a sério os valores da liberdade, igualdade e solidariedade.

- Não basta o nível da moralidade, pois interesses espúrios podem difundir uma moralidade difusa que censura, por imorais, ações inspiradas na justiça, direitos humanos e dignidade humana. Por isso, urge a moral crítica que aponte os valores e os direitos a respeitar de forma racional.

- No processo de tomada de decisões nos casos concretos, é indispensável considerar os seguintes aspetos: determinar o fim específico ou o bem que dá sentido e legitimidade social à atividade; averiguar dos meios adequados para produzir esse bem na sociedade; indagar que virtudes e valores é preciso incorporar para alcançar esse bem; ver que valores da moral cívica da sociedade afetam o exercício da atividade; averiguar que valores de justiça, próprios da moral crítica universal, permitem questionar normas vigentes; e deixar a tomada de decisão para os afetados por esse processo.

Os âmbitos mais desenvolvidos e promissores da ética aplicada são os seguintes:

- A bioética. Surgiu como macroética que enfoca a ética a partir da vida ameaçada. Mas, ao definir o seu âmbito de abrangência, reduziu-se às questões conexas com as ciências da saúde e as biotecnologias. O seu núcleo são os princípios da autonomia, beneficência e justiça do Relatório Belmont (1978, nos EUA), princípios válidos, mas a fundamentar por meio dum conceito de pessoa, como interlocutor válido, para apreciar plenamente a sua validade intersubjetiva.

- A genética (gen-ética). Os avanços da engenharia genética trazem esperanças e receios. Por ela a humanidade pode alterar o património genético das gerações futuras, o que levanta questões éticas que não se podem evitar – Até onde vão os processos de mudança? Quais são os fins últimos das manipulações genéticas? Quem está legitimado a tomar decisões nesses assuntos? – cuja  resposta se deve situar no contexto da racionalidade ética no terreno do diálogo, interdisciplinaridade e busca cooperativa de respostas para os desafios éticos.

- A ética da economia e da empresa. Há que distinguir entre ética económica, que reflete sobre os diferentes sistemas económicos globalmente considerados, e ética empresarial, que tece considerações éticas sobre a gestão ou direção dos negócios e das empresas. Na primeira, existiu um divórcio entre ética e economia, como se fosse impossível conciliar a eficiência económica com os valores da equidade e justiça. Ora, se cada setor precisa de definir o fim e o sentido da sua atividade, a sua contribuição para a sociedade, então a economia não pode ser moralmente neutra. Está a difundir-se a ética dos negócios para restaurar o valor da confiança que as empresas não podem perder, pelo que se introduziu o conceito de responsabilidade social das empresas.

- A ética ecológica. Por um lado, há consenso sobre a necessidade de adotar um modelo de desenvolvimento sustentável e todo tipo de medidas eficazes para fazer frente aos diferentes sinais da crise ambiental e, por outro, as conceções éticas discordam quanto às razões por que é preciso levar a sério os problemas ecológicos. As éticas antropocêntricas defendem atitudes de conservação e preservação da natureza, a pensar nos interesses das pessoas (gerações futuras); e as éticas biocêntricas consideram moralmente relevantes os interesses de todos os seres vivos, não só dos humanos. O problema ecológico não é técnico, mas moral e cultural. Ademais, a questão fulcral dos problemas ecológicos é a injustiça económica que padece a maioria da humanidade.

- A ética da educação moral democrática. Os educadores preocupam-se com as habilidades técnicas e sociais dos alunos, mas é impossível construir uma sociedade democrática contando só com indivíduos capacitados técnica e socialmente, porque tal sociedade tem de se fundamentar em valores, como autonomia e solidariedade, para os quais a racionalidade instrumental é cega. Por isso, o processo educativo não pode pautar-se pela racionalidade instrumental que busca a aquisição de puras habilidades técnicas e aponta para um modelo de pessoa que busca só o seu bem-estar. É necessário buscar a formação de pessoas autónomas com desejo de autorrealização e capacidade para a interação solidária. Assim, a educação deve suscitar nos jovens a competência para a autonomia e a solidariedade, bases da sociedade democrática. Isso só é possível através de métodos dialógicos de educação moral que superam o dogmatismo dos métodos doutrinários e estão para lá do relativismo dos métodos do mero esclarecimento dos valores.

2022.02.8 – Louro de Carvalho

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