domingo, 6 de fevereiro de 2022

Abstenção eleitoral: estado da situação

 

Conspecto geral e pressupostos epistemológicos

Em 1976 rondou os 35%, agora foi de cerca de 42%, mas já teve taxas bem maiores.

Nos termos constitucionais, todos os cidadãos maiores de 18 anos que não incorram em incompatibilidades expressamente consignadas na lei, gozam de elegibilidade ativa, ou seja, não podem ser impedidos de votar, constituindo o voto um direito fundamental e um dever cívico.

A não comparência física ou virtual (voto antecipado na mobilidade ou voto recolhido de cidadãos confinados) na assembleia de voto compagina o facto da abstenção. E, quando ela atinge patamares demasiado elevados, há perda de qualidade democrática, perda imputável à incompetência dos governantes e que tenta justificar a negação do pilar cívico da democracia representativa: o voto. A grande consequência dessa perda é levar a que os políticos, menos pressionados pela exigência cidadã, entrem em processo governativo autocrático, pois os cidadãos, os verdadeiros soberanos da democracia, autodesresponsabilizados, fragmentam-se em preocupações individuais e grupais, as instâncias do Estado etéreas e até hostis. Trata-se de processo perigoso para a democracia por tender crescer assumindo a forma de espiral desvinculativa.

Pouco importa atribuir a abstenção à fraca capacidade da governança que afasta os cidadãos ou ao desinteresse dos cidadãos que fomenta a má prestação política. O importante é valorizar o papel fundamental do cidadão na realização da higiene democrática, quer opinando soberano no ato eleitoral, quer permanecendo vigilante durante o mandato.

A autocentração dos representantes amplia a desvinculação das pessoas e a omissão cívica conduz à soberba política, por falta de poderes que lhe inibam as ações desviantes.

O termo “desvinculação” exprime bem a ideia, pois, sendo vínculo a capacidade psicológica de nutrirmos simpatia por outrem para nos sentirmos responsáveis pelo que lhe acontece, ele cria-se entre pais e filhos, amigos, colegas, profissionais e clientes, vizinhos, enfim, entre seres humanos. Esboroando-se esse laço, destroem-se os travões emocionais que evitam a indiferença absoluta, a instrumentalização do outro, a desconfiança ou a violência. Com efeito, um dos esquemas psicológicos da guerra é a desumanização do oponente, imaginado como monstro doentio a eliminar. E isso pode ocorrer com a desvinculação entre o cidadão e as instituições políticas. Uns abstêm-se, pois ignoram ou odeiam o político, por corrupto, incompetente, snobe; e os governantes desprezam-nos, por básicos, ilógicos, insignificantes. (É o reino da indiferença e desprezo).

Por outro lado, o político embrenha-se no aparelhismo partidário e revela falta de qualidades reais de liderança, contentando-se em vender slogans para ter imagem mediática aprazível e em jogar nos bastidores com o seu pessoal de mão dentro do aparelho partidário. E o cidadão ou se encanta com o lado promocional do produto ou se abespinha com o charlatanismo.

A política deixa de estar no horizonte vivencial do cidadão e a abstenção sobe. E a governação, exercida deste modo, sofrerá da erosão mediática típica de qualquer outro produto comercial. O povo cansa-se e anseia por tecnocratas, esquecendo que a complexidade humana exige sempre opções sociais e culturais. A ilusão tecnocrática, vendida pelos totalitarismos do século XX, aparentando cientificidade e independência, contém preconceitos e ideais indiscriminadamente aplicados à sociedade. As falhas verificadas são da responsabilidade da realidade, desobediente à razão cega da ciência. Porém, em democracia, a realidade são as pessoas.

A espiral desvinculativa assume volume cada vez maior e instala-se a tirania democrática, onde os eleitos agem como vencedores omnipotentes, rejeitando qualquer compromisso, pois têm a verdade absoluta consigo, pelo que desprezam a população e as instituições democráticas que inibem o exercício do poder. Emerge a demagogia e o populismo e o poder do voto é manipulado para forçar um regime político incontinente, sem as limitações do Estado de Direito. É o império da lei do mais forte, embora os politólogos aleguem que “a lei não deve refrear a vontade do povo”, mas eles próprios encaram o povo apenas enquanto massa a manipular.

Apesar de a abstenção subir exponencialmente, os vencedores fingem que a sua legitimidade é ilimitada alegando que o resto são pormenores formais. E o sistema, sem deixar formalmente a democraticidade, corre o risco do colapso numa dissolução institucional, assomando a ditadura disfarçada no que se pode entender como formalidade sem substância. À fraca expressão da vontade do povo soberano corresponderá a ocupação vazio do nicho cidadão pelos mais fortes – darwinismo social que redundará na diminuição da liberdade, da igualdade e da fraternidade.

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O que revelam alguns estudos

Um estudo do Parlamento Europeu (PE) de 2012, através da Direcção-Geral da Comunicação, unidade de acompanhamento da opinião pública, que analisava a abstenção e os demais comportamentos eleitorais nas eleições europeias de 2009, confirma que a abstenção na Europa é mais alta na faixa etária dos 18 aos 24 anos (70,9%) e mais baixa acima dos 54 (50%). Indica também que os níveis mais altos de abstenção (60,1%) se topam entre quem estudou entre os 16 e os 19 anos de idade e os mais baixos (48,1%) entre quem estudou mais de 20 anos, havendo, assim, uma ligação entre maiores percursos académicos e maior participação eleitoral. Além disso, a maior razão para não votar (28%) vem da “falta de confiança na política em geral“, com 17% a referir que “não se interessa com política”, e com idêntica percentagem a dizer que “o voto não tem consequência”. Outras justificações são as férias, o estar longe de casa e a muita ocupação.

No estudo “Abstenção e Participação Eleitoral em Portugal” (de João Cancela & Marta Vicente), lê-se que “o governo representativo está em crise” e “com a erosão da participação eleitoral, os governos continuam a ser governos, mas representam cada vez menos cidadãos“.

As eleições é que legitimam os regimes democráticos e se grande parte da população (sobretudo se for superior a metade da população com capacidade eleitoral) não votar, teremos um problema de legitimação da governação e, de facto, quando a percentagem é muito alta, estamos perante um sinal claro de que a maioria da população quer a mudança no regime democrático. Os níveis de grande participação nas eleições fundadoras da nossa democracia foram, à época, interpretados como um  sinal de clara adesão dos cidadãos ao regime. E essas eleições serviram para estabelecer em sólidos alicerces a democracia, mercê duma forte (e jamais superada) taxa de participação eleitoral: a muito baixa abstenção na eleição para a Assembleia Constituinte de 1975 indicou que o regime democrático colhia amplo apoio da população e serviu para legitimar o regime e repelir qualquer desvio autoritário que poderia ter surgido na fase da reimplantação da democracia. Mas o inverso também é verdadeiro: as baixas taxas de participação atuais estão a pôr em causa a legitimidade dos eleitos em governar e realizar eficientemente os programas de governo nacionais ou locais.

O tema da utilidade ou economia do voto joga também papel importante nos níveis de abstenção: quando os eleitores – tidos como entidade coletiva – percecionam a vitória antecipada duma lista ou candidato, a abstenção é mais alta e ocorre o oposto quando a maioria crê que o resultado será marginal ou renhidamente disputado.

A distância e a simultaneidade dos atos eleitorais é outro fator que tem contribuído para a taxa de abstenção e é localizável na distância física (local das assembleias e sedes físicas da representação política) entre eleitores e eleitos. Isso explica a grande participação nas autárquicas e a fraca nas europeias. Em escala europeia, estas eleições são vistas pela maioria como de “segunda ordem” (com exceção da Bélgica, com o voto obrigatório, e da Suécia, com o índice de participação a subir). A explicação do fenómeno encontra as suas raízes no distanciamento físico e operacional, com a observação da dificuldade de contacto com as instituições europeias, com a inacessibilidade de alguns eurodeputados, os formalismos vazios e ineficientes das petições ao PE e a quase impossível acessibilidade (em números de assinaturas) de mecanismos como as Iniciativas de Cidadania Europeias.

Todavia, nas primeiras eleições em Portugal para o PE, em 1987, a taxa de participação foi de 72%. Mas é de lembrar que foram realizadas em simultâneo com as legislativas. Seja como for, o valor da participação, a decair desde então, pode indicar ou um alheamento atual dos cidadãos em relação ao processo de integração europeia (Portugal nunca referendou o processo de integração), ou a perceção de excessivo distanciamento entre as instituições e a vida quotidiana ou a sugestão de concentrar no mesmo dia várias eleições, o que reduziria a abstenção. João Cancela, um dos autores do citado estudo, regista que até nas eleições mais participadas de todas, as autárquicas, se registam desde a década de 1970 descidas nos níveis de participação em quase todos os países europeus e que Portugal não é exceção. Todavia, o estudo confirma que, pelo menos neste tipo de sufrágio, o aumento português da abstenção está dentro dos padrões europeus, com exceção de Espanha, onde a participação é muito elevada (da ordem dos 80%).

Alguns autores chamam “abstenção técnica” à parcela da abstenção que é exagerada por efeito da presença de inscrições espúrias no recenseamento eleitoral; e abstenção “não-técnica” ou “real” à associada, não aos que não podiam votar, mas aos que, podendo, optaram por não o fazer. Uma forma clássica de identificar o valor da abstenção técnica passa por ligar a taxa de participação à taxa de população em idade de voto. Com este mecanismo, estimava-se, em 2002, que este tipo de abstenção tinha atingido os números mais altos em meados da década de 1990 (quando o número de recenseados ultrapassava em cerca de 20% à população em idade de voto). A atualização dos cadernos eleitorais em 1997 e a criação dum ficheiro central informatizado reduziu a taxa pela eliminação dos cadernos de muitos falecidos e de inscrições duplas, mas não resolveu totalmente o problema. Só desde 2008, a interoperabilidade entre o SIGRE (Sistema de Informação e Gestão do Recenseamento Eleitoral) e a plataforma de serviços do Cartão de Cidadão, com a consequente inscrição automática dos eleitores e a atualização imediata dos dados de recenseamento, fez cair significativamente a taxa de abstenção técnica. Contudo, isso levou à inscrição automática de não recenseados, o que provocou aumento do número de novas inscrições e, logo, da abstenção real.

Apesar de tudo, o problema da abstenção técnica não desapareceu. Um estudo de 2013, de Luís Humberto Teixeira e José António Bourdain, declarava que as legislativas de 2011 teriam um milhão de inscrições a mais nos cadernos eleitorais e os dados do IDEA (Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral) apontavam na mesma direção: comparando a população em idade de voto para as legislativas de 2015, o IDEA chegou à taxa de participação eleitoral real de 61,8%, ou seja, de 5 pontos acima dos 55,8% da taxa oficial. O problema subjacente à abstenção técnica localizar-se-á na emigração e na forma como a administração lida com esses eleitores. De facto, a saída definitiva do território nacional não implica alteração da residência associada à base de dados de identificação civil, o que leva pessoas emigradas a ter a sua inscrição no recenseamento eleitoral mesmo sem estarem já em condições de participarem nos sufrágios.

Diz-se que a abstenção é fenómeno corrente nas democracias consolidadas e que a sua força pode refletir certa aceitação dos cidadãos sobre a natureza do regime. Em democracia consolidada desde 1975, Portugal poderia encaixar nesta explicação. Só que o estudo de 2012 desmente tal interpretação. Portugal está abaixo da mediana europeia em todos os tipos de eleições. Isto significa que o aumento da abstenção é um fenómeno global, mas que há fatores em Portugal que acentuam a sua intensidade e isto embora o país não seja o caso mais grave na UE, já que países como Roménia e Eslovénia exibem quedas da participação eleitoral maiores.

O facto de a abstenção ter atingido percentagem consistente de metade do eleitorado merece a reflexão e ação por parte de todos. Contudo, não há mecanismos de estímulo que levem os partidos que, juntos, reúnem 2/3 dos deputados a alterar as leis eleitorais, que podiam reverter a situação e tal não é de esperar nos próximos tempos. A abstenção é fenómeno complexo cuja solução não se limita à revisão das leis eleitorais: quem opta por não participar nos sufrágios fá-lo por várias razões e, por vezes, acumula motivações de vária ordem, nem todas convergentes. Uns serão abstencionistas em qualquer quadro legal e quaisquer circunstâncias; outros deixarão de o ser se o acesso ao voto for mais fácil (por exemplo com o voto eletrónico e remoto) ou se surgir nova opção eleitoral (partido ou candidatos) mais compatível com a sua inclinação política.

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Súmula das causas da abstenção

- A convicção de que “o voto não muda nada”, no pensamento de Emma Goldman, segundo a qual, “se o voto mudasse alguma coisa, já o teriam tornado ilegal”, será uma recusa em votar com base ideológica não só por se crer que o voto é uma forma ineficaz de ação política, mas por o ato de votar ser encarado como forma de aceitação do regime político democrático liberal. Assim, votar implica aceitar o governo do candidato vencedor, mesmo discordando das suas políticas.

- A existência dum sentimento de não representação em nenhuma das opções de voto induz a convicção de que, seja qual for o resultado das eleições, haverá sempre o governo de um de dois partidos e que nenhum destes resolverá os problemas da população – “rotativismo democrático”.

- A desmobilização do voto pelo facto de as sondagens indicarem de forma consistente uma vitória folgada por parte do candidato favorito do eleitor faz crescer a abstenção.

- A crescente descredibilização da classe política devido à sucessão de escândalos relacionados com a política constitui outra justificação para o abstencionismo.

- O afastamento dos partidos das razões do descontentamento das populações e a distância entre eleitos e eleitores levarão a abstenção mais baixa em autárquicas que nas outras eleições.

- O nível de satisfação com a qualidade da democracia e a confiança generalizada nas instituições (eletivas e judiciais) também se prende com o da participação eleitoral, o que explica porque é que os níveis de participação nos países escandinavos tendem a ser superiores aos dos países do leste europeu e da Europa do sul, pois é lá que sobressai a boa governança.

- O nível socioeconómico parece relacionar-se muito com a abstenção eleitoral: quanto mais alto este for, maior tenderá a ser a taxa de participação eleitoral.

- A abstenção é tradicionalmente maior nos escalões etários sub-30 – fenómeno duradouro que resulta da perda de competitividade das eleições realizadas nas décadas de 1980 e 1990, embora não se deva estigmatizar os mais jovens por estes baixos níveis de participação eleitoral. Com efeito, a presença de jovens é muito ativa e participativa em muitas estruturas e muitos não têm filiação partidária, mas estão politizados. Participam em manifestações, petições (físicas ou online) ou em debates políticos (não necessariamente partidarizados) e em múltiplos fóruns online. Tudo se passa como se os jovens não reconhecessem o voto como a forma principal de participação política mas se empenhassem mais noutras formas não convencionais, de participação, mostrando disponibilidade para formas de participação pós-eleitorais ou para a democracia mais participativa que representativa – fenómeno que explica também o declínio das juventudes partidárias e da representatividade global dos partidos.

- A perda de relevância social dos sindicatos e partidos políticos é associada por alguns ao aumento da abstenção. Tidos desde o século XIX como principais representantes dos interesses das classes trabalhadoras, o declínio em número de trabalhadores sindicalizados e militantes levou à erosão da sua capacidade de influência e da sua força para mobilizar o eleitorado.

Se no contexto familiar ou do círculo de amigos existirem baixos níveis de participação eleitoral isso tenderá a tornar esse cidadão num abstencionista.

- A qualidade das campanhas eleitorais, com recurso à violência verbal, ataques de caráter, assim como debates com descontextualização, no domínio estritamente eleitoral tende a diminuir a participação, embora seja de frisar que a competitividade eleitoral funciona como fator, na maioria dos países europeus, para reduzir a abstenção, pelo que, existe uma perceção generalizada de que o resultado final será mais disputado, a abstenção cai.

- A abstenção pode ser moldada pelo protesto de militantes descontentes com coligações pré-eleitorais ou com a elaboração das listas de deputados ou com deputados que as compõem.

- Por fim, a “fulanização” da política partidária liga os níveis de apreciação dos líderes e os de abstenção, subalternizando a política geral, a ideologia ou aos programas eleitorais.

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Concluindo

É de salientar que, nas recentes eleições legislativas, a abstenção não técnica, mas real, ficou abaixo do 40%, já a soma da real e da técnica rondou os 42%, talvez por força da campanha, com a clareza de ideias de quem venceu, do empate técnico perfilado nas sondagens, da penalização de quem fez gorar o OE 2022 e da ascensão de partidos assistémicos. Goste-se ou não dos resultados, não é lícito a alguns observadores clamar que as eleições foram ganhas pela abstenção, pois não é de comparar a sua taxa com a do partido ganhador, mas com as dos votantes efetivos.

Não obstante, devem evitar-se todos os fatores da abstenção: melhorando as condições de acesso ao voto, bem como a clareza e combate das campanhas eleitorais que devem ser diversificadas e qualificadas, nos meios de comunicação social, nas redes sociais, no contacto pessoal, nas praças e ruas, nos salões (Os eleitores não querem ser bombardeados, mas querem ver os candidatos); britando o aparelhismo partidário na elaboração das listas; mantendo a proximidade com os eleitores, mas a benéfica; desenvolvendo as boas práticas da governação; combatendo a corrupção e outros anticorpos como o compadrio, o amiguismo; e explicando o não cumprimento de objetivos.

Não sei se vale a pena mexer nos mecanismos de representação: se muitos votos se perdem por não convertidos em mandatos, com círculos eleitorais mais pequenos a representação pode ficar inquinada, pois a proximidade entre eleitor e eleito pode criar dependências e mesmo caciquismo. Porém, havia que dotar os círculos eleitorais menos populosos de um mínimo de três deputados.

Por fim, é de referir que, muito embora o voto seja um dever cívico e um direito fundamental, ele está ligado umbilicalmente a uma das liberdades basilares. Assim, tanto é um direito votar como não votar, pelo que o nosso ordenamento prevê a possibilidade da abstenção mesmo à boca da urnas. O abstencionismo deve ser respeitado e devem ser lidos os seus porquês e sinais, pelo que deve ser combatido com políticas, medidas administrativas e formação política (nas instituições partidárias, cívicas, culturais e escolares).

Por outro lado, deve promover-se a vertente participativa da democracia, por exemplo, instituindo foros de debate de ideias e de problemas (nomeadamente com jovens) fazendo-os chegar aos decisores e valorizando mais no Parlamento as petições de cidadãos, prestando contas da sua discussão e resultados. São de ter em conta as duas vertentes da democracia: a representativa e a participativa.

2022.01.05 – Louro de Carvalho

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